terça-feira, 12 de setembro de 2023

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (52)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas


SEGUNDA PARTE


LII – A SRA. GASTÃO À CONDESSA DE L’ESTORADE

Chalé

Um silêncio de dois anos aguçou tua curiosidade, perguntas-me por que não te escrevi; mas, minha querida Renata, não há frases nem palavras nem linguagem para traduzir minha felicidade: nossas almas têm a força de suportá-la, eis tudo em poucas palavras. Não temos de fazer o menor esforço para ser feliz, entendemo-nos em tudo. Em três anos não houve a menor dissonância nesse concerto, o menor desacordo de expressão nos nossos sentimentos, a menor diferença nas nossas vontades, mesmo as mais insignificantes. Enfim, minha querida, nem um só desses numerosos dias deixou de produzir seu fruto particular, nem um só instante que a fantasia não o tenha tornado delicioso. Não somente a nossa vida, temos disso certeza, jamais será monótona, mas nunca será, por outro lado, bastante extensa para conter a poesia do nosso amor, fecundo como a natureza e como ela variado. Não, nem uma decepção! Nós nos queremos mais do que no primeiro dia e a cada momento descobrimos novos motivos para nos amarmos. Todas as noites ao passearmos, depois do jantar, projetamos ir a Paris por curiosidade, da mesma forma que se diz: “Irei à Suíça”.

— Como! — exclama Gastão. — Estão reformando tal bulevar, a Madalena está terminada. Temos afinal de ir examinar isso tudo.

Pois bem! No dia seguinte ficamos deitados, fazemos o desjejum no quarto; chega o meio-dia, está calor, nós nos concedemos uma sesta; depois ele pede que eu o deixe contemplar-me e me olha exatamente como se eu fosse um quadro; embebe-se nessa contemplação, que, podes imaginar, é recíproca. Vêm-nos então, quer a um, quer a outro, lágrimas aos olhos, pensamos em nossa felicidade e estremecemos. Sou sempre sua senhora, o que quer dizer que pareço amar menos do que sou amada. Esse engano é delicioso. Há tanta sedução para nós, mulheres, em ver o sentimento vencer o desejo, em ver o senhor ainda tímido deter-se no ponto em que ansiamos que ele se detenha! Pediste que te dissesse como ele é; mas, minha Renata, é impossível fazer o retrato de um homem a quem se ama, não se pode alcançar a verdade. Além disso, confessemos sem hipocrisia um singular e triste resultado de nossos costumes: nada há tão diferente quanto o homem da sociedade e o homem do amor; a diferença é tão grande que um pode não se parecer em nada com o outro. Aquele que imita a mais graciosa atitude do mais gracioso dançarino, para nos dizer ao pé da lareira, à noite, uma palavra de amor, pode não ter nenhuma das graças secretas que uma mulher deseja. Inversamente, um homem que parece feio, sem maneiras, mal envolto em trajos negros, oculta um amante que possui o espírito do amor e que não será ridículo, em nenhuma dessas posições em que nós mesmas naufragamos, apesar de nossas graças exteriores. Encontrar num homem um acordo misterioso entre o que ele parece ser e o que é, encontrar um homem que na vida secreta do casamento tenha essa graça inata que não se dá, não se adquire, que a estatuária antiga desenvolveu nos casamentos voluptuosos e castos de suas estátuas, essa inocência da naturalidade que os antigos puseram nos seus poemas, e que no desnudamento parece ter ainda vestes para as almas, todo esse ideal que ressalta de nós mesmas e que se prende ao mundo das harmonias, que sem dúvida é o gênio das coisas; enfim, esse imenso problema buscado pela imaginação de todas as mulheres, pois bem, Gastão é a sua solução viva. Ah! Querida, eu não sabia o que era o amor, a mocidade, o espírito e a beleza reunidos. O meu Gastão nunca é afetado, a sua graça é instintiva, desenvolve-se sem esforços. Quando caminhamos, sozinhos, pelos bosques, seu braço enlaçando-me a cintura, eu com o meu sobre seu ombro, seu corpo preso ao meu, as cabeças tocando-se, vamos com passos iguais, num movimento uniforme e tão doce, de tal forma idêntico, que para as pessoas que nos vissem passar pareceríamos um mesmo ser deslizando sobre a areia das alamedas, à feição dos imortais de Homero. Essa harmonia está no desejo, no pensamento, na palavra. Algumas vezes, sob a folhagem ainda úmida devido a uma chuva passageira, quando à tarde as ervas são de um verde lustrado pela água, damos passeios completos, sem nos dizer uma só palavra, ouvindo o ruído das gotas que caem, gozando as cores rubras que o poente espalha nos cimos ou nos cascos pardacentos. Certamente, nesse momento, nossos pensamentos são uma prece secreta, confusa, que ascende ao céu como uma desculpa por nossa felicidade. Algumas vezes exclamamos juntos, no mesmo instante, ao ver uma extremidade da alameda que se curva bruscamente e que, de longe, nos oferece imagens deliciosas. Se soubesses quanto mel e profundeza existem num beijo quase tímido que se troca, no meio dessa santa natureza... é da gente crer que Deus nos fez somente para rezar-lhe assim. E voltamos sempre mais apaixonados um pelo outro. Esse amor entre esposos que pareceria, em Paris, um insulto à sociedade só é permitido entre amantes, no fundo dos bosques. 
Gastão, minha querida, tem a estatura mediana que foi sempre a dos homens de energia; não é gordo nem é magro e é muito bem-proporcionado; seus membros são roliços; é ágil nos seus movimentos; salta um fosso com a ligeireza de um animal selvagem. Seja qual for a posição em que se ache, há nele como que um sentido que o faz encontrar o equilíbrio, e isso é raro nos homens que têm o hábito da meditação. Embora moreno, é de uma alvura extraordinária. Seus cabelos são negros como azeviche e produzem contrastes vigorosos com os tons trigueiro-claros de seu pescoço e de sua fronte. Tem a cabeça melancólica de Luís XIII. Deixou crescer os bigodes e a mosca, mas eu fiz com que cortasse as suíças e a barba, que se estão tornando vulgares. Sua santa miséria conservou-o puro de todas as máculas que estragam tantos rapazes. Tem dentes magníficos, uma saúde de ferro. Seu olhar azul tão vivo, mas para mim de uma doçura magnética, acende-se e brilha como um relâmpago quando a sua alma se agita. Como todas as criaturas fortes e de inteligência poderosa, é de uma uniformidade de gênio que te surpreenderia, como me surpreendeu. Ouvi muitas mulheres me confiarem seus pesares íntimos, mas essas variações de gênio, essas inquietações dos homens descontentes consigo mesmos, que não querem ou não sabem envelhecer, que têm não sei que eternas recriminações contra sua aloucada mocidade, em cujas veias correriam venenos, cujo olhar tem sempre um fundo de tristeza, que se mostram rabugentos, para ocultar suas desconfianças, que nos vendem uma hora de tranquilidade por manhãs desagradáveis, que se vingam em nós por não poderem ser amáveis, e que concebem por nossa beleza um ódio secreto, todas essas dores, a mocidade não as conhece, pois são atributos dos casamentos desproporcionados. Oh! Minha querida, não cases Atenaís senão com um rapaz moço. Se soubesses como saboreio esse sorriso constante, que um espírito fino e delicado faz variar incessantemente, esse sorriso que fala, que no canto dos lábios encerra pensamentos de amor, mudos agradecimentos e que liga sempre as alegrias passadas às presentes! Entre nós nada é jamais esquecido. Das menores coisas da natureza fizemos cúmplices de nossa felicidade: tudo é vivo, tudo nos fala de nós, nesses bosques encantadores. Um velho carvalho musgoso, junto à casa do guarda na estrada, diz-nos que nos sentamos cansados à sua sombra e que Gastão me explicou, ali, os musgos que estavam a nossos pés, fez-me a história deles e que desses musgos subimos, de ciência em ciência, até o fim do mundo. Nossos dois espíritos têm algo de tão fraternal que julgo serem duas edições da mesma obra. Como vês, tornei-me literária. Temos, os dois, o hábito ou o dom de ver cada coisa em toda a sua extensão, de tudo perceber nelas, e a prova que um ao outro damos constantemente dessa pureza de sentido interior é um prazer sempre renovado. Já chegamos ao ponto de considerar esse entendimento do espírito como uma prova de amor; e, se um dia ele nos falhasse, seria para nós o que uma infidelidade é para os outros casais.
Minha vida, saturada de prazeres, parecer-te-á, de resto, excessivamente laboriosa. Primeiro, querida, precisas saber que Luísa Armanda Maria de Chaulieu arruma ela mesma o seu quarto.
Jamais consentiria que cuidados mercenários, que uma mulher ou uma moça estranha se iniciasse (mulher literária!) nos segredos de meu quarto. Minha religião engloba as menores coisas necessárias ao seu culto. Não é ciúme, mas, sim, respeito de si própria. Por isso meu quarto é arrumado com o cuidado que uma jovem apaixonada pode dispensar aos seus adornos. Sou meticulosa como uma velha solteirona. Meu quarto de banho em vez de ser um caos é uma deliciosa alcova. Minhas pesquisas tudo previram. O senhor, o soberano, pode entrar a qualquer momento; seu olhar não será afligido, espantado, nem desencantado: flores, perfumes, elegância, tudo seduz os olhos. Enquanto Gastão dorme, pela manhã, levanto-me, sem que ele até agora o suspeitasse, passo para aquele gabinete, onde, ilustrada pelas experiências de minha mãe, faço desaparecerem os vestígios do sono com loções de água fria. Enquanto dormimos, a pele, menos excitada, desempenha mal as suas funções; torna-se quente, tem como que uma bruma visível ao olhar de um ouçam, uma espécie de atmosfera. De sob uma esponja que goteja, uma mulher sai mocinha. É essa talvez a explicação do mito de Vênus saída das águas. A água dá-me então as graças excitantes da aurora; penteio-me, perfumo os cabelos e, depois dessa toilette minuciosa, insinuo-me como uma cobra, para que, ao despertar, o senhor me encontre pimpona como uma manhã primaveril. Ele fica seduzido por essa frescura de flor recentemente desabrochada, sem poder explicar o porquê. Mais tarde, a toilette do dia incumbe à minha camareira e se faz no quarto de vestir. Há, também, como deves imaginar, a toilette de deitar. Assim é que faço três para o senhor meu marido, e algumas vezes quatro; mas isso, querida, está em relação a outros mitos da Antiguidade.  
Também temos nossos trabalhos. Nós nos interessamos muito pelas nossas flores, pelos belos exemplares da nossa estufa e pelas nossas árvores. Somos botânicos de verdade, gostamos apaixonadamente de flores, o chalé as tem em profusão. Nossos relvados estão sempre verdes, nossos maciços são tão cuidados como os dos jardins dos mais ricos banqueiros. Por isso, nada é tão belo como nosso cercado. Somos muito gulosos de frutas, cuidamos das nossas árvores frutíferas, dispostas e podadas de modo elegante. Mas no caso em que essas ocupações campestres não satisfaçam o espírito do meu adorado, aconselhei-o a concluir no silêncio da solidão algumas peças de teatro que ele iniciou nos seus dias de miséria e que são realmente belas. Essa espécie de trabalho é a única na literatura que se pode abandonar e recomeçar, pois exige demoradas reflexões e não requer os rebuscamentos de estilo. Não se pode sempre fazer diálogos; demandam viveza, rapidez, saídas, que o espírito traz em si como as plantas produzem suas flores que se encontram mais facilmente esperando-as do que buscando-as. Essa caça às ideias agrada-me. Sou colaboradora do meu Gastão e assim jamais o deixo, nem mesmo quando ele vagueia nos vastos campos da imaginação. Adivinhas agora como me avenho nos longos serões do inverno? Nosso serviço é tão suave que desde que nos casamos não tivemos uma censura, nem uma observação a fazer à nossa criadagem. Quando interrogados a nosso respeito, os criados tiveram o espírito de mentir, fazendo-nos passar pela dama de companhia e pelo secretário de patrões que estivessem viajando; certos de nunca sofrer uma recusa, não saem sem pedir licença; aliás, são felizes e veem perfeitamente que sua situação não pode mudar a não ser por sua própria culpa. Deixamos os jardineiros venderem o excedente de nossos frutos e legumes. A encarregada do estábulo faz outro tanto com o leite, a nata e a manteiga fresca. Apenas reservam para nós os mais belos produtos. Esse pessoal está muito satisfeito com os seus lucros, e nós encantados com essa abundância que nenhuma fortuna pode ou sabe conseguir nessa terrível Paris, onde os belos pêssegos valem cada um o rendimento de cem francos. Tudo isso, querida, tem um sentido: quero ser o mundo para Gastão; o mundo é divertido, logo, meu marido não se deve entediar nesta solidão. Eu julgava ser ciumenta, quando era amada e me deixava amar; hoje, porém, experimento o ciúme das mulheres que amam, o verdadeiro ciúme, enfim. Por isso, um único de seus olhares que se me afigura indiferente me faz tremer. De quando em quando, a mim mesma digo: “E se ele não me amasse mais?” e estremeço. Oh! Estou exatamente diante dele como a alma cristã está diante de Deus.
Ai de mim! Renata, continuo a não ter filhos. Chegará com certeza o momento em que serão necessários os sentimentos de pai e de mãe para animar este retiro, em que ambos precisaremos ver vestidinhos, capinhas, cabecinhas morenas ou louras saltando, correndo através dos maciços e dos nossos caminhos floridos. Oh! Que monstruosidade, flores sem frutos. Punge-me a lembrança da tua bela família. Minha vida restringiu-se, ao passo que a tua aumentou, irradiou. O amor é profundamente egoísta, enquanto a maternidade tende a multiplicar nossos sentimentos. Senti bem essa diferença ao ler tua boa e terna carta. Tua felicidade causou-me inveja, ao ver-te vivendo em três corações! Sim, és feliz! Cumpriste sensatamente as leis da vida social, ao passo que eu estou à margem de tudo. Somente filhos amantes e amados podem consolar uma mulher da perda de sua beleza. Breve terei trinta anos, e nessa idade uma mulher começa a ouvir terríveis lamentações interiores. Se ainda sou bela, entrevejo os limites da vida feminina; depois, que será de mim? Quando eu tiver quarenta anos, ele não os terá, será ainda jovem, e eu já estarei velha. Quando esse pensamento me penetra no coração, fico uma hora a seus pés, fazendo-o jurar que, quando sentir menos amor por mim, o dirá imediatamente. Mas é uma criança e jura-o como se seu amor jamais devesse diminuir, e é tão belo que... compreendes! Eu o creio. Adeus, querido anjo; passaremos ainda alguns anos sem nos escrever? A felicidade é monótona nas suas expressões; será talvez por causa dessa dificuldade que Dante parece maior às almas amantes no seu Paraíso do que no seu Inferno? Não sou Dante, sou apenas tua amiga, não te quero cacetear. Tu, sim, podes escrever-me porque tens nos teus filhos uma felicidade variada que vai num crescendo, ao passo que a minha... Não falemos mais nisso. Mando-te mil carinhos.

continua pág 368...

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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.

(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843

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Segunda Parte: Memórias de duas jovens esposas...
A Comédia Humana/Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (52)

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