quinta-feira, 27 de abril de 2023

João Ubaldo Ribeiro - Política: Estado e violência

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


6
Estado e violência


O Estado representa o interesse público, embora muitas vezes defenda apenas os interesses das elites, das classes dominantes. Os motivos de interesse realmente público são poucos e relativos, no contexto político. Entretanto, ao menos de forma nominal (e com maiores ou menores benefícios para o cidadão comum, conforme o caso), o Estado representa sempre o interesse público, o bem-estar da população. Isto se expressa na ordem jurídica. A ordem jurídica rege o comportamento do cidadão, do próprio Estado e das relações entre o Estado e o cidadão.

No estado de direito, a lei — palavra usada aqui como sinônimo de ordem jurídica — subordina povo, governantes e instituições, existindo mesmo certos princípios básicos inalteráveis. A mudança da lei só pode ser feita sob o império da própria lei, pois é a ordem jurídica que estabelece as normas para a alteração de seu próprio conteúdo.

Só há, naturalmente, uma ordem jurídica: aquela vinculada ao próprio Estado. O Estado não pode reconhecer uma ordem jurídica à parte, pois, no momento em que o fizesse, incorporaria os elementos dessa ordem, transformando-os em parte de si mesmo, pois, afinal, só o Estado detém a soberania. No âmbito do Estado, a ordem jurídica se estende a tudo e a todos, sem excluir até mesmo os cidadãos estrangeiros que estejam em seu território, ou sob sua jurisdição a qualquer outro título.

Decorre daí que o Estado detém o monopólio das normas jurídicas. A norma pode não ser obedecida, mas essa desobediência não deve ser tolerada. Do contrário, não haveria sentido na existência da norma. Do que se depreende que o Estado exerce coerção sobre tudo o que está contido na ordem jurídica. Como a coerção é uma forma de violência (inclusive física, em muitos casos), o Estado detém, consequentemente, o monopólio legítimo da violência.

Mesmo que meu vizinho cometa uma flagrante violação da ordem jurídica, eu não posso condená-lo ou encarcerá-lo. Só quem pode é o Estado. Somente o Estado, em nome do interesse público, qualquer que seja ele na ocasião, é que pode fazer a guerra, conduzir a repressão à delinquência (mesmo quando essa delinquência consiste apenas em reivindicações populares que a lei decidiu considerar ilícitas), coagir, usar a violência, enfim.

Essa violência, na maior parte dos casos, é apenas latente, não concretamente exercida, embora se possa argumentar que o indivíduo contemporâneo de tal forma se acostumou à estruturação de sua vida pela ordem jurídica que apenas não mais nota que ela o violenta a todo instante. Mesmo que o Estado seja regido pela norma universal, segundo a qual, na órbita privada, “tudo o que não é proibido é permitido”, o indivíduo está sob a permanente pressão de não cometer, até por ignorância da lei, ato que seja proibido. Na órbita dos que ele sabe que são proibidos, ele percebe que a coerção do Estado se encontra na sanção aplicável a quem viola a norma. Genericamente, a violação da norma envolve uma sanção, isto é, medidas coercitivas contra o autor da violação, que podem ir, digamos, de uma repreensão até a condenação ao suplício e à morte. Somente a ordem jurídica, o Estado, pode obrigar, enfim, alguém ou alguma organização a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.

É claro que este monopólio legítimo da violência é desafiado a todo momento, não só por indivíduos como por organizações. Em países como o Brasil, sabemos que se trata de uma situação crônica. É também óbvio que grupos ou facções que não reconhecem a legitimidade de um Estado qualquer não se veem obrigados a respeitar a lei e o consequente monopólio da violência — embora, naturalmente, as revoluções, quando triunfam, imponham sua própria ordem jurídica e restabeleçam o monopólio.

Por fim, apesar de ser da própria natureza da lei que ela se aplique igualmente a tudo e a todos, isto não acontece sempre, como também sabem perfeitamente os brasileiros. Esta situação se deve a que as contradições entre a lei e a realidade concreta (ou seja, entre o que está previsto de forma abstrata e o que acontece de fato nos processos decisórios) são muitas vezes fortes demais. Assim, como se diz no Brasil, a lei é igual para todos, mas alguns são “mais iguais” que outros, ou ainda, a justiça e a cadeia são para os pobres. Isto, porém, é outro problema.

1 Para sentir as malhas do Estado, tente elaborar uma lista do que você é obrigado a fazer todos os dias. Ou, mais complicado ainda, uma lista do que você é obrigado a não fazer todos os dias.

2 Famílias que moram num determinado lugar há gerações são de repente notificadas de que o governo vai desapropriar suas casas para ali construir um Jóquei Clube. Quando as famílias protestam, o Estado não aceita os protestos, alegando que está agindo no interesse público. Isto é justo? O Estado tem razão? Existem hipóteses que favoreçam ambos os lados?

3 Muitas ruas das grandes cidades são guardadas por seguranças particulares pagos pelos moradores. Neste caso, não se estaria subtraindo soberania do Estado, uma vez que ele deixa de ter o monopólio do uso legítimo da violência?

4 Se você bate em sua mulher ou seu marido, está havendo uma violação do monopólio da violência exercida pelo Estado? Pense bem.

5 E se você dá umas palmadas em seu filho?

6 Você já deve ter visto, em algum artigo de revista ou fonte parecida, a expressão “um Estado dentro do Estado”. Você é capaz de imaginar, ou explicar, o que se quer dizer com isso?

7 Na sua opinião, existe uma espécie de hierarquia dos interesses públicos? Por exemplo, um determinado Estado prioriza a manutenção da ordem. Portanto subordina outro interesse público — vamos dizer, o de melhores salários para a maioria da população — ao da ordem. Como reivindicar melhores salários perturba a ordem, o interesse público da manutenção da ordem não permite o atendimento de outro interesse público, o de melhores salários. Que é que você acha desta e de outras hipóteses, fáceis de imaginar?

8 Você acha que o interesse público, representado pelo Estado, pode justificar a aplicação de penas (sanções) tais como algumas até hoje praticadas — garroteamento, enforcamento, eletrocussão, amputação de membros, internamento em clínicas psiquiátricas, condenação ao silêncio, fuzilamento, esterilização, açoite e outras, de que talvez você já tenha ouvido falar? Você acha que haveria casos especiais para a aplicação de alguma ou de todas essas penas?


continua na página 041...
______________________

Leia também:

João Ubaldo Ribeiro - Política: Estado e violência

João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".

João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.

João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

__________________

© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Bambina, 25 — Botafogo .
22251-050 — Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Tel: (021) 537-8770
— Fax:(021) 286-6755
http://www.novafronteira.com.br

Equipe de Produção
Regina Marques
Leila Name
Michelle Chao
Sofia Sousa
e Silva Marcio Araujo

Revisão
Angela Nogueira Pessôa

CIP-Brasil.
Catalogação-na-fonte S
indicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

Nenhum comentário:

Postar um comentário