quarta-feira, 19 de outubro de 2022

João Ubaldo Ribeiro - Política: Como a Política interessa a todos e a cada um (a)

QUEM Manda, POR QUE Manda, COMO Manda 

João Ubaldo Ribeiro 


Para meu amigo Glauber


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Como a Política interessa a todos e a cada um


As formas de exercício do poder são às vezes difíceis de pilhar. Quando nos dizem que não nos é permitido (no caso dos brasileiros do sexo masculino) passar dos 17 anos sem nos alistarmos nas Forças Armadas, é evidente que um poder se exerce sobre nós de forma bastante palpável. Entretanto, ao pensarmos ou agirmos de determinadas maneiras que, não raro, julgamos naturais ou espontâneas, esse poder é menos fácil de visualizar. É o que se dá, por exemplo, quando mantemos preconceitos contra o nosso semelhante, por ser ele negro ou branco, protestante ou católico, ou por falar com um sotaque diferente do nosso. A existência de preconceitos não é natural. O homem não nasce com preconceitos, ele os aprende socialmente. Ao aprendê-los, é claro que seu comportamento está sendo influenciado. 

 E igualmente claro, por conseguinte, que ele está sendo submetido a algum poder. Daí raciocinar-se que o preconceito racial, para ficarmos somente em um dos muitos que o espírito humano infelizmente ainda abriga, tem origem e funcionalidade políticas, ou seja, tem servido para justificar formas de exploração e dominação, assumindo muitas faces, de acordo com as circunstâncias. O que se pretende mostrar com isso é que, queiramos ou não, estamos imersos num processo político que penetra todas as nossas atitudes, toda a nossa maneira de ser e agir, até mesmo porque a educação, tanto a doméstica quanto a pública, é também uma formação política. 

 Com algum esforço, podemos perceber em que medida estamos submetidos e podemos atuar (politicamente, é óbvio) para procurar alterar a situação, se ela contraria o nosso interesse, mesmo que seja apenas um interesse sem conteúdo material, de natureza moral ou ética. Cada ato nosso, ou cada maneira de ver as coisas, poder ser examinado à luz da concepção de Política exposta aqui, às vezes com resultados chocantes, se temos a sorte de ser suficientemente honestos e objetivos. 

 Quando estamos saindo para o trabalho de manhã e tomamos o trem, o ônibus ou o metrô, enquanto alguém em melhor situação toma um automóvel com motorista, não estamos pensando em Política. Quando sonhamos “ficar sem fazer nada” no futuro e apenas gozar a vida, também não estamos pensando em Política. 

 Contudo, se meditarmos um pouco, veremos que para conseguir juntar nosso pé-de-meia é necessário uma porção de coisas, muitas mais do que seria possível arrolar. É necessário que tenhamos a oportunidade de nos qualificar para exercer uma ocupação. É necessário que também nos seja dada a oportunidade de acesso a essa ocupação, pois, como sabemos, nem sempre as posições são conferidas por mérito. É necessário ainda, para encerrar uma lista que poderia ficar longuíssima, que, na sociedade em que vivemos, seja permitido que planejemos nossa vida, que juntemos dinheiro, que façamos certos investimentos, até tenhamos empregados, por exemplo. 

 Ora, como se obtém tudo isso, até mesmo ambicionar legitimamente um carro com motorista igual ao do nosso vizinho mais afortunado? Tudo isso se obtém através de um processo político. É um processo político que vai definir todas as condições para a acumulação do pé-de-meia mencionado acima. Se o processo político, por exemplo, resulta em que não há oportunidades de educação para pessoas como nós, é evidente que esse processo nos prejudica (e, paralelamente, beneficia e privilegia outros). 

 Assim, quando estamos pensando em cuidar de nossa vida apenas, sendo “apolíticos”, na verdade estamos somente com a vista curta ou então somos comodistas, não achando que as coisas estão tão ruins assim, para que procuremos fazer algo para mudá-las. 

 Quando alguém diz, como é frequente lermos em entrevistas aos jornais, que “não liga para a Política”, está naturalmente exercendo um direito que lhe é facultado pelo sistema político em que vive. Ou seja, em última análise, está sendo um político conservador, não vê necessidade de mudanças. Então não é apolítico, palavra que indica “ausência de Política”. No máximo, falta-lhe a consciência de seu significado e papel político — significado e papel que todos têm —, uma coisa muito diferente. Pois o apolítico não existe, é somente uma maneira de falar, por assim dizer. 

 A Política, o jogo de poder — a negociação para se obter uma decisão qualquer — está em toda parte, na conduta humana. Quando um casal, no início de seu relacionamento, vai gradualmente marcando os papéis dentro do lar (eu mando aqui, você manda ali e assim por diante), estamos diante de um mini processo político. Da mesma forma, quando os garotos de uma rua se organizam num time de futebol e vão atribuindo responsabilidades a alguns, mesmo informalmente, também há um mini processo político. 

 Entretanto, não devemos levar ao exagero esta visão das coisas, que aqui está servindo somente para esclarecer o que poderíamos chamar, na falta de melhores palavras, a essência da Política, sua natureza, sua dinâmica, seu funcionamento. Se os garotos do clube de futebol realizarem uma eleição para a diretoria de sua entidade, essas eleições carecerão de um elemento que ainda precisamos acrescentar à noção de Política. E que sua realização e seu resultado não interessam à sociedade como um todo, pelo menos na esmagadora maioria dos casos imagináveis. O elemento que falta é, portanto, ligado à natureza pública da Política. 

 A própria palavra “Política” vem de polis, que significa, mais ou menos, “cidade”, em grego antigo. Ou seja, se o Zezinho ganha a presidência do clube contra o Toninho, este não é rigorosamente um fato político, pois que não interessa à polis, à sociedade como um todo. Se discuto com minha mulher sobre a que cinema vamos hoje à noite, isto não é normalmente classificável como um fato político, embora se trate também do encaminhamento de interesses para a obtenção de uma decisão. Não há aí, como no caso dos meninos, o elemento de interesse público, da coletividade em seu sentido mais lato, da sociedade. 

 Mas aqui é preciso que apontemos uma sutileza. Certo, a discussão entre marido e mulher, sobre a que cinema vão, não é política. Mas se, nessa discussão, o marido acaba sempre por impor sua vontade, se a mulher nunca tem direito a uma opinião, se é forçada até mesmo a fingir que gosta de um filme que detesta — então isto pode estar refletindo uma situação específica da mulher naquela determinada sociedade. Ou seja, uma situação de inferioridade social, de subordinação imposta. 

 Não se trata mais de um problema exclusivamente pessoal. Trata-se do reflexo pessoal de um problema genérico, um problema que afeta toda a sociedade, pois que afeta todas ou grande número de mulheres. Apesar de a solução para o problema desse casal poder vir através de saídas individuais (como, por exemplo, uma bem-sucedida revolta da mulher), a solução individual não alterará a situação geral da mulher, no contexto que estamos descrevendo. 

 Vê-se com isso que os fatos podem adquirir significado político, mesmo que originalmente não o tenham. Se a mulher do exemplo dado, em vez de ameaçar pessoalmente o marido, decide reunir outras mulheres na mesma condição que ela para, juntas, utilizando meios de esclarecimento, persuasão e pressão — buscando a modificação do comportamento social, enfim —, tentarem reverter a situação, essa mulher estará exercendo uma atividade política. Estará procurando encaminhar o processo decisório, em sua coletividade, no sentido de obter a consecução dos seus interesses (corporificados em objetivos), ou seja, o estabelecimento de um relacionamento igualitário ou equânime com o lado masculino da sociedade. 

 Com isso, essas mulheres poderão conseguir leis que as protejam (e a lei, desde o projeto à sanção, não passa do fruto de um processo decisório), poderão modificar a mentalidade das pessoas, poderão — para usarmos aquela palavrinha vaga mas útil — alterar a estrutura de poder em sua sociedade.

 Chegamos desta maneira a contornos mais nítidos, em nossa conceituação de Política. A Política não se ocupa de todos os processos de formulação e tomada de decisões, mas somente daqueles que afetem, de alguma forma, o conjunto dos cidadãos. A maior parte desses processos, como se pode imaginar, é extremamente complicada. Por exemplo, o processo decisório que as pessoas mais identificam com a Política são as eleições — a escolha de governantes através do voto. Na verdade, no momento em que o povo vai às urnas para votar, está aí, talvez, a parte menos complicada do processo. Antes disso já se escolheram candidatos, já houve disputas dentro dos partidos, já houve propaganda, já se praticaram inúmeros atos com objetivo eleitoral, já entraram em jogo as percepções dos eleitores, e assim por diante. 

 A Política não é, pois, apenas uma coisa que envolve discursos, promessas, eleições e, como se diz frequentemente, “muita sujeira”. Não é uma coisa distinta de nós. É a condução da nossa própria existência coletiva, com reflexos imediatos sobre nossa existência individual, nossa prosperidade ou pobreza, nossa educação ou falta de educação, nossa felicidade ou infelicidade. 

 É claro que uma pessoa pode não se preocupar com a Política e os políticos. Trata-se de uma escolha pessoal perfeitamente respeitável. Mas, quando se age assim, deve-se ter consciência das implicações, pois se trata de uma atitude de passividade que sempre favorece a quem, em dado momento, está numa situação de mando dentro da sociedade. Além disso, determinadas angústias e insatisfações individuais (por mais estritamente pessoais que pareçam, como na história do casal que briga por causa do cinema) podem ter suas raízes em fatos políticos, e só politicamente serão resolvidas. 

 É também comum que se considere a Política uma atividade ou ocupação insuportável, só exercida por gente de mau caráter, venal, mentirosa e enganadora. Isto é uma grave injustiça. Se pensarmos bem, muitos dos grande homens que admiramos foram políticos, ou são admiráveis devido precisamente às conseqüências políticas de seus atos — sua atividade política, enfim, quer estivessem eles pensando nisto ou não. Devemos lembrar que, se achamos que a Política está entregue a gente ruim, um pouco da culpa, ou grande parte dela, cabe a nós, “pessoas boas”, que não queremos nos envolver com essa “atividade suja e incompreensível”. 

 Não há nada de sujo, intrinsecamente, na atividade política. Os políticos (no sentido mais estreito da palavra, porque, no sentido mais amplo, os políticos somos todos nós, cidadãos, mesmo que não queiramos ou saibamos) são gente como nós. De certa forma, pouca coisa pode haver de mais nobre do que a dedicação à coletividade, quando essa dedicação não é ditada por interesses pessoais ou mesquinhos, mas por crenças ou ideais que, mesmo erradamente, tenham como objetivo o bem-estar público. 

 Se achamos que os políticos são, em sua maioria, pouco dignos de confiança, corruptos, incompetentes e assim por diante, devemos verificar se esta nossa opinião não se estende também a outros setores e categorias da sociedade, tais como médicos, mecânicos, banqueiros, técnicos de televisão, motoristas de táxi, açougueiros, comerciantes, advogados. Pois aquilo que se costuma chamar, equivocadamente, de “classe política” nada mais é do que um grupo de pessoas surgidas dentro de nossa própria sociedade. Não se trata de marcianos ou de animais com mentes e organismos diversos dos nossos. Se todos eles são ruins de forma tão radical, o corolário é que todos nós somos ruins, já que, parafraseando uma frase bíblica, uma árvore boa não pode dar tantos frutos maus. 

 Se não gostamos do comportamento dos políticos e do funcionamento do sistema e não fazemos nada quanto a isso, estamos sendo políticos: estamos contribuindo para a perpetuação de uma situação política indesejável ou inaceitável. Se queremos fazer alguma coisa para melhorar a situação, também estamos sendo políticos, pois a única via de ação possível, neste caso, é a Política. 


continua na página 012...

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Leia também:

João Ubaldo Ribeiro - Política: Que coisa é a Política
João Ubaldo Ribeiro - Política: Como a Política interessa a todos e a cada um (a)
João Ubaldo Ribeiro - Política: Como a Política interessa a todos e a cada um (b)
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João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi romancista, cronista, jornalista, tradutor e professor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras ocupou a cadeira n.º 34. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões. Foi um grande disseminador da cultura brasileira, sobretudo a baiana. Entre suas obras que fizeram grande sucesso encontram-se "Sargento Getúlio", "Viva o Povo Brasileiro" e "O Sorriso do Lagarto".

João Ubaldo Ribeiro nasceu na ilha de Itaparica, na Bahia, no dia 23 de janeiro de 1941, na casa de seus avós. Era filho dos advogados Manuel Ribeiro e de Maria Filipa Osório Pimentel.

João Ubaldo foi criado até os 11 anos, em Sergipe, onde seu pai trabalhava como professor e político. Fez seus primeiros estudos em Aracaju, no Instituto Ipiranga.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense. Em 1955 mudou-se para Salvador, e ingressou no Colégio da Bahia. Estudou francês e latim.

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© 1998 by João Ubaldo Ribeiro
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R369p
Ribeiro, João Ubaldo 3 ed. Política; quem manda, por que manda, como manda / João Ubaldo Ribeiro. — 3.ed.rev. por Lucia Hippolito. — Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Apêndice
1. Ciência política. I. Título
CDD 320
CDU 32

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