segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Dispersas LXXI - Frêmitos

Cruz e Sousa


Obra Completa
Volume 1
POESIA


O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos


DISPERSAS 



FRÊMITOS 

Ó pombas luminosas 
Que passais neste mundo eternamente 
Só a cantar os madrigais de rosas, 
Atravessados de um luar veemente, 
Inundados de estrelas e esplendores, 
De carinhos, de bênçãos e de amores. 

II 
Ó virgens peregrinas, 
De meigo olhar banhado de esperanças, 
Que perfumais com lírios e boninas 
A aurora de cristal das louras tranças, 
Que atravessais constantemente a vida 
Do sol eterno, da visão florida. 

III 
Amadas e felizes 
Gêmeas da luz das frescas alvoradas, 
Vós que trazeis nas almas as raízes 
Do que é são, do que é puro – ó vós amadas 
Prendas gentis do paternal tesouro, 
Iriados corações de fluidos de ouro. 

IV 
É para vós belíssimas esgrimas 
A estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros 
Para que brilhe como uns astros puros.  que eu quero 
Engrinaldar de tropos e de rimas, 
Num doce verso artístico e sincero, Esgrimir com 

É só a vós, apenas, 
Que eu me dirijo, ó límpidas auroras, 
Que pelas tardes plácidas, serenas, 
Passais, galantes como ingênuas Floras, 
Coroadas de flor de laranjeira, 
Noivas, sorrindo à mocidade inteira.

VI 
Porque é de vós que deve, 
De vós que o sonho eterno dulcifica, 
Partir o lume quando cai a neve, 
Surgir a crença poderosa e rica. 
Porque afinal, o que se chama crença 
Senão o amor e a caridade imensa? 

VII 
Os tristes e os pequenos 
Em quem descansam brandamente os olhos, 
Esses humildes, rotos Nazarenos 
Que vivem, morrem suportando abrolhos, 
Senão nos grandes entes piedosos 
Que dão-lhes força aos transes dolorosos? 

VIII 
Oh, sim que a força eterna 
Parte dos corpos rijos da saúde, 
Perante a lei da vida que governa, 
O nobre, o rei, o proletário rude; 
Parte dos seres fartos de carinhos 
Como de paz e de alegria os ninhos. 

IX 
Eu peço para todos 
E peço a vós que sois as fortalezas 
Da esperança, da fé – a vós que os lodos 
Da miséria, do vício, das baixezas, 
Não denegriram essas consciências 
Castas e brancas como as inocências. 

Nem se esperar devia 
Que eu tentasse bater a outras portas, 
Quando vós sois o exemplo de Maria; 
Não andais mudas, regeladas, mortas 
Pela noite voraz da sepultura 
E escutareis os dramas da amargura. 

XI 
Não julgueis que eu vos peça 
Uma alvorada feita de um sorriso; 
A minh’alma garante e vos confessa 
Que se crê nas mansões do Paraíso, 
É porque vós reinais por sobre a terra 
E o Paraíso dentro em vós se encerra. 

XII 
A vós, a vós compete 
A glória do dever – porque assim como 
A luz do sol na lua se reflete, 
Também das aflições no duro assomo, 
Da pobreza refletem-se nas almas 
Vossas imagens, como auroras calmas. 

XIII 
Portanto, a mocidade 
Vossa, terá de ser de hoje em diante, 
Enquanto a esmagadora atrocidade 
Da peste – nos vorar d’instante a instante, 
Quem se há de encarregar desta manobra 
Do galeão da vida que sossobra. 

XIV 
E para isso, ó rainhas 
Da juventude – tendes as quermesses 
Que dão bons frutos assim como as vinhas; 
As matinées de cânticos e preces, 
Os cintilantes, pródigos bazares 
Onde a luz salta extravasando em mares. 

XV 
Enquanto a mim, na arena 
Da heroicidade humana que consola, 
Oh, faz-me bem a vibração da pena, 
Pelo amor, pelo afago, pela esmola, 
Como um radiante e fulgido estilhaço 
De sol febril no mármore do Espaço! 

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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.
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Organização e Estudo
Lauro Junkes
Presidente da Academia Catarinense de Letras
© Copyright 2008
Avenida Gráfica e Editora Ltda.

Projeto Gráfico, Editoração e Capa
ESPAÇO CRIAÇÃO ARQUITETURA DESIGN E COMPUTAÇÃO GRÁFICA LTDA.
www.espacoecriacao.com.br
Fone/Fax: (48) 3028.7799

Revisão Linguístico-Ortográfica
PROFª Drª TEREZINHA KUHN JUNKES
PROF. Dr. LAURO JUNKES

Impressão e Acabamento
Avenida Gráfica e Editora Ltda.
Formato
14 x 21cm

FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogação na fonte por M. Margarete Elbert - CRB14/167
S725o      Sousa, Cruz e, 1861-1898
                        Obra completa : poesia / João da Cruz e Sousa ; organização
                  e estudo por Lauro Junkes. – Jaraguá do Sul : Avenida ; 2008.
                         v. 1 (612 p.)
                         Edição comemorativa dos 110 anos de falecimento e do
                  traslado dos restos mortais de Cruz e Sousa para Santa Catarina.
                            1. Sousa, Cruz e, 1861-1898. 2. Poesia catarinense. I.
                  Junkes, Lauro. II. Titulo.
                                                                                      CDU: 869.0(816.4)-1

"A gente só tem saída na poesia."

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