Maria Firmina dos Reis
Gupeva
I
Era uma bela tarde: o sol de agosto animador e grato declinava já seus
fúlgidos raios; no ocaso ele derramava um derradeiro olhar sobre a terra e
sobre o mar que, a essa hora mágica do crepúsculo, estava calmo e bonançoso, como uma criança adormecida nos braços de sua mãe.
Seus raios desenhavam no horizonte as cores cambiantes do prisma, e
desciam com melancólico sorriso as planuras da terra, e a superfície do mar.
Uma tarde de agosto nas nossas terras do norte tem um encanto particular: quem ainda as não gozou, não conhece na vida o que há de mais belo,
mais poético, não conhece a hora do dia que o Criador nos deu para esquecermos todas as ambições da vida, para folhearmos o livro do nosso passado,
buscarmos nela a melhor página, a única dourada que nela existe, e aí nos
deleitarmos na recordação saudável da hora feliz da nossa existência: aquele
que ainda a não gozou é como se seus olhos vivessem cerrados à luz; é como
se seu coração empedernido nunca houvera sentido uma doce emoção, é
como se à voz da sua alma nunca uma voz amiga houvera respondido.
O que a gozou, sim; o que a goza, esse adivinha os prazeres do paraíso,
sonha as poesias do céu, escuta a voz dos anjos na morada celeste; esquece
as dores da existência e embala-se na esperança duma eternidade risonha,
ama o seu Deus e lhe dispensa afetos; porque nessa hora como que a face
do Senhor se nos patenteia nos desmaiados raios do sol, no manso gemer
da brisa, o saudoso murmúrio das matas, na vasta superfície das águas, na
ondulação mimosa dos palmares, no perfume odorífero das flores, no canto
suavíssimo das aves, na voz reconhecida da nossa alma!
Era pois como dissemos, uma bela tarde de agosto, e dessa encantadora
tarde gozavam com delícia os habitantes da Bahia, nessa época bem raros,
e ainda incultos, ou quase selvagens. O disco do sol amortecido em seu
último alento beijava as enxárcias dum navio ancorado na Baía de Todos os
Santos, a cuja frente eleva-se hoje a bela cidade de S. Salvador, e afagava
mansamente as faces pálidas dum jovem oficial, que à hora do crepúsculo,
com os olhos fitos em terra parecia devorado por um ardentíssimo desejo,
por um querer que a seu pesar lhe atraía para onde quer que fosse todos os
sentimentos da sua alma.
Sonhava acordado; mas era esse sonhar desesperado, ansioso, frenético
como o sonhar dum louco: era um sonhar doído, cansado, incômodo, como o
sonhar do homem que já não tem uma esperança; era o sonhar frenético de
Napoleão, nas solidões de Santa Helena, era o sonhar doído de Luís XVI na
véspera do suplício. Encostado ao castelo da popa, o mancebo parecia nada
ver do que lhe ia em torno, nem mesmo o sol, que dava-lhe então seu derradeiro e melancólico adeus, escondendo seu disco nas regiões do oceano.
Patética, sublime, e quase misteriosa era a despedida desse sol, brincando tristemente nos cabelos acetinados do moço oficial, e fugindo vagaroso, e de novo voltando, envolvendo-o pelas espáduas, como em um último
abraço, e depois mergulhando-se pressuroso nas trevas, como um amigo que
junto do sepulcro beija as faces geladas e lívidas do amigo, e corre com a
saudade no coração a cobrir seus membros de lutuosas vestes.
O navio em que acabamos de ver esse moço, que ainda mal conhecemos, era O Infante de Portugal, vaso de guerra, que havia trazido à Bahia
Francisco Pereira Coutinho, donatário daquela capitania, depois que a
célebre Paraguaçu, princesa do Brasil, cedera seus direitos em favor da coroa
de Portugal. O infante acabava de receber as últimas ordens de Coutinho, e
velejava no dia seguinte em demanda do Tejó.
Voltemos pois ao mancebo que, conquanto fosse noite, permanecia
ainda no mesmo lugar em que o encontramos. Em seus grandes olhos negros
transparecia todo desassossego dum coração agitado. Sua idade não podia
exceder a vinte e um anos. Era jovem e belo; o uniforme de marinha fazia
sobressair as delicadas formas do seu talhe esbelto e juvenil.
Mas as trevas eram já mais densas e o coração do moço confrangia-se
e redobrava de ansiedade. Seus olhos ardentes pareciam querer divisar através dessas matas ainda quase virgens um objeto qualquer. Sem dúvida
nesse lugar outrora solitário, hoje populoso e civilizado, havia alguma coisa
que o mancebo amava mais que a vida, em que fazia consistir toda a sua
felicidade, resumia todo o seu querer, todas as suas ambições, toda a
sua ventura. Havia aí algum ente extremamente amado; alguém que atraía
para si todas as faculdades, toda a alma do mancebo europeu.
— Que tens tu, meu querido Gastão? — interpelou-lhe um outro jovem oficial, tocando-lhe amigavelmente no ombro. — O que te aflige? Estás triste!..
O moço interrogado estremeceu ligeiramente, como quem desperta de
um profundo sono; e fitando o seu interlocutor, com pungente sorriso, disse:
— Triste... sim, Alberto, contrariado, meu caro amigo.
— Tu, meu caro? E por quê? Tornou-lhe aquele a quem este designara
Alberto. O que te aconteceu, caro Gastão?
— Sairemos amanhã!... respondeu Gastão. Nestas duas únicas palavras
encerrava-se tudo quanto o homem pode sofrer de mais doloroso, amargo,
e acerbo na carreira da vida; e por isso o acento com que as proferia calou
n’alma de Alberto. Este contemplou-o por algum tempo com uma curiosidade travada de surpresa, e sem poder compreender o acento de tais palavras, nem qual a causa de tão grande amargura, disse-lhe:
— É isso o que te contraria, e te aflige?...
Gastão ergueu a fronte até então abatida, e deixando cair suas vistas
sobre seu amigo, murmurou:
— Alberto, para que me interrogas? Podes acaso compreender o martírio do meu coração?!
— Ah! Pensas nela?!... exclamou sorrindo-se o jovem Alberto. — Ora,
Gastão, pelo céu! Meu amigo, creio que estás louco.
Gastão abaixou novamente a cabeça, e balbuciou:
— Embora... mas... era um delírio, que poderia ter suas consequências. Alberto pensou nisso e procurou dissuadi-lo. — Gastão, – disse procurando tomar-lhe entre as suas mãos, – que loucura meu amigo, que
loucura a tua apaixonares-te por uma indígena do Brasil; por uma mulher
selvagem, por uma mulher sem nascimento, sem prestígio; ora, Gastão sê
mais prudente; esquece-a.
— Esquecê-la! – exclamou o moço apaixonado, – nunca!
— Tanto pior, – lhe tornou o outro, – será para ti um constante martírio.
— E por quê?
— E por quê?! Porque ela não pode ser tua mulher, visto que é muito
inferior a ti; porque tu não poderás viver junto dela a menos que intentasses
cortar a tua carreira na marinha, a menos que desprezando a sociedade te
quisesses concentrar com ela nestas matas. Gastão, em nome da nossa amizade, esquece-a.
— Pede à terra que esqueça seu constante movimento, ao vento que
cesse o seu girar contínuo, às flores que transformem seus odores em pestilentos cheiros, às aves que emudeçam as galas da madrugada, – murmurou
Gastão, com melancolia.
continua na página 154...Gupeva - I (Era uma bela tarde)
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.
Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres.
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.
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