domingo, 15 de janeiro de 2023

João Ubaldo Ribeiro - Política: O Estado (b)

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


3
O Estado


continuando...


Entre os muitos e variadíssimos caminhos que a evolução de UghUgh podia tomar, vamos imaginar que os conflitos de terras entre pastores e agricultores chegassem a um ponto tão crítico que se declarasse uma guerra civil, com a vitória dos pastores. Imediatamente, os pastores se organizariam para manter sua hegemonia, e seus líderes seriam os líderes de toda a sociedade. Os interesses prevalentes seriam os dos pastores, e os conflitos seriam arbitrados também pelos pastores. Os costumes e os valores tenderiam, com o tempo, a enobrecer a atividade do pastoreio e as com ela relacionadas (como cavalgar, por exemplo) e a aviltar as atividades de cultivo da terra. As atividades nobres poderiam ser proibidas aos cultivadores de terras, o que, no caso de cavalgar, traria ainda a vantagem adicional de não permitir que os dominados manipulassem uma arma de combate poderosa, o próprio cavalo.
As religiões poderiam desenvolver mitos adequados à visão de mundo dos pastores, com deuses semelhantes a bois ou deuses-pastores, ou ainda narrativas contendo um irmão agricultor e um irmão pastor, aquele vil, este nobre — o que, aliás, de certa forma ocorre com a história de Caim e Abel, pois Jeová recusa a oferenda do agricultor Caim sem maiores explicações. Enfim, a gama de possibilidades é muito ampla, como o estudo da história deixa patente.
Com a vitória, os pastores de Ugh-Ugh resolveram o conflito básico de sua sociedade e, pelo menos por enquanto, se entronizaram solidamente no poder, detendo o controle das decisões públicas. Com o passar do tempo, esta situação pode não permanecer tão clara, pois os sacerdotes (originados da classe dos pastores e responsáveis pela religião dos pastores, mas não obstante um grupo com relativa autonomia), os militares e outras tantas categorias assumem papéis que tornam obscura a relação principal (dominantes-dominados). De qualquer forma, a tendência dos vitoriosos é criar todo tipo de mecanismo para se estabilizar no poder. E, desta maneira, a diferença entre governantes e governados, estabelecida com a vitória dos pastores, entra em processo de institucionalização.
Não é complicado entender o que vem a ser institucionalização. Vamos supor que depois da vitória um dos pastores se haja tornado chefe e, durante o tempo em que viveu, tenha gradualmente assumido uma série de responsabilidades e tarefas importantes para seu povo. Com a morte do chefe, o previsível é que se indique alguém para assumir mais ou menos o mesmo papel. Ou seja, existe um papel social e político a ser cumprido, independente da pessoa que o desempenhe.
A organização só se manterá se houver mais do que o chefe: se houver a chefia. No momento em que a chefia passa a ter existência (mesmo que abstrata, expressa em símbolos como o cetro e em atitudes como a deferência da sociedade) independente do chefe, essa chefia se torna uma instituição, há um processo de institucionalização. Com a institucionalização da chefia, institucionaliza-se também o processo sucessório e surgem inúmeras outras instituições, paralelas ou corolárias. Para fazer uma comparação rápida com o Brasil de hoje, temos instituições como a Presidência da República, o Congresso Nacional, as Forças Armadas, os tribunais, a Constituição e assim por diante.
A esse conjunto de instituições dá-se o nome de Estado, seja no Brasil ou em Ugh-Ugh. Na realidade, pode-se dizer que o Estado surge em dois passos: a) o estabelecimento da diferença entre governantes e governados; b) a institucionalização dessa diferença. Onde quer que existam essas condições, existirá um Estado, quer ele tenha presidente, rei ou chefe, leis escritas ou não, três Poderes ou não. E o funcionamento desse Estado, das suas instituições e das que lhe são acessórias ou paralelas, pode ser sempre compreendido à luz da história dessa sociedade, de sua estrutura social e econômica, pois o Estado é sempre lógico, ou seja, é a decorrência lógica de uma situação social concreta.
As instituições estão sempre compreendidas em um arcabouço muito amplo, chamado ordem jurídica, quer dizer, um conjunto de normas de aplicabilidade geral, que regem o funcionamento da sociedade. Em Ugh-Ugh, mesmo muito tempo depois do estabelecimento de um Estado complexo, é bem possível que as normas jurídicas, o que hoje chamamos de leis, fossem não-escritas e misturadas com normas religiosas, morais e outras. Isto ainda existe hoje em dia, mais o comum é que a ordem jurídica seja mais ou menos distinta da ordem religiosa e da moral, com implicações que seria excessivamente longo examinar aqui.
Deve ser sempre levado em conta que o exercício de imaginação histórica que acabamos de fazer não pode ser compreendido de maneira demasiadamente literal. Foi o resumo e a simplificação de processos que se desenrolaram através de milênios, apenas um recurso para que se compreenda que os fatos históricos não se dão ao acaso e que existe racionalidade e funcionalidade em muitas coisas nas quais não percebemos, de primeira, estes elementos.
Temos então que, com o surgimento de atividades e, subseqüentemente, de interesses diversos numa sociedade antes indiferenciada, declaram-se conflitos entre grupos de interesse. Esses conflitos são resolvidos com o domínio de um grupo por outro, estabelecendo-se uma diferença entre governantes e governados. Essa diferença é institucionalizada, criando-se uma ordem jurídica. Assim está formado, em seus traços essenciais, o Estado. Existe Estado, pois, em toda sociedade política e juridicamente organizada. Pode-se dizer ainda que o Estado é a organização política e jurídica da sociedade, que muitas vezes, como aprenderemos, chega a confundir-se com essa mesma sociedade.

1 Numa certa coletividade isolada e primitiva, os chefes são sempre substituídos quando morre o ocupante do cargo, através de uma longa série de combates de morte entre os pretendentes. Você acha que existe Estado nessa comunidade?

2 Duas sociedades imperialistas, Takuc e Babuc, fazem freqüentes guerras contra vizinhos mais fracos. Takuc mata todos os seus inimigos vencidos, pois usa como escravos certas camadas de sua própria sociedade. Babuc captura os vencidos e os escraviza. Imagine uma “história” para cada uma dessas sociedades, inclusive projetando seu futuro e descrevendo suas instituições.

3 Você acha que as instituições religiosas, de modo geral, surgem antes ou depois das instituições políticas?

4 Você acha que, se Ugh-Ugh não tivesse o menor contato com outros povos, hostis ou não, a profissão militar ugh-ughiana terminaria por institucionalizar-se da mesma forma?

5 Você acredita que, sem absolutamente qualquer avanço tecnológico, a propriedade privada surgiria em Ugh-Ugh de qualquer maneira?

6 Invente uma Ugh-Ugh completa, em que os agricultores tivessem triunfado sobre os pastores. Quanto mais detalhes, melhor.

7 As nações indígenas de que você já ouviu falar são Estados?

8 Na Ugh-Ugh em que os pastores ganharam, é considerada uma grande humilhação, para uma pessoa bem situada, estar em contato direto com o chão, a terra. Isto explica por que os túmulos das elites dominantes são sempre de pedra, muito acima do chão? Isto explica por que os bichos que vivem em árvores são reverenciados? Isto explica por que é um elogio chamar uma pessoa de “pássaro” e um insulto chamá-la de “minhoca”? Isto explica por que “morrer”, na língua ugh-ughiana, é a mesma palavra que cair?


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João Ubaldo Ribeiro - Política: O Estado (b)


João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".

João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.

João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32


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