sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (23)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




XXIII – FELIPE A LUÍSA 




Quando Deus vê nossas faltas, vê também nosso arrependimento: tem razão, querida soberana. Senti que lhe tinha desagradado sem poder descobrir a causa de sua preocupação; mas explicou-me, dando-me novos motivos para adorá-la. Seu ciúme, o do Deus de Israel, encheu-me de felicidade. Nada é mais santo nem mais sagrado do que o ciúme. Oh, meu belo anjo da guarda, o ciúme é a sentinela que nunca dorme; ele é para o amor o que o mal é para o homem, um verídico aviso. Tenha ciúme de seu servo, Luísa: quanto mais o castigar, mais ele lamberá, submisso, humilde e infeliz, o bastão que ao bater-lhe lhe diz quanto se interessa por ele. Mas, ai de mim! Querida, se não viu meus esforços, será então Deus que levará em conta o que fiz para vencer minha timidez, para dominar os sentimentos que julgou fracos em mim? Sim, esforcei-me por mostrar-lhe como eu era antes de amar. Em Madri, sentiam algum prazer na minha conversação, e eu quis que conhecesse o que eu valia. É isso uma vaidade? Castigou-a bastante. Seu último olhar deixou-me num tremor como jamais senti, mesmo quando vi as forças da França diante de Cádiz e minha vida posta em discussão numa hipócrita frase de meu senhor. Procurei a causa de seu desgosto sem poder achá-la e desesperava-me com esse dissídio de nossas almas, pois que devo agir por sua vontade, pensar por seu pensamento, ver pelos seus olhos, gozar do seu prazer e sentir seus pesares, como sinto o frio e o calor. Para mim, o crime e a angústia eram essa falta de simultaneidade na vida de nossos corações, que a senhora tornou tão bela. “Desagradar-lhe...”, repeti mil vezes como um louco. Minha nobre e bela Luísa, se alguma coisa podia aumentar meu absoluto devotamento à senhora e minha inabalável crença na sua santa consciência, seria a sua doutrina que me entrou no coração como uma nova luz. A senhora disse a mim mesmo os meus próprios sentimentos, explicou-me coisas que se achavam confusas em meu espírito... Oh! Se pensa punir desse modo, como serão então as recompensas? Mas ter-me aceito como servo satisfazia a tudo o que eu queria. Recebi de si uma vida inesperada: estou predestinado, meu respirar não é mais inútil, minha existência tem uma finalidade, quando mais não fosse a de sofrer pela senhora. Disse-lhe, repito-o, achar-me-á sempre semelhante ao que eu era, quando me ofereci como um humilde e modesto servo! Sim, estivesse a senhora desonrada e perdida, como disse que poderia ficar, minha ternura aumentaria com suas desditas voluntárias! Eu limparia as chagas, as cicatrizaria, convenceria Deus com as minhas preces de que não é culpada e de que as suas faltas eram crimes de outrem... Não lhe disse que tenho para si, no meu coração, os múltiplos sentimentos de um pai, de uma mãe, de uma irmã e de um irmão? Que antes de tudo sou para si uma família, tudo e nada, segundo a sua vontade? Mas não foi a senhora mesma que encerrou tantos corações no coração de um amante? Perdoe-me, pois, se sou, de quando em quando, mais amante do que pai e irmão, sabendo que há sempre um irmão, um pai por trás do amante. Se pudesse ler meu coração, quando a vejo bela e radiante, calma e admirada no fundo de sua carruagem nos Champs-Élysées, ou no seu camarote no teatro!... Ah! Se soubesse como o meu orgulho é pouco pessoal ao ouvir um elogio arrancado por sua beleza, por sua atitude, e quanto quero aos desconhecidos que a admiram! Quando, por acaso, a senhora enflora minha alma com uma saudação, fico ao mesmo tempo humilde e orgulhoso, e me vou como se Deus me tivesse abençoado, volto alegre, e minha alegria deixa em mim um longo rastro luminoso: ela brilha nas nuvens de fumaça de meu cigarro, e sei melhor que o sangue que ferve em minhas veias é todo seu. Não imagina então o quanto é amada? Depois de a ter visto, volto ao gabinete onde brilha a magnificência sarracena, mas onde o seu retrato tudo eclipsa, quando aciono a mola que o torna invisível a todos os olhares; e atiro-me então no infinito dessa contemplação: faço aí poemas de felicidade. Do alto dos céus descubro o curso de toda uma vida que ouso esperar! Ouviu alguma vez no silêncio das noites, ou, apesar do ruído do mundo, ressoar uma voz na sua pequenina orelha adorada? Ignora as mil súplicas que lhe são dirigidas? À força de contemplá-la, em silêncio, acabei por descobrir a razão de todos os seus traços, sua correspondência com as perfeições de sua alma: faço-lhe então, em espanhol, sobre essa harmonia das suas duas belas naturezas, sonetos que não conhece, porque minha poesia está muito abaixo do seu motivo e não me atrevo a enviar-lhos. Meu coração está tão completamente absorvido no seu, que não há instante em que não pense na senhora; e se deixasse de animar assim minha vida, haveria sofrimento em mim. Compreende agora, Luísa, que tormento não é para mim ser causa involuntária de um desprazer seu e não lhe adivinhar o motivo? Essa bela vida dupla detivera-se, e meu coração sentia um frio glacial. Enfim, na impossibilidade de explicar esse desacordo, eu julgava não ser mais amado; regressava bem triste, mas feliz ainda, à minha condição de servo, quando sua carta chegou e me encheu de alegria. Oh! Repreenda-me sempre assim. 

Uma criança que caíra disse à sua mãe “Perdão” ao levantar-se, escondendo-lhe o seu sofrimento. Sim, perdão por lhe ter causado uma dor. Pois bem, essa criança sou eu: não mudei, entrego-lhe a chave de meu caráter com a submissão de um escravo; mas, querida Luísa, não tropeçarei mais. Faça com que a corrente, que me prende a si e que a sua mão segura, esteja sempre bastante tensa para que um único movimento indique seus desejos àquele que será sempre



Seu escravo 

FELIPE






continua pág 289...
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[1] Em sua correspondência com a condessa Hanska, sua futura esposa, Balzac afirma que esta carta de Luísa a Felipe constitui um dos poucos trechos de sua obra em que ele se inspirou conscientemente num acontecimento da própria vida, a saber, numa cena de ciúme que se verificou entre ele e a condessa durante seu encontro em Viena, em 1835.

[2]Berenice: bela tragédia de Racine, quase impossível de se resumir, pois toda a ação é íntima, desenvolvendo-se no coração de dois amantes famosos, o imperador Tito e a rainha Berenice. Todo o enredo foi tirado destas duas linhas de Suetônio: “Tito, que amava apaixonadamente a rainha Berenice e até lhe teria prometido casamento, mandou-a embora de Roma a malgrado seu e dela, logo nos primeiros dias de seu império”.

[3]Senza brama, sicura ricchezza (em italiano): “(possuir) sem inquietação, riquezas seguras”; palavras de Dante (Paraíso, xxvii, 9).

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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