sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (5)

 Diante da Dor dos Outros




para David



… aux vaincus!
Baudelaire



A sórdida mentora, a Experiência...
Tennyson




2.

continuando...


As regiões vítimas de sofrimentos memoráveis documentados por fotógrafos de prestígio nas décadas de 1950, 1960 e no início da década de 1970 situavam-se sobretudo na Ásia e na África — as fotos de Werner Bischof das vítimas da fome na Índia, as fotos de Don McCullin das vítimas da guerra e da fome em Biafra, as fotos de W. Eugene Smith das vítimas da poluição letal em uma aldeia de pescadores japoneses. As ondas de fome na Índia e na África não constituíram meros desastres “naturais”; eram evitáveis; foram crimes de enorme magnitude. E o que aconteceu em Minamata foi obviamente um crime: a Chisso Corporation sabia que estava despejando resíduos carregados de mercúrio na baía. (Após um ano fotografando, Smith foi ferido com gravidade, com seqüelas permanentes, por capangas da empresa Chisso, que receberam ordens de pôr fim à investigação da sua câmera.) Mas a guerra é o crime mais vasto e, desde meados da década de 1960, a maioria dos mais conhecidos fotógrafos que cobrem guerras acreditaram que seu papel consistia em mostrar a “verdadeira” face da guerra. As fotos coloridas dos atormentados aldeões vietnamitas e de recrutas americanos feridos, tiradas por Larry Burrows e publicadas pela revista Life, a partir de 1962, sem dúvida reforçaram o clamor contra a presença americana no Vietnã. (Em 1971, Burrows foi derrubado a tiros, junto com outros três fotógrafos, quando viajava em um helicóptero militar dos Estados Unidos que sobrevoava a trilha de Ho Chi Minh, no Laos. A revista Life fechou em 1972, para consternação de muitos que, como eu, haviam crescido com suas reveladoras fotos de guerra e de arte e haviam sido educados por elas.) Burrows foi o primeiro fotógrafo importante a cobrir toda uma guerra em cores — mais um recurso em benefício da verossimilhança, ou seja, do impacto. No estado de ânimo político atual, o mais simpático às ações armadas desde várias décadas, as fotos de recrutas estropiados e de olheiras fundas que, no passado, pareciam subverter o militarismo e o imperialismo, podem parecer até estimulantes. O tema dessas fotos sofreu uma reformulação: jovens americanos comuns cumprindo o seu desagradável, mas nobre, dever.

Com exceção da Europa de hoje, que reivindicou o direito de renunciar à guerra, permanece tão verdadeiro como sempre foi o fato de a maioria das pessoas não questionar as racionalizações propostas pelo seu governo para dar início ou continuidade a uma guerra. São necessárias circunstâncias muito especiais para que uma guerra se torne genuinamente impopular. (A perspectiva de ser morto não é necessariamente uma delas.) Quando isso ocorre, o material reunido por fotógrafos, material que eles podem tomar como algo capaz de desmascarar o conflito, é de grande utilidade. Na ausência de um protesto desse tipo, a mesma foto antibelicista pode ser vista como uma demonstração do páthos, do heroísmo, do admirável heroísmo, numa luta inevitável que só pode ter fim com a vitória ou com a derrota. As intenções do fotógrafo não determinam o significado da foto, que seguirá seu próprio curso, ao sabor dos caprichos e das lealdades das diversas comunidades que dela fizerem uso.




continua pág 107...


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Leia também:


Susan Sontag - Na Caverna de Platão (01)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (1)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (2)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 1. (3)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (2)
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Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 2. (4)
Susan Sontag - Diante da dor dos outros - 3. (1)

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"Quando o mundo estiver unido
na busca do conhecimento, e
não mais lutando por dinheiro e
poder, então nossa sociedade
poderá enfim evoluir a um novo
nível."



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"... conversar me dá a chance de saber o que penso..."


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