terça-feira, 12 de setembro de 2023

Gupeva - I (Era uma bela tarde)

Maria Firmina dos Reis


Gupeva

I 


Era uma bela tarde: o sol de agosto animador e grato declinava já seus fúlgidos raios; no ocaso ele derramava um derradeiro olhar sobre a terra e sobre o mar que, a essa hora mágica do crepúsculo, estava calmo e bonançoso, como uma criança adormecida nos braços de sua mãe.
Seus raios desenhavam no horizonte as cores cambiantes do prisma, e desciam com melancólico sorriso as planuras da terra, e a superfície do mar.
Uma tarde de agosto nas nossas terras do norte tem um encanto particular: quem ainda as não gozou, não conhece na vida o que há de mais belo, mais poético, não conhece a hora do dia que o Criador nos deu para esquecermos todas as ambições da vida, para folhearmos o livro do nosso passado, buscarmos nela a melhor página, a única dourada que nela existe, e aí nos deleitarmos na recordação saudável da hora feliz da nossa existência: aquele que ainda a não gozou é como se seus olhos vivessem cerrados à luz; é como se seu coração empedernido nunca houvera sentido uma doce emoção, é como se à voz da sua alma nunca uma voz amiga houvera respondido.
O que a gozou, sim; o que a goza, esse adivinha os prazeres do paraíso, sonha as poesias do céu, escuta a voz dos anjos na morada celeste; esquece as dores da existência e embala-se na esperança duma eternidade risonha, ama o seu Deus e lhe dispensa afetos; porque nessa hora como que a face do Senhor se nos patenteia nos desmaiados raios do sol, no manso gemer da brisa, o saudoso murmúrio das matas, na vasta superfície das águas, na ondulação mimosa dos palmares, no perfume odorífero das flores, no canto suavíssimo das aves, na voz reconhecida da nossa alma! 
Era pois como dissemos, uma bela tarde de agosto, e dessa encantadora tarde gozavam com delícia os habitantes da Bahia, nessa época bem raros, e ainda incultos, ou quase selvagens. O disco do sol amortecido em seu último alento beijava as enxárcias dum navio ancorado na Baía de Todos os Santos, a cuja frente eleva-se hoje a bela cidade de S. Salvador, e afagava mansamente as faces pálidas dum jovem oficial, que à hora do crepúsculo, com os olhos fitos em terra parecia devorado por um ardentíssimo desejo, por um querer que a seu pesar lhe atraía para onde quer que fosse todos os sentimentos da sua alma.
Sonhava acordado; mas era esse sonhar desesperado, ansioso, frenético como o sonhar dum louco: era um sonhar doído, cansado, incômodo, como o sonhar do homem que já não tem uma esperança; era o sonhar frenético de Napoleão, nas solidões de Santa Helena, era o sonhar doído de Luís XVI na véspera do suplício. Encostado ao castelo da popa, o mancebo parecia nada ver do que lhe ia em torno, nem mesmo o sol, que dava-lhe então seu derradeiro e melancólico adeus, escondendo seu disco nas regiões do oceano.
Patética, sublime, e quase misteriosa era a despedida desse sol, brincando tristemente nos cabelos acetinados do moço oficial, e fugindo vagaroso, e de novo voltando, envolvendo-o pelas espáduas, como em um último abraço, e depois mergulhando-se pressuroso nas trevas, como um amigo que junto do sepulcro beija as faces geladas e lívidas do amigo, e corre com a saudade no coração a cobrir seus membros de lutuosas vestes.
O navio em que acabamos de ver esse moço, que ainda mal conhecemos, era O Infante de Portugal, vaso de guerra, que havia trazido à Bahia Francisco Pereira Coutinho, donatário daquela capitania, depois que a célebre Paraguaçu, princesa do Brasil, cedera seus direitos em favor da coroa de Portugal. O infante acabava de receber as últimas ordens de Coutinho, e velejava no dia seguinte em demanda do Tejó.
Voltemos pois ao mancebo que, conquanto fosse noite, permanecia ainda no mesmo lugar em que o encontramos. Em seus grandes olhos negros transparecia todo desassossego dum coração agitado. Sua idade não podia exceder a vinte e um anos. Era jovem e belo; o uniforme de marinha fazia sobressair as delicadas formas do seu talhe esbelto e juvenil.
Mas as trevas eram já mais densas e o coração do moço confrangia-se e redobrava de ansiedade. Seus olhos ardentes pareciam querer divisar através dessas matas ainda quase virgens um objeto qualquer. Sem dúvida nesse lugar outrora solitário, hoje populoso e civilizado, havia alguma coisa que o mancebo amava mais que a vida, em que fazia consistir toda a sua felicidade, resumia todo o seu querer, todas as suas ambições, toda a sua ventura. Havia aí algum ente extremamente amado; alguém que atraía para si todas as faculdades, toda a alma do mancebo europeu.

— Que tens tu, meu querido Gastão? — interpelou-lhe um outro jovem oficial, tocando-lhe amigavelmente no ombro. — O que te aflige? Estás triste!..

O moço interrogado estremeceu ligeiramente, como quem desperta de um profundo sono; e fitando o seu interlocutor, com pungente sorriso, disse:

— Triste... sim, Alberto, contrariado, meu caro amigo.

— Tu, meu caro? E por quê? Tornou-lhe aquele a quem este designara Alberto. O que te aconteceu, caro Gastão?

— Sairemos amanhã!... respondeu Gastão. Nestas duas únicas palavras encerrava-se tudo quanto o homem pode sofrer de mais doloroso, amargo, e acerbo na carreira da vida; e por isso o acento com que as proferia calou n’alma de Alberto. Este contemplou-o por algum tempo com uma curiosidade travada de surpresa, e sem poder compreender o acento de tais palavras, nem qual a causa de tão grande amargura, disse-lhe: 

— É isso o que te contraria, e te aflige?...

Gastão ergueu a fronte até então abatida, e deixando cair suas vistas sobre seu amigo, murmurou:

— Alberto, para que me interrogas? Podes acaso compreender o martírio do meu coração?!

— Ah! Pensas nela?!... exclamou sorrindo-se o jovem Alberto. — Ora, Gastão, pelo céu! Meu amigo, creio que estás louco.

Gastão abaixou novamente a cabeça, e balbuciou:

— Embora... mas... era um delírio, que poderia ter suas consequências. Alberto pensou nisso e procurou dissuadi-lo. — Gastão, – disse procurando tomar-lhe entre as suas mãos, – que loucura meu amigo, que loucura a tua apaixonares-te por uma indígena do Brasil; por uma mulher selvagem, por uma mulher sem nascimento, sem prestígio; ora, Gastão sê mais prudente; esquece-a.

— Esquecê-la! – exclamou o moço apaixonado, – nunca!

— Tanto pior, – lhe tornou o outro, – será para ti um constante martírio.

— E por quê?

— E por quê?! Porque ela não pode ser tua mulher, visto que é muito inferior a ti; porque tu não poderás viver junto dela a menos que intentasses cortar a tua carreira na marinha, a menos que desprezando a sociedade te quisesses concentrar com ela nestas matas. Gastão, em nome da nossa amizade, esquece-a.

— Pede à terra que esqueça seu constante movimento, ao vento que cesse o seu girar contínuo, às flores que transformem seus odores em pestilentos cheiros, às aves que emudeçam as galas da madrugada, – murmurou Gastão, com melancolia.

continua na página 154...
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Gupeva - I (Era uma bela tarde)
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Maria Firmina dos Reis nasceu em São Luís, no Maranhão, no dia 11 de outubro de 1825. Filha bastarda de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis. Foi uma escritora brasileira, considerada a primeira romancista brasileira.
Em 1847, aos 22 anos, ela foi aprovada em um concurso público para a Cadeira de Instrução Primária, sendo assim a primeira professora concursada de seu Estado. Maria demonstrou sua afinidade com a escrita ao publicar “Úrsula” em 1859, primeiro romance abolicionista, primeiro escrito por uma mulher negra brasileira.
O romance “Úrsula” consagrou Maria Firmina como escritora e também foi o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente. Em 1887, no auge da campanha abolicionista, a escritora publica o livro “A Escrava”, reforçando sua postura antiescravista.

Ao aposentar-se, em 1880, fundou uma escola mista e gratuita. Maria morre aos 92 anos, na cidade de Guimarães, no dia 11 de novembro de 1917.
Em 1975, Maria recebe uma homenagem de José Nascimento Morais Filho que publica a primeira biografia da escritora, Maria Firmina: fragmentos de uma vida.
A importância da obra de Firmina, primeira escritora negra de que se tem notícia em nossa literatura, se deve ao pioneirismo na denúncia da opressão a negros e mulheres no Brasil do século XIX. Antes do Navio negreiro de Castro Alves, declamado pela primeira vez em 1868, Firmina já descrevia em seu livro Úrsula, de 1859, a crueldade do tráfico de pessoas sequestradas na África e transportadas nos porões dos “tumbeiros”. Neste mesmo romance, a crítica da escritora abrange o retrato lamentável da condição feminina da época ao delinear personagens como o pai de Tancredo ou o comendador, tiranos não só de escravos, mas também de mulheres. 
Maria Firmina foi uma voz profundamente legítima e dissonante que não encontrou acolhida e reconhecimento em seu tempo. Longe de fracassar, essa voz ressoa hoje cheia de significado, recriminando males que ainda assombram e permeiam nossa sociedade.

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