João Ubaldo Ribeiro
Para meu amigo Glauber
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Estado e violência
O Estado representa o interesse público, embora muitas vezes defenda apenas os interesses das elites, das classes dominantes. Os motivos de interesse realmente público são poucos e relativos, no contexto político. Entretanto, ao menos de forma nominal (e com maiores ou menores benefícios para o cidadão comum, conforme o caso), o Estado representa sempre o interesse público, o bem-estar da população. Isto se expressa na ordem jurídica. A ordem jurídica rege o comportamento do cidadão, do próprio Estado e das relações entre o Estado e o cidadão.
No estado de direito, a lei — palavra usada aqui como sinônimo de ordem jurídica — subordina povo, governantes e instituições, existindo mesmo certos princípios básicos inalteráveis. A mudança da lei só pode ser feita sob o império da própria lei, pois é a ordem jurídica que estabelece as normas para a alteração de seu próprio conteúdo.
Só há, naturalmente, uma ordem jurídica: aquela vinculada ao próprio Estado. O Estado não pode reconhecer uma ordem jurídica à parte, pois, no momento em que o fizesse, incorporaria os elementos dessa ordem, transformando-os em parte de si mesmo, pois, afinal, só o Estado detém a soberania. No âmbito do Estado, a ordem jurídica se estende a tudo e a todos, sem excluir até mesmo os cidadãos estrangeiros que estejam em seu território, ou sob sua jurisdição a qualquer outro título.
Decorre daí que o Estado detém o monopólio das normas jurídicas. A norma pode não ser obedecida, mas essa desobediência não deve ser tolerada. Do contrário, não haveria sentido na existência da norma. Do que se depreende que o Estado exerce coerção sobre tudo o que está contido na ordem jurídica. Como a coerção é uma forma de violência (inclusive física, em muitos casos), o Estado detém, consequentemente, o monopólio legítimo da violência.
Mesmo que meu vizinho cometa uma flagrante violação da ordem jurídica, eu não posso condená-lo ou encarcerá-lo. Só quem pode é o Estado. Somente o Estado, em nome do interesse público, qualquer que seja ele na ocasião, é que pode fazer a guerra, conduzir a repressão à delinquência (mesmo quando essa delinquência consiste apenas em reivindicações populares que a lei decidiu considerar ilícitas), coagir, usar a violência, enfim.
Essa violência, na maior parte dos casos, é apenas latente, não concretamente exercida, embora se possa argumentar que o indivíduo contemporâneo de tal forma se acostumou à estruturação de sua vida pela ordem jurídica que apenas não mais nota que ela o violenta a todo instante. Mesmo que o Estado seja regido pela norma universal, segundo a qual, na órbita privada, “tudo o que não é proibido é permitido”, o indivíduo está sob a permanente pressão de não cometer, até por ignorância da lei, ato que seja proibido. Na órbita dos que ele sabe que são proibidos, ele percebe que a coerção do Estado se encontra na sanção aplicável a quem viola a norma. Genericamente, a violação da norma envolve uma sanção, isto é, medidas coercitivas contra o autor da violação, que podem ir, digamos, de uma repreensão até a condenação ao suplício e à morte. Somente a ordem jurídica, o Estado, pode obrigar, enfim, alguém ou alguma organização a fazer ou deixar de fazer alguma coisa.
É claro que este monopólio legítimo da violência é desafiado a todo momento, não só por indivíduos como por organizações. Em países como o Brasil, sabemos que se trata de uma situação crônica. É também óbvio que grupos ou facções que não reconhecem a legitimidade de um Estado qualquer não se veem obrigados a respeitar a lei e o consequente monopólio da violência — embora, naturalmente, as revoluções, quando triunfam, imponham sua própria ordem jurídica e restabeleçam o monopólio.
Por fim, apesar de ser da própria natureza da lei que ela se aplique igualmente a tudo e a todos, isto não acontece sempre, como também sabem perfeitamente os brasileiros. Esta situação se deve a que as contradições entre a lei e a realidade concreta (ou seja, entre o que está previsto de forma abstrata e o que acontece de fato nos processos decisórios) são muitas vezes fortes demais. Assim, como se diz no Brasil, a lei é igual para todos, mas alguns são “mais iguais” que outros, ou ainda, a justiça e a cadeia são para os pobres. Isto, porém, é outro problema.
1 Para sentir as malhas do Estado, tente elaborar uma lista do que você é obrigado a fazer todos os dias. Ou, mais complicado ainda, uma lista do que você é obrigado a não fazer todos os dias.
2 Famílias que moram num determinado lugar há gerações são de repente notificadas de que o governo vai desapropriar suas casas para ali construir um Jóquei Clube. Quando as famílias protestam, o Estado não aceita os protestos, alegando que está agindo no interesse público. Isto é justo? O Estado tem razão? Existem hipóteses que favoreçam ambos os lados?
3 Muitas ruas das grandes cidades são guardadas por seguranças particulares pagos pelos moradores. Neste caso, não se estaria subtraindo soberania do Estado, uma vez que ele deixa de ter o monopólio do uso legítimo da violência?
4 Se você bate em sua mulher ou seu marido, está havendo uma violação do monopólio da violência exercida pelo Estado? Pense bem.
5 E se você dá umas palmadas em seu filho?
6 Você já deve ter visto, em algum artigo de revista ou fonte parecida, a expressão “um Estado dentro do Estado”. Você é capaz de imaginar, ou explicar, o que se quer dizer com isso?
7 Na sua opinião, existe uma espécie de hierarquia dos interesses públicos? Por exemplo, um determinado Estado prioriza a manutenção da ordem. Portanto subordina outro interesse público — vamos dizer, o de melhores salários para a maioria da população — ao da ordem. Como reivindicar melhores salários perturba a ordem, o interesse público da manutenção da ordem não permite o atendimento de outro interesse público, o de melhores salários. Que é que você acha desta e de outras hipóteses, fáceis de imaginar?
8 Você acha que o interesse público, representado pelo Estado, pode justificar a aplicação de penas (sanções) tais como algumas até hoje praticadas — garroteamento, enforcamento, eletrocussão, amputação de membros, internamento em clínicas psiquiátricas, condenação ao silêncio, fuzilamento, esterilização, açoite e outras, de que talvez você já tenha ouvido falar? Você acha que haveria casos especiais para a aplicação de alguma ou de todas essas penas?
continua na página 041...
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Leia também:
João Ubaldo Ribeiro - Política: Que coisa é a Política
João Ubaldo Ribeiro - Política: Como a Política interessa a todos e a cada um (a)
João Ubaldo Ribeiro - Política: Como a Política interessa a todos e a cada um (b)
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João Ubaldo Ribeiro - Política: Estado e violência
João Ubaldo Ribeiro - Política: O que o Estado faz
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João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.
João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.
Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.
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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Bambina, 25 — Botafogo .
22251-050 — Rio de Janeiro — RJ — Brasil
Tel: (021) 537-8770
— Fax:(021) 286-6755
http://www.novafronteira.com.br
Equipe de Produção
Regina Marques
Leila Name
Michelle Chao
Sofia Sousa
e Silva Marcio Araujo
Revisão
Angela Nogueira Pessôa
CIP-Brasil.
Catalogação-na-fonte S
indicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32
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