Cem Anos de Solidão
Gabriel Garcia Márquez
(1.6)
para jomí garcía ascot
e maría luisa elío
continuando...
Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da memória. Descobriu-a por acaso. Insone experimentado, por ter sido um dos primeiros, tinha aprendido com perfeição a arte da ourivesaria. Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: “tás”. Aureliano escreveu o nome num papel que pregou com cola na base da bigorninha: tás. Assim, ficou certo de não esquecê-lo no futuro. Não lhe ocorreu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-las. Quando seu pai lhe comunicou o seu pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcadio Buendía o pôs em prática para toda a casa e mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabrito, porco, galinha, aipim, taioba, bananeira . Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que podia chegar um dia em que se reconhecessem as coisas pelas suas inscrições, mas não se recordasse a sua utilidade. Então foi mais explícito. O letreiro que pendurou no cachaço da vaca era uma amostra exemplar da forma pela qual os habitantes de Macondo estavam dispostos a lutar contra o esquecimento: Esta é a vaca, tem-se ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e preciso ferver para misturálo com o café e fazer café com leite. Assim, continuaram vivendo numa realidade escorregadia momentaneamente capturada pelas palavras, mas que de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita. Na entrada do caminho do pântano, puseram um cartaz que dizia Macondo e outro maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas haviam escrito lembretes para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tanta vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabava por ser menos prática, porém mais reconfortante. Pilar Ternera foi quem mais contribuiu para popularizar essa mistificação, quando concebeu o artifício de ler o passado nas cartas como antes tinha lido o futuro. Com esse recurso, os insones começaram a viver num mundo construído pelas alternativas incertas do baralho, onde o pai se lembrava de si apenas como o homem moreno que havia chegado no princípio de abril, e a mãe se lembrava de si apenas como a mulher trigueira que usava um anel de ouro na mão esquerda e onde uma data de nascimento ficava reduzida à última quarta-feira em que cantou a calhandra no loureiro. Derrotado por aquelas práticas de consolação, José Arcadio Buendía decidiu então construir a máquina da memória, que uma vez tinha desejado para se lembrar dos maravilhosos inventos ciganos. A geringonça se fundamentava na possibilidade de repassar, todas as manhãs, e do princípio ao fim, a totalidade dos conhecimentos adquiridos na vida. Imaginava-a como um dicionário giratório que um indivíduo situado no eixo controlar com uma manivela, de modo que em poucas horas passassem diante dos seus olhos as noções mais necessárias para viver. Tinha conseguido escrever já cerca de quatorze mil fichas, quando apareceu pelo caminho do pântano um ancião mal-ajambrado, com o sininho triste dos que dormem, carregando uma mala barriguda, amarrada com cordas, e um carrinho coberto de trapos negros. Foi diretamente à casa de José Arcadio Buendía.
Visitación não o reconheceu ao abrir-lhe a porta, e pensou que tinha o propósito de vender alguma coisa, ignorante de que nada se podia vender num povoado que se afundava sem remédio no atoleiro do esquecimento. Era um homem decrépito. Embora a sua voz estivesse também oscilante pela incerteza e as suas mãos parecessem duvidar da existência das coisas, era evidente que vinha do mundo onde os homens ainda podiam dormir e recordar. José Arcadio Buendía encontrou-o sentado na sala, abanando-se com um remendado chapéu negro, enquanto lia com atenção compassiva os letreiros pregados na parede. Cumprimentou-o com amplas demonstrações de afeto, temendo tê-lo conhecido em outra época e agora não se lembrar mais dele. Mas o visitante percebeu a falsidade. Sentiu-se esquecido, não com o esquecimento remediável do coração, mas com outro esquecimento mais cruel e irrevogável que ele conhecia muito bem, porque era o esquecimento da morte. Então entendeu. Abriu a mala entupida de objetos indecifráveis, e dentre eles tirou uma maleta com muitos frascos. Deu para beber a José Arcadio Buendía uma substância de cor suave, e a luz se fez na sua memória. Seus olhos se umedeceram de pranto, antes de ver-se a si mesmo numa sala absurda onde os objetos estavam marcados, e antes de envergonhar-se das solenes bobagens escritas nas paredes, e ainda antes de reconhecer o recém-chegado numa deslumbrante explosão de alegria. Era Melquíades. Enquanto Macondo festejava a reconquista das lembranças, José Arcadio Buendía e Melquíades sacudiram a poeira da velha amizade. O cigano estava disposto a ficar no povoado. Tinha estado à morte, realmente, mas tinha voltado porque não pôde suportar a solidão. Repudiado pela sua tribo, desprovido de toda faculdade sobrenatural como castigo pela sua fidelidade à vida, decidiu se refugiar naquele cantinho do mundo ainda não descoberto pela morte, dedicado à exploração de um laboratório de daguerreotipia. José Arcadio Buendía nunca tinha ouvido falar desse invento. Mas quando se viu a si mesmo e a toda a sua família plasmados numa idade eterna sobre uma lâmina de metal com reflexos, ficou mudo de espanto. Dessa época data o oxidado daguerreótipo em que José Arcadio Buendía com o cabelo arrepiado e cinzento, o engomado colarinho da camisa fechado por um botão de cobre, e uma expressão de solenidade assombrada, e que Úrsula descrevia morta de rir como “um general assustado”. Na verdade, José Arcadio Buendía estava assustado, na diáfana manhã de dezembro em que lhe fizeram o daguerreótipo porque pensava que a pessoa se ia gastando pouco a pouco que à medida que a sua imagem passava para as placas metálicas. Por uma curiosa inversão do costume, foi Úrsula que lhe tirou aquela ideia da cabeça, assim como foi também ela quem esqueceu as antigas mágoas e decidiu que Melquíades ficaria na casa deles, embora nunca permitisse que lhe fizessem um daguerreótipo porque (segundo as suas próprias palavras textuais) não queria ficar para a chacota dos netos. Na manhã, vestiu as crianças com as suas melhores roupas, empoou-lhes a cara e deu uma colherada de xarope de tutano a cada um, para que pudessem permanecer absolutamente imóveis durante quase dois minutos diante da aparatosa câmara de Melquíades. No daguerreótipo familiar, o único que sempre existiu, Aureliano apareceu vestido de veludo negro, entre Amaranta e Rebeca. Tinha a mesma languidez e o mesmo olhar clarividente que haveria de ter, anos mais tarde, diante do pelotão de fuzilamento. Mas ainda não havia sentido a premonição do seu destino. Era um ourives experimentado, estimado em todo o pantanal pelo preciosismo do seu trabalho. Na oficina que compartilhava com o disparatado laboratório de Melquíades, mal se ouvia ele respirar. Parecia refugiado no tempo, enquanto seu pai e o cigano interpretavam aos gritos as predições de Nostradamus, entre um estrépito de frascos e cubas, e o desastre dos ácidos derramados e o brometo de prata perdido pelas cotoveladas e tropeções que davam a cada instante. Aquela consagração ao trabalho e o bom senso com que administrava os seus interesses haviam permitido a Aureliano ganhar em pouco tempo mais dinheiro que Úrsula com a sua deliciosa fauna de caramelo, mas todo mundo estranhava que fosse já um homem feito e não se tivesse notícia de nenhuma mulher na sua vida. Na verdade, não tinha tido. Meses depois, voltou Francisco, o Homem, um ancião errante de quase 200 anos,que passava com frequência por Macondo, divulgando as canções compostas por ele mesmo. Nelas, Francisco, o Homem, relatava com detalhes minuciosos os fatos acontecidos nos outros povoados do seu itinerário, de Manaure até os confins do pantanal, de modo que se alguém tinha um recado para mandar ou um acontecimento para divulgar pagava-lhe dois centavos para que o incluísse no seu repertório. Foi assim que Úrsula ficou sabendo da morte de sua mãe, por puro acaso, numa noite em que escutava as canções com a esperança de que dissessem algo sobre o seu filho José Arcadio. Francisco, o Homem, assim chamado porque venceu o diabo num desafio de improvisação de cantos, e cujo verdadeiro nome ninguém soube, desapareceu de Macondo durante a peste da insônia e certa noite reapareceu sem aviso na taberna de Catarino. Todo o povo foi escutá-lo, para saber o que tinha acontecido no mundo. Nessa ocasião, chegaram com ele uma mulher tão gorda que quatro índios tinham que levá-la carregada numa maca, e uma mulata adolescente de aspecto desamparado que a protegia do sol com uma sombrinha. Aureliano foi essa noite à taberna de Catarino. Encontrou Francisco, o Homem, como um camaleão monolítico, sentado no meio de um círculo de curiosos. Cantava as notícias com a sua velha voz desencordoada acompanhando-se com o mesmo acordeão arcaico que ganhara de Sir Walter Raleigh nas Guianas, enquanto marcava o compasso com os seus grandes pés andarilhos gretados pelo salitre. Diante da porta do fundo, estava sentada, e se abanava em silêncio, a matrona da maca. Catarino, com uma rosa de feltro na orelha, vendia à freguesia canecas de garapa fermentada e aproveitava a ocasião para se aproximar dos homens pôr a mão onde não devia. Por volta da meia-noite o calor era insuportável. Aureliano escutou as notícias até o fim, sem encontrar nenhuma que interessasse à sua família. Dispunha-se a voltar para casa quando a matrona lhe fez um sinal com mão.
— Entre você também — disse a ele. — Custa só vinte centavos.
Aureliano jogou uma moeda no cofre que a matrona tinha nas pernas e entrou no quarto sem saber para quê. A mulata adolescente, com as suas tetazinhas de cadela, estava nua cama. Antes de Aureliano, nessa noite, sessenta e três homens tinham passado pelo quarto. De tanto ser usado, e amassado com suores e suspiros, o ar da alcova começava a se transformar em lodo. A moça tirou o lençol ensopado e pediu a Aureliano que o segurasse por um lado. Pesava como uma cortina. Espremeram-no, torcendo-o pelos extremos, até que voltou ao seu peso natural. Viraram a esteira, e o suor saía pelo outro lado. Aureliano ansiava para que essa operação não terminasse nunca. Conhecia a mecânica teórica do amor, mas não podia aguentar-se em pé por causa da fraqueza dos joelhos, e ainda que tivesse a pele arrepiada e ardente não podia suportar a urgência de expulsar o peso das tripas. Quando a moça acabou de arrumar a cama e lhe ordenou que se despisse ele deu uma explicação aparvalhada: “Me fizeram entrar. disseram para jogar vinte centavos no cofre e não demorar.“ A moça entendeu o seu embaraço. “Se você jogar outros vinte centavos na saída, pode demorar um pouco mais”, e suavemente. Aureliano se despiu, atormentado pelo pudor, sem poder afastar a ideia de que a sua nudez não resistia à comparação com a de seu irmão. Apesar dos esforços da moça, sentiu-se cada vez mais indiferente, e terrivelmente sozinho. “Vou jogar outros vinte centavos”, disse com voz desolada. A moça lhe agradeceu em silêncio. Tinha as costas em carne viva. Tinha a pele colada nas costelas e a respiração alterada por um esgotamento insondável. Dois anos antes, muito longe dali, havia adormecido sem apagar a vela e tinha acordado rodeada pelo fogo. A casa onde vivia com a avó que a havia criado ficou reduzida a cinzas. Desde então, a avó a levava de povoado em povoado, deitando-a por vinte centavos, a pagar o valor da casa incendiada. Pelos cálculos da moça ainda lhe faltavam uns dez anos de setenta homens por noite, porque tinha a pagar além do mais os gastos de viagem e alimentação das duas, e o ordenado dos índios que carregavam a maca. Quando a matrona bateu na porta pela segunda vez, Aureliano saiu do quarto sem ter feito nada, aturdido pela vontade de chorar. Essa noite não pôde dormir, pensando na moça com uma mistura de desejo e comiseração. Sentia uma necessidade irresistível de amá-la e protegê-la. Ao amanhecer, extenuado pela insônia e pela febre, tomou a serena decisão de se casar com ela para libertá-la do despotismo da avó e desfrutar todas as noites da satisfação que ela dava a setenta homens. Mas, às dez da manhã, quando chegou à taberna de Catarino, a moça já tinha ido embora do povoado.
continua página 37...
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