Lima Barreto
O Homem que sabia Javanês e outros contos
Lourenço, o Magnífico
3
Lourenço Caruru, o Magnífico, depois que a guerra e a Liga pelos Aliados lhe fizeram ganhar centenas de contos por ano, teve desejos de mostrar-se um homem fino, artista e apreciador de belas coisas.
Já temos visto como ele se mostrou conspícuo em matéria de artes plásticas e aplicadas; mas o que não contei ainda, foi como ele inaugurou, com grande orgulho monetário, a sua biblioteca.
Caruru tinha por camarada um adestrado leiloeiro com quem almoçava todo o dia, no restaurant mais caro do centro comercial e mais banal do universo, enquanto “madama” sarandava por aí, à cata de compras vultuosas em que ela ganhasse gordas comissões – meio magnífico que encontrara para passar grande parte da fortuna do “Magnífico” para as suas algibeiras.
Esse leiloeiro, o Cosme, viu bem que, até então, só havia ganho com os estupendos lucros ao Caruru almoços e charutos. Era preciso ganhar mais alguma coisa. Falou-lhe em móveis antigos, em curiosidades de mobiliário, de toda a ordem. Caruru, porém, seguindo o conselho da princesa, “madama” só gostava de coisas novas. Esses objetos antigos, dizia ele, consoante a sabedoria da Saúde Pública, têm germens de várias moléstias transmissíveis e ele não ia nisso de morrer agora, quando ganhava dinheiro a rodo e tinha ao lado aquela deliciosa “madama” que o fizera ressuscitar da sepultura do lar burguês e honesto.
Cosme, entretanto, não desanimou de ganhar algum dinheiro graúdo do seu “comensal riquíssimo” de opíparos almoços.
Havia morrido um manipanso célebre do foro, dos pareceres e dos apedidos do Jornal do Comércio, e Cosme tinha que lhe vender a biblioteca em leilão. Era de fato preciosa, mas os livros preciosos e caros estavam virgens, até de traças.
Cosme, logo que pôs a livraria no armazém, tratou de seduzir o amigo para lhe comprar uns lotes.
– Não sabes Caruru que livros raros há na biblioteca do conselheiro Encerrabodes!
– Estrangeiros?
– Não; nacionais. Os livros nacionais, quando rareiam, são mais raros do que os estrangeiros.
– Por que?
– Porque, aqui, não há amor aos livros, de forma que eles não são conservados de pais a netos. Ao contrário do que acontece na Europa, onde os herdeiros quase sempre guardam as relíquias, inclusive os livros, dos avós, sendo por isso fácil encontrar duplicatas, triplicatas e mais.
– Então tens verdadeiras preciosidades?
– Tenho.
– Quando é o leilão?
– Amanhã.
– Vou lá, disse Caruru com o ar de um valentão que diz para outro: “Comigo é nove e tu não tiras farinha.”
Despediram-se e Cosme logo tratou de achar um comparsa que “picasse” os lances de Caruru.
No dia seguinte, o corretor lá estava, Cosme distraiu-o até começar o leilão. Puseram em lotação uma obra cujo título ele não ouviu bem. Um sujeito disse:
– Dois contos de réis.
Cosme, piscando o olho para Caruru, gritou:
– Quem dá mais?
O “Magnífico” berrou:
– Dois contos e quinhentos.
O comparsa do leiloeiro berrou:
– Três contos!
O duelo continuou assim e a obra coube a Lourenço pela ninharia de nove contos. Eram as leis e decisões do Brasil, desde a Independência até um ano próximo àquele de tão memorável compra. Dessa forma, comprou muitos outros.
Quando Caruru ia saindo orgulhoso da vitória, alguém perguntou:
– O senhor deve ganhar muito dinheiro na advogacia, não é?
– Absolutamente, não. Ganho muito dinheiro com a guerra que os outros fazem e na qual morrem aos milheiros.
Achou a resposta irônica e sentiu que tinha esmagado o idiota que pretendera debochá-lo.
Dias depois, possuía no famoso apartamento o núcleo de uma bela e luxuosa biblioteca, para a qual era perfeitamente analfabeto e que faria dormir o mais resistente a leituras soporíferas.
Careta, Rio, 5-3-1921.
continua página 37...
_________________
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…
Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.
______________________
O homem que sabia Javanês e outros contos, de Lima Barreto
Fonte:
BARRETO, Lima. O homem que sabia javanês e outros contos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Rodrigo Souza, Curitiba - PR
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para .
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para e saiba como isso é possível.
Leia também:
Lima Barreto - 1. O homem que sabia javanês
Lima Barreto - 2. Três gênios de secretaria
Lima Barreto - 3. O único assassinato de Cazuza
Lima Barreto - 4. O Número da Sepultura
Lima Barreto - 5. Manel Capineiro
Lima Barreto - 6. Milagre do Natal
Lima Barreto - 7. A Sombra do Romariz
Lima Barreto - 8. Quase ela deu o “sim” ; mas...
Lima Barreto - 9. Foi buscar lã...
Lima Barreto - 10. O Falso Dom Henrique V
Lima Barreto - 11. Eficiência Militar
Lima Barreto - 12. O Pecado
Lima Barreto - 13. Um Que Vendeu a Sua Alma
Lima Barreto - 14. Carta de um Defunto Rico
Lima Barreto - 15. Um Especialista
Lima Barreto - 16. O Filho de Gabriela
Lima Barreto - 17. A mulher do Anacleto
Lima Barreto - 18. O Caçador Doméstico
Lima Barreto - 19. Lourenço, o Magnífico (1)
Lima Barreto - 19. Lourenço, o Magnífico (2)
Nenhum comentário:
Postar um comentário