sexta-feira, 14 de junho de 2019

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo IV

Júlio Verne


A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO IV
EM QUE PHILEAS FOGG SURPREENDE PASSEPARTOUT, SEU CRIADO..





Às sete e vinte e cinco, Phileas Fogg, após ter ganho uma vintena de guinéus no whist, despediu-se dos seus nobres colegas, e deixou o Reform Club. Às sete e cinqüenta, abria a porta de sua casa e voltava ao lar. 

Passepartout, que tinha conscienciosamente estudado seu programa, ficou bastante surpreso vendo Mr. Fogg, culpável de inexatidão, aparecer a esta hora insólita. Segundo o cartaz, o locatário de Saville Row não deveria recolher-se senão à meia noite em ponto. 

Phileas Fogg assim que chegou subiu ao seu quarto, depois chamou: 

— Passepartout. 

Passepartout não respondeu. Este chamamento não poderia ser dirigido a ele. 

Não era ainda a hora. 

— Passepartout, repetiu Mr. Fogg sem elevar em nada a voz. 

Passepartout apareceu. 

— É a segunda vez que chamo, disse Mr. Fogg. 

— Mas não é meia noite, respondeu Passepartout, com seu relógio na mão. 

— Eu sei, retomou Phileas Fogg, e não o recrimino. Partimos em dez minutos para Dover e Calais. 

Uma espécie de careta esboçou-se sobre a redonda face do francês. Era evidente que tinha ouvido mal. 

— O senhor se desloca? perguntou ele. 

— Sim, respondeu Phileas Fogg. Vamos fazer a volta ao mundo.

Passepartout, olhos arregalados, as pálpebras e as sobrancelhas levantadas, os braços caídos, o corpo encurvado, apresentava naquele momento todos os sintomas do espanto levado à estupefação. 

— A volta ao mundo! murmurou ele. 

— Em oitenta dias, respondeu Mr. Fogg. Por isso, não temos um instante a perder. 

— Mas as malas?... disse Passepartout, que balançava inconscientemente sua cabeça para a direita e para a esquerda. 

— Nada de malas. Uma sacola de viagem só. Dentro, duas camisas de lã, três pares de roupa de baixo. O mesmo para si. Faremos compras pelo caminho. Traga para baixo meu mackintosh e minha manta de viagem. Vá com bons calçados. Apesar de que andaremos pouco ou nada. Vá. Passepartout teria desejado responder. Não pôde. Saiu do quarto de Mr. Fogg, subiu ao seu, tombou sobre uma cadeira, e empregando uma frase bem vulgar de seu país:

— Ah! bem que se diz, essa é demais, demais! E eu que queria descansar tranquilo!... 

E, maquinalmente, fez seus preparativos de partida. A volta ao mundo em oitenta dias! Estaria lidando com um doido? Não... Seria uma piada? Iriam até Dover, tudo bem. A Calais, que seja. Afinal, isto não poderia desgostar o bravo rapaz, que, há cinco anos, não pisava o solo pátrio. Talvez fossem até Paris, e, por certo, reveria com prazer a grande capital. Mas, certamente, um gentleman tão zeloso em seus passos pararia por ali... Sim, sem dúvida, mas não era menos verdade que ele partia, deslocava-se, este gentleman, tão caseiro até então! Às oito horas, Passepartout tinha preparado a modesta sacola que continha seu guarda-roupa e o de seu patrão; depois, com o espírito ainda perturbado, deixou seu quarto, fechou a porta cuidadosamente, e encontrou Mr. Fogg. Mr. Fogg estava pronto. Levava sob o braço o Bradshaw continental railway steam transit and general guide, que deveria fornecer-lhe todas as informações necessárias à viagem. Tomou a sacola das mãos de Passepartout, abriu-a, e deixou cair dentro um belo maço dessas belas bank-notes que têm curso em todos os países.

— Não se esqueceu de nada? perguntou ele.

— De nada, senhor. 

— O mackintosh e minha manta?

— Estão aqui. 

— Bem, pegue a sacola. 

Mr. Fogg entregou o sacola a Passepartout. 

— Cuidado com ela, acrescentou Mr. Fogg. Tem vinte mil libras aí dentro (500.000 F). 

A sacola ia quase caindo das mãos de Passepartout, como se as vinte mil libras fossem de ouro e pesassem demais. 

O patrão e o criado desceram, e a porta da rua foi fechada com duas voltas de chave. 

No fim da Saville Row havia uma estação de carruagens. Phileas Fogg e seu criado subiram em um cab que se dirigiu rapidamente para a estação de Charing Cross, à qual vem ter um dos ramais do South Eastern Railway. Às oito e vinte, o cab parava diante da estação. Passepartout desceu. Seu patrão seguiu-o e pagou ao cocheiro.

Neste momento, uma pobre mendicante, levando uma criança pela mão, pés nus na lama, um chapéu na cabeça, velho e estragado, do qual pendia uma deplorável pluma, com um chale esfarrapado sobre os andrajos, aproximou-se de Mr. Fogg e pediu-lhe esmola.

Mr. Fogg tirou de seu bolso os vinte guinéus que tinha ganho no whist, e, dando-os à mendiga:

— Tome lá, boa mulher, estou contente por tê-la encontrado! 

Depois foi em frente. 

Passepartout teve uma sensação de umidade em volta da menina do olho. O patrão acabara de conquistar seu coração. 

Mr. Fogg e ele entraram em seguida no grande átrio da estação. Lá, Phileas Fogg deu a Passepartout ordem para comprar dois bilhetes de primeira classe para Paris. Ao voltar-se, deparou com os seus cinco colegas do Reform Club. 

— Senhores, parto, disse ele, e os diversos vistos carimbados num passaporte que levo para este fim permitir-lhes-ão, na volta, controlar meu roteiro.

— Oh! senhor Fogg, respondeu polidamente Gauthier Ralph, não é preciso. Confiamos em sua honra de gentleman

— É melhor assim, disse Mr. Fogg. 

— Não se esqueça de que deve voltar?... observou Andrew Stuart. 

— Em oitenta dias, respondeu Mr. Fogg, sábado 21 de dezembro de 1872, às oito e quarenta e cinco da noite. Até a volta, meus senhores. 

Às oito e quarenta, Phileas Fogg e seu criado tomaram lugar no mesmo compartimento. Às oito e quarenta e cinco, soou um apito e o trem pôs-se a caminho. 

A noite estava negra. Caía uma chuva fininha. Phileas Fogg recostado no seu canto não dizia palavra. Passepartout, ainda estonteado, apertava maquinalmente contra si a sacola com as bank-notes

Mas o trem não ultrapassara Sydenham, quando Passepartout soltou um verdadeiro grito de desespero! 

— O que é que há? perguntou Mr. Fogg. 

— É que... que... na minha precipitação... minha perturbação... esqueci... 

— De quê? 

— De apagar o bico de gás do meu quarto. 

— Tudo bem, meu rapaz, respondeu friamente Mr. Fogg, fica queimando gás por sua conta.





_________________________


Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia. 
Promessa que manteve em mais de oitenta livros. 
Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas. 
Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras. 
Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza. 
Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857. 
Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation. 
Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros. 
A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix). 
Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranqüilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama. 
Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900. 
Morreu em 24 de Março de 1905


_____________________

Leia também:



_________________________

A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster
________________________



Nenhum comentário:

Postar um comentário