segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Julio Verne - A Volta ao Mundo em 80 Dias, Capítulo VIII

Júlio Verne


A Volta ao Mundo em 80 Dias





CAPÍTULO VIII
EM QUE PASSEPARTOUT FALA TALVEZ UM POUCO MAIS DO QUE LHE CONVIRIA





Fix havia em poucos instantes se reencontrado no cais com Passepartout, que flanava e observava, não se julgando obrigado, ele, a nada ver. 

— E então, meu amigo, disse Fix abordando-o, o seu passaporte está visado? 

— Ah! é o senhor, respondeu o francês. Muito obrigado. Estamos perfeitamente em ordem.

— E vê o país? 

— Sim, mas vamos tão depressa que parece que viajo em sonho. E aí, estamos mesmo em Suez? 

— Em Suez. 

— No Egito? 

— No Egito, perfeitamente. 

— Na África?

— Na África. 

— Na África! repetiu Passepartout. Não posso acreditar. Imagine, senhor, que imaginava não passar de Paris, e esta famosa capital, a revi exatamente das sete e vinte da manhã às oito e quarenta, entre a estação do Norte e a estação de Lyon, através dos vidros de um fiacre e de uma chuva torrencial. Que pena! Teria adorado rever o Pére-Lachaise e o Cirque des Champs Élysées

— Então estão muito apressados? — perguntou o inspetor de polícia... 

— Eu, não, mas meu patrão. A propósito, preciso comprar roupa de baixo e camisas! Partimos sem malas, com uma sacola de viagem apenas. 

— Vou levá-lo a um bazar, onde encontrará tudo o que precisar. 

— Senhor, respondeu Passepartout, é de uma tal amabilidade!... 

E ambos se puseram a caminho. Passepartout conversava o tempo todo.

— Sobretudo, disse, preciso prestar atenção para não perder o barco. 

— Tem tempo, respondeu Fix, ainda não é meio dia. Passepartout puxou seu grande relógio.

— Meio dia, disse. Que nada! são nove e cinquenta e dois! 

— Seu relógio está atrasado, respondeu Fix.

— Meu relógio! Um relógio de família, que veio do meu bisavô! Não varia cinco minutos por ano! É um verdadeiro cronômetro! 

— Já sei o que é, respondeu Fix. Você olhou a hora de Londres, que está quase duas horas atrasada em relação à de Suez. Tem de acertar seu relógio pela hora local de cada país.

— Eu! tocar no meu relógio! exclamou Passepartout, jamais! 

— Então ele não estará mais de acordo com o sol. 

— Tanto pior para o sol, senhor! Ele é que estará errado! 

E o valente moço tornou a meter o relógio na algibeira do colete com um gesto desafiador. Alguns instantes depois, Fix lhe dizia:

— Então deixaram Londres precipitadamente? 

— Creio que sim! Quarta feira passada, às oito da noite, contra todos os seus hábitos, Mr. Fogg voltou do seu club, e três quartos de hora depois tínhamos partido. 

— Mas para onde vai o seu patrão? 

— Sempre em frente! Ele faz a volta ao mundo! 

— A volta ao mundo? exclamou Fix. 

— Sim, em oitenta dias! Uma aposta, diz ele, mas cá entre nós, não acredito. Seria não ter senso comum. Há alguma coisa a mais. 

— Ah! é um excêntrico, este Mr. Fogg? 

— Creio que sim. 

— É rico então? 

— Evidentemente, e carrega uma bela soma com ele, em bank-notes novinhas em folha! E não poupa dinheiro pelo caminho! Veja! Prometeu uma gratificação magnífica ao maquinista do Mongolia, se chegarmos a Bombaim com um bom avanço! 

— E conhece há muito seu patrão? 

— Eu! respondeu Passepartout, eu entrei para o seu serviço no mesmo dia de nossa partida. 

É fácil imaginar o efeito que estas respostas deveriam produzir sobre o espírito já superexcitado do inspetor de polícia. 

A partida precipitada de Londres, pouco tempo após o roubo, a grande quantia que levava, a pressa em chegar a países longínquos, o pretexto de uma aposta excêntrica, tudo confirmava e deveria confirmar Fix nas suas idéias. Fez o francês falar ainda mais e obteve a certeza de que o moço não conhecia absolutamente seu patrão, que este vivia isolado em Londres, que o consideravam rico, sem que se soubesse a origem da sua fortuna, que era um homem impenetrável, etc.. Mas, ao mesmo tempo, Fix pôde ter por certo que Phileas Fogg não desembarcaria em Suez, e que iria realmente para Bombaim. 

— Bombaim é longe? perguntou Passepartout. 

— Bem longe, respondeu o agente. Vai precisar passar ainda uns dez dias no mar.

— E onde fica Bombaim? 

— Na Índia. 

— Na Ásia?

— Naturalmente. 

— Diabos! É que eu ia lhe dizer... Há uma coisa que me encafifa... é meu bico! 

— Que bico? 

— O meu bico de gás, que esqueci de apagar e que está aceso por minha conta. Ora, calculei que me saía a dois shillings a cada vinte e quatro horas, exatamente sete pence a mais do que eu ganho, e bem deve compreender que por pouco que a viagem se prolongue... 

Teria Fix compreendido a história do gás? É pouco provável. Ele já não escutava e tomara uma decisão. O Francês e ele tinham chegado ao bazar. Fix deixou seu companheiro fazendo as compras, recomendou-lhe que não perdesse a partida do Mongolia, e voltou apressado para o escritório do agente consular. Fix, agora que a sua convicção estava formada, recuperara todo o seu sangue frio.

— Senhor, disse ao cônsul, já não tenho nenhuma dúvida. Tenho o meu homem. Ele se faz passar por um excêntrico que quer fazer a volta ao mundo em oitenta dias. 

— Então é um espertalhão, respondeu o cônsul, e conta voltar a Londres, depois de ter despistado todas as polícias de dois continentes! 

— Isso é que haveremos de ver, respondeu Fix. 

— Mas não se engana? perguntou-lhe mais uma vez o cônsul.

— Não me engano. 

— Então, porque é que esse ladrão teve interesse em fazer constatar por um visto sua passagem por Suez? 

— Por quê?... não sei não, senhor cônsul, respondeu o detetive, mas ouça-me. 

E, em poucas palavras, relatou os pontos principais da sua conversa com o criado do dito Fogg. 

— Com efeito, disse o cônsul, todas as presunções são contra esse homem. E o que vai fazer? 

— Expedir um despacho para Londres com o pedido insistente de que me mandem um mandado de prisão para Bombaim, embarcar no Mongolia, vigiar o meu ladrão até às Indias, e ali, naquela terra inglesa, chegar-me a ele polidamente, meu mandado de prisão na mão e a mão sobre seu ombro... 

Estas palavras pronunciadas friamente, o agente despediu-se do cônsul e dirigiu-se à agência telegráfica. Dali enviou ao diretor da polícia metropolitana o despacho que já conhecemos.

Um quarto de hora depois, Fix, com a sua pequena bagagem na mão, bem munida de dinheiro, aliás, embarcava a bordo do Mongolia, e logo o rápido paquete corria a todo o vapor sobre as águas do mar Vermelho.





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Julio Verne nasceu em Nantes em 8 de fevereiro de 1828. Fugiu de casa com 11 anos para ser grumete e depois marinheiro. Localizado e recuperado, retornou ao lar paterno. Em um furioso ataque de vergonha por sua breve e efêmera aventura, jurou solenemente (para a sorte de seus milhões de leitores) não voltar a viajar senão em sua imaginação e através de sua fantasia. 
Promessa que manteve em mais de oitenta livros. 
Sua adolescência transcorreu entre contínuos choques com o pai, para quem as veleidades exploratórias e literárias de Júlio pareciam totalmente ridículas. 
Finalmente conseguiu mudar-se para Paris onde entrou em contato com os mais prestigiados literatos da época. Em 1850 concluiu seus estudos jurídicos e, apesar insistência do pai para que voltasse a Nantes, resistiu, firme na decisão de tornar-se um profissional das letras. 
Foi por esta época que Verne, influenciado pelas conquistas científicas e técnicas da época, decide criar uma literatura adaptada à idade científica, vertendo todos estes conhecimentos em relatos épicos, enaltecendo o gênio e a fortaleza do homem em sua luta por dominar e transformar a natureza. 
Em 1856 conheceu Honorine de Vyane, com quem casou em 1857. 
Por essa época, era um insatisfeito corretor na Bolsa, e resolveu seguir o conselho de um amigo, o editor P. J. Hetzel, que será seu editor in eternum, e converteu um relato descritivo da África no Cinco Semanas em Balão (1863). Obteve êxito imediato. Firmou um contrato de vinte anos com Hetzel, no qual, por 20.000 francos anuais, teria de escrever duas novelas de novo estilo por ano. O contrato foi renovado por Hetzel e, mais tarde, por seu filho. E assim, por mais de quarenta anos, as Voyages Extraordinaires apareceram em capítulos mensais na revista Magasin D'éducation et de Récréation. 
Em A Volta ao Mundo em 80 Dias, encontramos, ao mesmo tempo, muito da breve experiência de Verne como marinheiro e como corretor de Bolsa. Nada mais justo, também, que o novo estilo literário inaugurado por Júlio Verne, fosse utilizado por uma nova arte que surgia: o cinema. Da Terra à Lua (Georges Mélies, 1902), La Voyage a travers l'impossible (Georges Mélies, 1904), 20.000 lieus sous les mers (Georges Mélies, 1907), Michael Strogof (J. Searle Dawley, 1910), La Conquête du pôle (Georges Mélies, 1912) foram alguns dos primeiros filmes baseados em suas obras. Foram inúmeros. 
A Volta ao Mundo em 80 dias foi filmado em 1956, com enredo milionário, dirigido por Michael Anderson, música de Victor Young, direção de fotografia de Lionel Lindon. David Niven fez Phileas Fogg, Cantinflas, Passepartout, Shirley MacLaine, Aouda. Em 1989, foi aproveitado para uma série de TV, com a participação da BBC, dirigida por Roger Mills. No mesmo ano, outra série de TV, agora nos EE.UU., dirigida por Buzz Kulik, com Pierce Brosnan (Phileas Fogg), Eric Idle (Passepartout), Julia Nickson-Soul (Aouda), Peter Ustinov (Fix). 
Apesar de tudo, a vida de Verne não foi fácil. Por um lado sua dedicação ao trabalho minou a tal ponto sua saúde que durante toda a vida sofreu ataques de paralisia. Como se fosse pouco, era diabético e acabou por perder vista e ouvido. Seu filho Michael lhe deu os mesmos problemas que dera ao pai e, desgraça das desgraças, um de seus sobrinhos lhe disparou um tiro à queima-roupa deixando-o coxo. Sua vida efetiva também não foi das mais tranqüilas e todos os seus biógrafos admitem ter tido uma amante, um relacionamento que só terminou com a morte da misteriosa dama. 
Verne também se interessou pela política, tendo sido eleito para o Conselho de Amiens em 1888 na chapa radical, reeleito em 1892, 1896 e 1900. 
Morreu em 24 de Março de 1905


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A Volta ao Mundo em 80 Dias é um romance de aventura escrito pelo francês Júlio Verne e lançado em 1873. A obra retrata a tentativa do cavalheiro inglês Phileas Fogg e seu valete, Passepartout, de circum-navegar o mundo em 80 dias.

Data da primeira publicação: 30 de janeiro de 1873
Autor: Júlio Verne
Editora: Pierre-Jules Hetzel
País: França
Personagens: Phileas Fogg, Passepartout, Princesa Aouda, Inspetor Fix, James Forster
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