quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Lima Barreto - 19. Lourenço, o Magnífico (3)

 Lima Barreto


O Homem que sabia Javanês e outros contos





Lourenço, o Magnífico



3



Lourenço Caruru, o Magnífico, depois que a guerra e a Liga pelos Aliados lhe fizeram ganhar centenas de contos por ano, teve desejos de mostrar-se um homem fino, artista e apreciador de belas coisas. 

Já temos visto como ele se mostrou conspícuo em matéria de artes plásticas e aplicadas; mas o que não contei ainda, foi como ele inaugurou, com grande orgulho monetário, a sua biblioteca.

Caruru tinha por camarada um adestrado leiloeiro com quem almoçava todo o dia, no restaurant mais caro do centro comercial e mais banal do universo, enquanto “madama” sarandava por aí, à cata de compras vultuosas em que ela ganhasse gordas comissões – meio magnífico que encontrara para passar grande parte da fortuna do “Magnífico” para as suas algibeiras.

Esse leiloeiro, o Cosme, viu bem que, até então, só havia ganho com os estupendos lucros ao Caruru almoços e charutos. Era preciso ganhar mais alguma coisa. Falou-lhe em móveis antigos, em curiosidades de mobiliário, de toda a ordem. Caruru, porém, seguindo o conselho da princesa, “madama” só gostava de coisas novas. Esses objetos antigos, dizia ele, consoante a sabedoria da Saúde Pública, têm germens de várias moléstias transmissíveis e ele não ia nisso de morrer agora, quando ganhava dinheiro a rodo e tinha ao lado aquela deliciosa “madama” que o fizera ressuscitar da sepultura do lar burguês e honesto.

Cosme, entretanto, não desanimou de ganhar algum dinheiro graúdo do seu “comensal riquíssimo” de opíparos almoços.

Havia morrido um manipanso célebre do foro, dos pareceres e dos apedidos do Jornal do Comércio, e Cosme tinha que lhe vender a biblioteca em leilão. Era de fato preciosa, mas os livros preciosos e caros estavam virgens, até de traças.

Cosme, logo que pôs a livraria no armazém, tratou de seduzir o amigo para lhe comprar uns lotes.

– Não sabes Caruru que livros raros há na biblioteca do conselheiro Encerrabodes!

– Estrangeiros?

– Não; nacionais. Os livros nacionais, quando rareiam, são mais raros do que os estrangeiros.

– Por que?

– Porque, aqui, não há amor aos livros, de forma que eles não são conservados de pais a netos. Ao contrário do que acontece na Europa, onde os herdeiros quase sempre guardam as relíquias, inclusive os livros, dos avós, sendo por isso fácil encontrar duplicatas, triplicatas e mais.

– Então tens verdadeiras preciosidades?

– Tenho.

– Quando é o leilão?

– Amanhã.

– Vou lá, disse Caruru com o ar de um valentão que diz para outro: “Comigo é nove e tu não tiras farinha.”

Despediram-se e Cosme logo tratou de achar um comparsa que “picasse” os lances de Caruru.

No dia seguinte, o corretor lá estava, Cosme distraiu-o até começar o leilão. Puseram em lotação uma obra cujo título ele não ouviu bem. Um sujeito disse:

– Dois contos de réis.

Cosme, piscando o olho para Caruru, gritou:

– Quem dá mais?

O “Magnífico” berrou:

– Dois contos e quinhentos.

O comparsa do leiloeiro berrou:

– Três contos!

O duelo continuou assim e a obra coube a Lourenço pela ninharia de nove contos. Eram as leis e decisões do Brasil, desde a Independência até um ano próximo àquele de tão memorável compra. Dessa forma, comprou muitos outros.

Quando Caruru ia saindo orgulhoso da vitória, alguém perguntou:

– O senhor deve ganhar muito dinheiro na advogacia, não é?

– Absolutamente, não. Ganho muito dinheiro com a guerra que os outros fazem e na qual morrem aos milheiros.

Achou a resposta irônica e sentiu que tinha esmagado o idiota que pretendera debochá-lo.

Dias depois, possuía no famoso apartamento o núcleo de uma bela e luxuosa biblioteca, para a qual era perfeitamente analfabeto e que faria dormir o mais resistente a leituras soporíferas.



Careta, Rio, 5-3-1921.




continua página 37...

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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.

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O homem que sabia Javanês e outros contos, de Lima Barreto 

Fonte: 
BARRETO, Lima. O homem que sabia javanês e outros contos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997.
Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por: 
Rodrigo Souza, Curitiba - PR 

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