sexta-feira, 30 de junho de 2023

João Ubaldo Ribeiro - Política: O que o Estado faz

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


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O que o Estado faz


Para não complicar, vamos observar logo que o Estado faz, basicamente, três tipos de coisas: 1) elabora as leis — atividade legislativa; 2) administra os negócios públicos, executa a lei — atividade administrativa e executiva; 3) aplica a lei a casos particulares — atividade judicial.

As pessoas mais bem informadas dirão logo que este foi um jeito rebuscado de dizer que o Estado tem “três Poderes”: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Mas isto não é bem verdade, no sentido de que nem todos os Estados, mesmo os contemporâneos e desenvolvidos, têm três Poderes distintos em sua estrutura. Além disso, dizer simplesmente “Legislativo, Executivo e Judiciário” é uma maneira muito formal de ver as coisas, bastante útil em muitas circunstâncias, mas não satisfatória em nosso caso, pois decidimos adotar outra perspectiva desde o início — ou seja, procurar visualizar os processos concretos.

O Estado sempre exerceu essas atividades. Sempre houve alguém que formulou normas, alguém que as executou e alguém que as aplicou, notadamente em casos de conflitos ou problemas de interpretação. A separação entre essas três atividades (os tais três Poderes) é mais ou menos uma novidade, coisa comparativamente recente. Raciocinou-se que, se essas três atividades ficassem concentradas numa só pessoa ou grupo de pessoas, o perigo da tirania seria muito grande. Se eu mesmo faço a lei, eu mesmo a executo e eu mesmo a aplico, é evidente que fico com um grau de arbítrio muito grande nas mãos — até porque não permaneço sujeito à própria lei, depois de posta em vigor, já que posso modificá-la como desejar.

Assim, concebeu-se que as atividades do Estado constituiriam poderes independentes entre si. Na prática, contudo, o que se vem notando é que a divisão em três Poderes, não importa que recursos imaginosos se criem para garanti-la, não basta para evitar os abusos de poder (isto é, excessivo predomínio nos processos decisórios — para ficarmos dentro de nossa perspectiva metodológica). Na verdade, a separação entre os três Poderes é inevitavelmente relativa, havendo grande número de pontos de contato entre eles.

Em segundo lugar, há Estados onde os abusos de poder não são problema (como a Inglaterra) e não há separação entre os três Poderes. E há Estados (como o Brasil) onde existe a separação e os abusos de poder são freqüentes. Portanto a separação por si só não é sinal de que não existe tirania.

Há várias formas pelas quais as atividades podem ser conduzidas. Por exemplo, a função executiva pode ser desempenhada pelo Parlamento (ou seja, por uma assembléia de representantes do povo), no caso dos regimes parlamentaristas. Nestes pode haver um presidente (repúblicas) ou um rei (monarquias), mas o comum é que nem o presidente nem o rei exerçam papéis de grande relevância na condução da administração pública. É possível também que a função executiva seja exercida por um presidente, como no caso do Brasil e dos Estados Unidos, cujos regimes são presidencialistas.

A função legislativa é normalmente desempenhada por assembléias, ou parlamentos, escolhidos das formas mais diversas. Mas há casos em que outros poderes exercem atividades legislativas. Em circunstâncias normais, por exemplo, cabe ao Executivo baixar regulamentos que possibilitem a execução das leis emanadas do Legislativo (e o regulamento é um decreto), o que equivale a uma atividade legislativa. Também o Judiciário realiza atividade desse tipo, quando, por exemplo, elabora e põe em vigor seus regimentos internos.

No Brasil, desde a primeira Constituição republicana, a de 1891, uma série de atividades legislativas é exercida pelo Executivo, invadindo a seara do Legislativo. Vamos ver alguns exemplos:

a) o presidente da República tem iniciativa de projeto de lei. Isto significa que o presidente pode enviar diretamente um projeto para a Câmara dos Deputados, em vez de pedir a um deputado aliado que o faça;
b) o presidente da República tem direito a veto parcial, isto é, ele pode vetar artigos, alíneas e parágrafos de leis aprovadas pelo Congresso, modificando a própria lei, e portanto exercendo uma atividade legislativa;
c) há determinados projetos de lei que são de iniciativa exclusiva do presidente da República, como leis sobre aumento do funcionalismo, criação de órgãos públicos, efetivo das Forças Armadas etc, e
d) o presidente pode editar medidas provisórias com força de lei, que passam a vigorar imediatamente, e o Congresso tem trinta dias para recusar ou aprovar. É claro que, passado este tempo, se a medida não for apreciada, o Poder Executivo tem o direito de reeditá-la. Com isso, mais de 70% do trabalho do Legislativo trata de leis que têm origem na Presidência da República. Como pudemos ver, há no Brasil uma certa confusão entre os poderes, com o Executivo mandando muito mais que os outros dois.

Entre as funções do Estado, a judicial apresenta uma característica peculiar: só costuma exercer-se quando provocada. O Poder Judiciário, através de qualquer de seus órgãos, só se manifesta se for solicitado, normalmente na forma de uma ação (o que se chama, na linguagem cotidiana, de processo).

O relacionamento entre os três Poderes (ou mesmo o seu estabelecimento como entidades distintas) depende do direito constitucional positivo de cada Estado, ou seja, das normas e princípios constitucionais vigentes. Em cada Estado, este relacionamento apresenta particularidades, mas o essencial é lembrar como a ação do Estado se equaciona e raciocinar sobre o funcionamento, o sentido e as consequências dessa ação.

A maneira pela qual o Estado desempenha suas funções e a própria definição ou limitação dessas funções têm, evidentemente, mudado muito através da história. Basta que lembremos que o Estado, no mundo de hoje, é gigantesco. Havia países como a antiga União Soviética, para citar um caso ainda recente, em que o Estado assumiu praticamente toda a atividade econômica. Sendo as lojas, as fazendas e as fábricas do Estado, pode-se imaginar o gigantismo da estrutura estatal soviética.

Mas mesmo em países como os Estados Unidos, onde a norma é que a atividade econômica seja desempenhada por particulares — empresas ou indivíduos —, a presença do Estado é muito grande, de várias maneiras.

Quando a economia moderna começou a tomar forma, em países como a Inglaterra, com o advento da Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo (“capitalismo”, por enquanto, pode ser entendido apenas por seu aspecto mais genérico: sistema em que a atividade econômica está majoritariamente em mãos privadas), o Estado não era tão gigante assim, nem se pretendia que ele fosse.

O aparecimento de máquinas movidas a energia não humana ou animal, a produção em massa, o surgimento dos assalariados, a divisão social cada vez maior do trabalho, tudo isso gerava uma realidade socioeconômica extremamente nova, em que a tecnologia iria constantemente exigir a revisão de tudo o que era “verdade” antes.

Naquela nova realidade revolucionária, em que os dominantes não eram mais os aristocratas de antigamente, mas os industriais, os comerciantes, os banqueiros — a classe que agora punha o mundo a andar por caminhos antes nunca explorados ou sequer suspeitados —, viu-se a possibilidade de formular leis do mercado, no sentido cientifico da palavra, de relações constantes e previsíveis entre determinados fatos econômicos. Por exemplo, se um produto existia em abundância, a tendência era que o preço desse produto baixasse. Se, ao contrário, existia muita procura por esse produto e ele era escasso, seu preço subiria. Eis a lei da oferta e da procura (este último termo é frequentemente substituído por “demanda”, com o mesmo significado), até hoje tão invocada.

Além disso, definiram-se certos postulados sobre a natureza e o comportamento humanos tidos como necessários e imutáveis (isto é, necessariamente decorrentes da realidade). Se havia uma atividade econômica não explorada ainda, mas de rentabilidade previsível, algum espírito empreendedor procuraria exercer essa atividade e com isso auferir lucros. O egoísmo humano (até no bom sentido, se se pode falar assim), o desejo de proteger seus próprios interesses, a determinação de progredir, tudo isso, dentro do impecável funcionamento das leis econômicas, dentro dos horizontes que então se abriam para o homem através da ciência e do conhecimento que então pareciam ilimitáveis, iria fazer com que a sociedade, a economia, a Política marchassem harmoniosamente. Não toquem em nada, que tudo funciona por si só — era como se fosse esta a palavra de ordem. É bastante invocada a expressão “a mão invisível do mercado”, que colocaria tudo em ordem.

Para isso era indispensável, portanto, que o Estado interviesse o mínimo possível não só na economia, como na vida dos cidadãos. Liberdade para a atividade econômica, liberdade para o cidadão. Esta é a essência clássica do liberalismo: liberalismo econômico e liberalismo político, que se identificavam, eram como duas faces de uma mesma moeda.

Mas o liberalismo econômico não contava com seu próprio desenvolvimento e com as condições criadas pela expansão tecnológica que ele próprio teorizou, justificou e possibilitou. De repente (para configurar apenas uma entre muitas hipóteses possíveis), por uma razão ou por outra, um fabricante de sapatos, desejando eliminar a concorrência, conseguiu enfrentar prejuízos intencionais durante vários meses, vendendo sapatos abaixo do preço de custo. Seu principal concorrente, sem reservas para agüentar a guerra, acabou em sérias dificuldades, porque ninguém comprava mais os seus sapatos.

Em conseqüência disso, o primeiro fabricante pôde adquirir o estabelecimento concorrente e conquistar uma faixa tão grande do mercado que já não havia mais sombra que lhe pudesse ser feita: só quem fabricava sapatos era ele, era ele quem fazia os preços e estipulava as condições de comércio. Estava formado um monopólio, uma das piores pragas da economia capitalista.

Há muito as pessoas haviam deixado de saber fazer seus próprios calçados (como não sabem criar os animais que comem, nem podem; como não sabem, nem podem, tecer o pano que vestem e assim por diante, dependendo inapelavelmente da divisão social do trabalho, pois, sem os outros, morreriam).

Ao mesmo tempo, a consolidação do Estado nacional, a identificação de interesses entre setores das elites dominantes e outros fatores foram contribuindo para que se notasse, às vezes muito penosamente, que, se o Estado não interferisse na vida econômica, a situação poderia ficar fora de controle, numa espécie de processo autodestrutivo. Se o Estado não interviesse, por exemplo, para impor determinadas limitações à autoridade dos patrões sobre os empregados, através de legislação trabalhista, previdência social e assim por diante, os conflitos tenderiam a tornar-se insustentáveis. A mesma coisa pode ser dita em relação aos monopólios e outras práticas de manipulação predatória do mercado.

De outro lado, se o Estado não procurasse ingressar em empreendimentos econômicos que, de pronto, não interessassem à iniciativa privada, as áreas para esses empreendimentos podiam ser negligenciadas, prejudicando, a médio ou longo prazo, o bom funcionamento da economia. E nada melhor que o Estado para usar o dinheiro de todos, a fim de garantir a situação de alguns e conferir estabilidade ao modelo vigente. É lógico que o Estado não pode permitir que as leis econômicas, deixadas “soltas”, causem problemas de magnitude insuportável, como aconteceu com a Grande Depressão, a partir de 1929.

Por essas e outras razões de grande complexidade, o Estado liberal veio a ser substituído pelo Estado intervencionista, o Estado que interfere na atividade econômica e, por conseqüência, em todas as áreas da vida do cidadão. O Estado passou a não somente regular a atividade econômica, mas também a ingressar nela diretamente, inclusive por meio de empresas estatais, ou seja, empresas em que os proprietários particulares são substituídos pelo Estado. A crueza, a lei da selva da economia de mercado, é orientada para equilibrar o sistema, para não deixar que ele se destrua.

Vamos dar um exemplo claro e simplificado, para que tudo fique bem entendido. Um Estado qualquer não possui grupos econômicos em condições de explorar atividades como a mineração, certos serviços públicos, a distribuição de combustíveis e outras. O Estado interfere para explorar essas atividades com recursos de todos. Quando essas atividades se tornam lucrativas, o Estado, como acontece bastante, pode passá-las à iniciativa privada. Ou pode continuar a explorá-las, com “objetivos sociais”. A verdade, contudo, é que o Estado representa interesses e, enquanto representar os interesses X, jamais vai fazer alguma coisa em benefício dos interesses Y.

De qualquer maneira, é visível que a função onde o Estado é mais complexo é a função administrativa, a função de gerência da sociedade onde está implantado. As chamadas máquinas estatais adquiriram dimensões descomunais, são hoje verdadeiros mamutes burocráticos, que muitas vezes a própria administração pública não conhece direito, como no caso do Brasil. Aqui, ainda, isto é agravado pela prática do clientelismo, dos cabides de emprego e instituições semelhantes, além do paternalismo que sempre se praticou em relação à sociedade e à economia, tudo sempre terminando em alguma coisa “para o governo resolver”.

Entretanto, a partir da década de 1980 muitos países começaram a perceber que o Estado era, na maioria das vezes, um mau gerente: gastador, corrupto, empreguista, perdulário, incompetente, ineficiente. Uma série de privilégios foi sendo atribuída às empresas do Estado, cujo custo, para os cidadãos como um todo, que não participaram dessas empresas, ficou insuportável. Vários países europeus como a Inglaterra, a França e a Alemanha começaram a vender suas empresas estatais, ou seja, a privatizar.

No Brasil, o processo de privatização só teve início em 1990. Antes disso, o Estado estava em toda parte: na siderurgia, na produção de energia elétrica, nos transportes, na produção de combustível, na produção e distribuição de alimentos, nas comunicações — em toda parte mesmo, enfim. Mas o Estado brasileiro não tem conseguido cumprir suas funções básicas: garantir boa escola pública para todos, boas condições de atendimento na saúde pública, moradia para as populações de baixa renda, saneamento básico etc. Por isso, para garantir este atendimento mínimo das necessidades dos cidadãos, o Estado brasileiro começou a se desfazer da maior parte de suas empresas, num processo que ainda está longe do fim.

Por ironia da história, hoje o liberalismo econômico, que é irmão gêmeo do liberalismo político, distanciou-se daquele junto ao qual nasceu. O liberalismo econômico puro gera iniquidades, destrói o liberalismo político depois de algum tempo. O “Estado ausente” não pode mais ser mantido; hoje o Estado precisa manter algumas atividades básicas em suas mãos e regular as atividades nas mãos da iniciativa privada, para corrigir as distorções da “mão invisível do mercado”. O problema é definir que atividades devem permanecer na mão do Estado. Isto nos remete à seguinte pergunta: quem dirige o Estado? Quem manda?

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1 Que é que quer dizer “o rei reina, mas não governa”?
2 Os cinco grandes comerciantes que, num país qualquer, controlam todo o feijão disponível para venda, como não estão satisfeitos com os preços, provocam uma escassez artificial do produto, pondo à venda apenas pequenos estoques. Pode-se dizer que estes comerciantes estão violando a lei da oferta e da procura? Se o governo interferir para corrigir a situação, que significa isso, quanto às relações entre o Estado e a economia?
3 Você vê vantagens ou desvantagens em deixar o Executivo legislar à vontade? Por exemplo, há quem diga que assim ele adquire mais velocidade e eficiência, sem ser prejudicado pela morosidade do Legislativo.
4 Na Inglaterra, a rainha pode nomear, teoricamente, qualquer membro do Parlamento que deseje, para o cargo de primeiroministro. No entanto, ela sempre nomeia o líder do partido que ganhou as eleições, o partido majoritário. Isto significa, na sua opinião, que o costume pode ser parte da ordem jurídica num Estado qualquer?
5 Na antiga União Soviética, o Estado elaborava e procurava cumprir planos econômicos, numa economia inteira mente controlada pelo Estado. No Brasil, o Estado também elabora e procura cumprir planos econômicos, numa economia em que a iniciativa privada é encorajada. Procure imaginar as diferenças de significado dessa interferência estatal, entre um caso e outro.
6 Qual é o interesse de um Estado como o brasileiro em investir em mais saúde pública? Procure pensar para além das implicações mais superficiais. Faça o mesmo em relação a investimentos semelhantes como saneamento, transporte, educação.


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João Ubaldo Ribeiro - Política: O que o Estado faz

João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".

João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.

João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

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