sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar — II

 Victor Hugo - Os Miseráveis



Primeira Parte - Fantine

Livro Quarto — Confiar é por vezes abandonar




II — Primeiro esboço de duas figuras suspeitas




O rato apanhado na ratoeira era bastante franzino, mas o gato regala-se ainda que seja com um rato magro.

Quem eram os Thenardier?

Digamos desde já alguma coisa a seu respeito. Depois completaremos o esboço.

Estas criaturas pertenciam à classe bastarda, composta de gente grosseira aventureira e gente inteligente decaída, situada entre a classe chamada média e a chamada inferior e que combina alguns defeitos da segunda com quase todos os vícios da primeira, sem ter o assomo de generosidade do artista nem a ordenada honestidade do burguês.

Eram dessas naturezas anãs que se tornam monstruosas, se por acaso as aquece algum fogo sombrio. Havia na mulher o fundo de uma selvagem e no homem a capa de um velhaco. Ambos eram desmesuradamente susceptíveis daquela espécie de progresso abjecto, que se faz no sentido do mal. Existem almas, espécie de caranguejos, recuando continuamente para as trevas, retrocedendo na vida mais do que avançam, empregando a experiência em aumentar a sua deformidade, piorando sem cessar, e impregnando-se cada vez mais, de crescente negrura. Este homem e a mulher eram dessas almas.

O marido, principalmente, era incomodo para o fisionomista. Há homens que basta encará-los para se desconfiar deles, pressentindo-se desde logo as ideias tenebrosas. Homens destes apresentam por trás de si a inquietação e na frente a ameaça. Há neles qualquer coisa de desconhecido. Não se pode responder pelo que fizeram nem pelo que farão. Denuncia-os o olhar sombrio. Simplesmente por os ouvir pronunciar uma palavra ou vê-los fazer um gesto, logo se lhes descobrem sombrios segredos no passado e sombrios mistérios no futuro.

Este Thenardier, se devemos dar-lhe crédito, tinha sido soldado; sargento, dizia ele; fizera provavelmente a campanha de 1815 e até, ao que parece, se tinha portado com bravura. Mais tarde veremos o que ele era realmente. A tabuleta da estalagem continha uma alusão a um dos seus feitos de armas. Pintara-a ele mesmo, porque aquele homem sabia um pouco de tudo, mas mal.

Era na época em que o antigo romance clássico que depois de ter sido Clelia já não era senão Lodoiska, sempre nobre, mas cada vez mais vulgar, que descera de Mademoiselle de Scudéry para Madame Barthélemy-Hadot, e de Madame de Lafayette para Madame Bournon-Malarme, incendiava a alma ardente das porteiras de Paris e levava mesmo a sua devastação a alguns pontos dos arrabaldes.

A senhora Thenardier era justamente de inteligência suficiente para ler esta espécie de livros. Nutria-se com a sua leitura, afogava ali todo o seu entendimento, e isto havia-lhe dado, enquanto foi rapariga e mesmo ainda alguma coisa depois, uma espécie de atitude pensativa, ao pé de seu marido, velhaco dotado de certa profundidade, rufião quase entendido em gramática, grosseiro e fino ao mesmo tempo, mas, pelo que respeita a sentimentalismo, ledor de Pigault-Lebrun, e «em tudo o que toca ao sexo», como ele dizia, na sua linguagem habitual, parvo rematado e sem mescla. A mulher tinha uns doze ou quinze anos menos do que ele. Mais tarde, quando os cabelos romanticamente soltos, começaram a embranquecer, quando a megera se desligou da Pamela, a senhora Thenardier não passou de uma gorda e má mulher, que saboreava romances estúpidos. Ora, ninguém lê imbecilidades impunemente; resultando daqui que a filha mais velha foi mimoseada com o nome de Eponine, enquanto a mais nova esteve a ponto de se chamar Gulnare; deveu, porém, a não sei que feliz diversão, causada por um romance de Ducray-Duminil, chamar-se apenas Azelma.

Todavia, digamo-lo de passagem, nem tudo é ridículo e superficial naquela curiosa época a que fizemos alusão e a que poderíamos chamar a anarquia dos nomes de batismo. Ao lado do elemento romântico, existe o sintoma social. Não é raro hoje em dia que um boieiro se chame Artur, Alfredo ou Afonso, e que um visconde se ainda há viscondes se chame Tomás, Pedro ou Jacques. Esta deslocação que dá ao plebeu o nome elegante e o nome rústico ao aristocrata, não é senão um borbotão de igualdade. Conhece-se nisto como em tudo, a irresistível penetração do novo sopro. Sob esta aparente discordância, existe uma coisa grande e profunda: a revolução francesa.





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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Leia também:

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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XII — O bispo trabalha
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, XIII — O pequeno Gervásio
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, I — O ano de 1817
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, II — Quatro pares
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, III — A quatro e quatro
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IV — A alegria de Tholomyés é tão grande que até canta uma canção espanhola
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, V — Em casa de Bombarda
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Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VII — Prudência de Tholomyés
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, VIII — Morte dum cavalo
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, IX — Alegre fim de festa
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — I
Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Quarto - Confiar é por vezes abandonar  — III


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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)


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