segunda-feira, 21 de setembro de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)

 Simone de Beauvoir




02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR




PRIMEIRA PARTE

FORMAÇÃO
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CAPÍTULO II
A   M O Ç A





DURANTE toda a infância foi a menina reprimida e mutilada; entretanto, percebia-se como um indivíduo autônomo; em suas relações com os pais, os amigos, em seus estudos e jogos, descobria-se no presente como uma transcendência: nada fazia senão sonhar sua futura passividade. Uma vez púbere, o futuro não somente se aproxima, instala-se em seu corpo, torna-se a realidade mais concreta. Conserva o caráter fatal que sempre teve; enquanto o adolescente se encaminha ativamente para a idade adulta, a jovem aguarda o início desse período novo, imprevisível, cuja trama já se acha traçada e para o qual o tempo a arrasta. Já desligada de seu passado de criança, o presente só se lhe apresenta como uma transição; ela não descobre nele nenhum fim válido, mas tão somente ocupações. De uma maneira mais ou menos velada, sua juventude consome-se na espera. Ela aguarda o Homem. 

Sem dúvida, o adolescente também sonha com a mulher, deseja-a; mas ela será apenas um elemento de sua vida: não resume seu destino. Desde a infância, tenha querido realizar-se como mulher ou superar as limitações de sua feminilidade, a menina esperou do homem realização e evasão: ele tem o semblante deslumbrante de Perseu, de São Jorge, é o libertador, é tão rico e poderoso que detém em suas mãos as chaves da felicidade: é o príncipe encantado. Ela pressente que sob suas carícias será levada pela grande corrente da Vida, como no tempo em que repousava no ventre da mãe; submetida à sua doce autoridade, encontrará a mesma segurança que tinha nos braços do pai: a magia dos amplexos e dos olhares transformá-la-á novamente em ídolo. Sempre esteve convencida da superioridade viril; esse prestígio dos homens não é uma miragem pueril. Tem bases econômicas e sociais; são indiscutivelmente os senhores do mundo, tudo persuade a adolescente de que é de seu interesse tornar-se vassala; seus pais a incitam: o pai orgulha-se dos êxitos da filha a mãe neles vê as promessas de um futuro próspero; as colegas invejam e admiram a que conquista mais numerosas homenagens masculinas; nos colégios norte-americanos o standard de uma estudante é medido pelo número de dates que acumula. O casamento não é apenas uma carreira honrosa e menos cansativa do que muitas outras: só ele permite à mulher atingir a sua dignidade social integral e realizar-se sexualmente como amante e mãe. É sob esse aspecto que os que a cercam encaram seu futuro e que ela própria o encara. Admite-se unanimemente que a conquista de um marido — em certos casos, de um protetor — é para ela o mais importante dos empreendimentos. No homem encarna-se a seus olhos o Outro, como este para o homem se encarna nela; mas esse Outro apresenta-se a ele como o essencial e ela se apreende perante ele como o inessencial. Ela se libertará do lar paterno, do domínio materno e abrirá o futuro para si, não através de uma conquista ativa e sim entregando-se, passiva e dócil, nas mãos de um novo senhor.

Afirmou-se amiúde que se se resignava a essa demissão é porque física e moralmente ela se torna então inferior aos rapazes e incapaz de rivalizar com eles: renunciando a uma vã competição, confiaria a um membro da casta superior o cuidado de lhe assegurar a felicidade. Em verdade, não é de uma inferioridade dada que provém sua humildade; esta, ao contrário, é que engendra todas as insuficiências; tem sua fonte no passado da adolescente, na sociedade que a cerca e, precisamente, nesse futuro que lhe é proposto.

Sem dúvida, a puberdade transforma o corpo da jovem. Faz- -se ele mais frágil do que antes: os órgãos são vulneráveis, seu funcionamento delicado; insólitos e incômodos, os seios são um fardo; lembram sua presença nos exercícios violentos, tremem, doem. Daí por diante a força muscular, a resistência, a agilidade da mulher tornam-se inferiores às do homem. O desequilíbrio das secreções hormônicas cria uma instabilidade nervosa e vasomotora. A crise menstrual é dolorosa: dores de cabeça, dos músculos e do ventre tornam penosas e até impossíveis as atividades normais; a esses incômodos acrescem-se muitas vezes perturbações psíquicas; nervosa, irritável, é comum que a mulher passe mensalmente por um estado de semi-alienação; o controle do sistema nervoso e do sistema simpático não é mais assegurado pelos centros; as perturbações da circulação, certas autointoxicações fazem do corpo uma parede estanque entre a mulher e o mundo, uma bruma ardente que pesa sobre ela, que a abafa e a separa: através dessa carne dolente e passiva, o universo inteiro é um fardo por demais pesado. Oprimida, submergida, ela se torna estranha a si mesma pelo fato de ser estranha ao resto do mundo. As sínteses desagregam-se, os instantes não se ligam mais, o outro não é mais reconhecido senão mediante um reconhecimento abstrato; e embora permaneçam intatos como nos delírios melancólicos, o raciocínio e a lógica são entretanto colocados a serviço das evidências passionais que se produzem no seio do desnorteamento orgânico. Tais fatos são extremamente importantes: mas é por sua maneira de tomar conhecimento deles que a mulher lhes dá o peso que têm.

É por volta dos 13 anos que os meninos fazem um verdadeiro aprendizado da violência, que desenvolvem sua agressividade, sua vontade de poder, seu gosto pelo desafio; é exatamente nesse mesmo momento que a menina renuncia aos jogos brutais. Alguns esportes continuam a ser-lhes acessíveis; mas o esporte, que é especialização, submissão a regras artificiais, não oferece a equivalência de um recurso espontâneo e normal à força; situa- -se à margem da vida: não informa acerca do mundo e de si mesmo tão intimamente quanto um combate desordenado, uma escalada imprevista. A esportista não sente nunca o orgulho conquistador de um menino que fez o outro encostar os ombros no chão. Demais, em muitos países as moças não têm nenhum treinamento esportivo. Sendo-lhes proibidas as brigas, as escaladas, atêm-se a suportar o corpo passivamente; muito mais nitidamente do que na infância, cumpre-lhes renunciar a emergir além do mundo dado, a afirmar-se acima da humanidade; é-lhes proibido explorar, ousar, recuar os limites do possível. Em particular, a atitude do desafio, tão importante nos rapazes, é-lhes quase desconhecida. Por certo as mulheres se comparam, mas o desafio é diferente dessas confrontações passivas: duas liberdades se defrontam na medida em que têm sobre o mundo um domínio cujas limitações desejam diminuir; subir mais alto do que um colega, dobrar um braço, é afirmar sua soberania sobre toda a terra. Essas condutas conquistadoras não são permitidas à moça, a violência principalmente não lhe é permitida. Sem dúvida no universo dos adultos a força brutal não desempenha, em períodos normais, um grande papel; mas, entretanto, ela o obsidia, muitas são as condutas masculinas que se apoiam num fundo de violência possível: em todos os cantos de rua brigas e disputas se esboçam; na maioria das vezes abortam; mas basta ao homem sentir em seus punhos sua vontade de afirmação de si mesmo para sentir- -se confirmado em sua soberania. Contra toda afronta, contra toda tentativa de reduzi-lo a objeto, tem o homem o recurso de bater, de se expor aos golpes: não se deixa transcender por outrem, reencontra-se no seio de sua subjetividade. A violência é a prova autêntica da adesão de cada um a si mesmo, a suas paixões, a sua própria vontade, recusá-la radicalmente é recusar-se toda verdade objetiva, é encerrar-se numa subjetividade abstrata; uma cólera, uma revolta que não passam pelos músculos são coisas imaginárias. É terrível frustração não poder inscrever os movimentos de seu coração na face da terra. No Sul dos Estados Unidos é rigorosamente impossível a um negro usar de violência contra os brancos; essa regra é que é a chave da misteriosa "alma negra". A maneira pela qual o negro se sente no mundo branco, as condutas mediante as quais a ele se adapta, as compensações que busca, todo o seu modo de sentir e agir explicam-se tendo em vista a passividade a que é condenado. Durante a ocupação, os franceses que tinham resolvido não se entregar a atos violentos contra as ocupantes, mesmo em caso de provocação — fosse por prudência egoísta ou porque tinham deveres peremptórios — sentiam sua situação profundamente transtornada neste mundo: dependia do capricho de outrem que fossem transformados em objetos, sua subjetividade não tinha mais meios de se exprimir concretamente, não passava de um fenômeno secundário. Assim, tem o universo um aspecto inteiramente diferente para o adolescente a quem se permite testemunhar imperiosamente de si mesmo e para a adolescente cujos sentimentos se acham privados de eficiência imediata. Um pode pôr o mundo em discussão sem cessar, pode a cada instante insurgir-se contra o dado e tem portanto a impressão, quando o aceita, de o confirmar ativamente; a outra não faz senão suportá-lo: o mundo define-se sem ela e tem um aspecto imutável. Essa impotência física traduz-se por uma timidez mais geral: ela não acredita numa força que não experimentou em seu corpo; não ousa empreender, revoltar-se, inventar: votada à docilidade, à resignação, não pode senão aceitar, na sociedade, um lugar já preparado. Ela encara a ordem das coisas como dada. Uma mulher contava-me que durante toda a sua mocidade negara com selvagem má-fé sua fraqueza física. Admiti-la, fora perder a vontade e a coragem de empreender o que quer que fosse, ainda que apenas nos domínios intelectuais e políticos. Conheci uma jovem educada como um rapaz e excepcionalmente vigorosa que se imaginava tão forte quanto um homem; embora fosse muito bonita, embora tivesse todos os meses regras dolorosas, não tomava em absoluto consciência de sua feminilidade: tinha o rompante, a exuberância de vida, as iniciativas de um menino. E também as ousadias, não hesitando em intervir na rua a socos, se via molestarem uma criança ou uma mulher. Uma ou duas experiências infelizes revelaram-lhe que a força brutal está com os homens. Quando mediu sua fraqueza, boa parte da confiança que tinha em si mesma esvaiu-se. Foi o início de uma evolução que a levou a se feminilizar, a realizar-se como passividade, a aceitar a dependência. Não ter mais confiança no corpo é perder confiança em si próprio. Basta ver a importância que os rapazes dão a seus músculos, para compreender que todo indivíduo julga o corpo como sua expressão objetiva.

No rapaz, os impulsos eróticos só confirmam o orgulho que tira de seu corpo: neste ele descobre o sinal de sua transcendência e de seu poder. A moça pode conseguir assumir seus desejos mas eles permanecem o mais das vezes vergonhosos. Seu corpo inteiro é aceito com embaraço. A desconfiança que, desde menina, ela sentia em relação a seus "interiores" contribui para dar à crise menstrual o caráter suspeito que a torna odiosa. É pela atitude psíquica que suscita que a servidão menstrual constitui um pesado handicap. A ameaça que pesa sobre a jovem, durante certos períodos, pode parecer-lhe tão intolerável que ela renunciará a expedições e a prazeres, de medo que sua desgraça seja conhecida. O horror que esta lhe inspira repercute lhe no organismo e aumenta- lhe os incômodos e as dores. Viu-se que uma das características da fisiologia feminina é a estreita ligação das secreções endócrinas com o equilíbrio nervoso: há uma ação recíproca; um corpo de mulher — e principalmente de moça — é um corpo "histérico", no sentido de que não há, por assim dizer, distância entre a vida psíquica e sua realização fisiológica. O cataclismo que acarreta à jovem a descoberta das perturbações da puberdade exaspera-a. Como o corpo lhe é suspeito, ela o espia com inquietação: parece-lhe doente, é doente. Viu-se que, efetivamente, esse corpo é frágil e que há desordens orgânicas que nele se produzem; mas os ginecologistas concordam em dizer que nove décimos de suas pacientes são doentes imaginárias, isto é, ou seus incômodos não têm nenhuma realidade fisiológica, ou a desordem orgânica é, ela própria, motivada por uma atitude psíquica. É em grande parte a angústia de ser mulher que corrói o corpo feminino.

Vê-se que, se a situação biológica da mulher constitui um handicap, é por causa da perspectiva em que ela se apreende. A fragilidade nervosa, a instabilidade vasomotora, quando não se tornam patológicas, não lhe vedam nenhum ofício: entre os próprios homens há uma grande diversidade de temperamentos. Uma indisposição de um ou dois dias por mês, mesmo dolorosa, não é tampouco um obstáculo; na realidade, numerosas mulheres acomodam- se a isso, e em particular as que a "maldição" mensal poderia atrapalhar mais: esportistas, viajantes, mulheres que exercem tarefas pesadas. A maioria das profissões não reclama uma energia superior à que a mulher pode desenvolver. E nos esportes, o fim visado não é um êxito independente das aptidões físicas: é a realização da perfeição peculiar a cada organismo. O campeão de peso-pena vale tanto quanto o de peso pesado; uma campeã de esqui não é inferior ao campeão mais rápido do que ela: pertencem a duas categorias diferentes. São precisamente as esportistas que, positivamente interessadas em sua própria realização, se sentem menos inferiorizadas em relação ao homem. Contudo, a fraqueza física não permite à mulher conhecer as lições da violência: se lhe fosse possível afirmar-se em seu corpo e emergir no mundo de outra maneira, essa deficiência seria facilmente compensada. Que escale picos, que nade, que pilote um avião, que lute contra os elementos, que assuma riscos e se aventure, não sentirá ela, diante do mundo, a timidez de que falei. É no conjunto de uma situação, que deixa muito poucas possibilidades, que tais singularidades assumem seu valor, e não imediatamente, mas confirmando o complexo de inferioridade por ela desenvolvido desde a infância.





continua página 71...

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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.




"O que é uma mulher?"



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