terça-feira, 26 de setembro de 2023

Memórias do Cárcere - Viagens 13

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

13


     DEBRUÇADO à janela interna, vi Sebastião Hora e o advogado Nunes Leite deixarem a sala, atravessarem o pátio, entrarem numa espécie de secretaria, à esquerda. O primeiro ia bastante preocupado e não me avistou; o segundo chorava. Estranhei novamente a frieza de Hora, a indiferença ao aceno que lhe fiz, mas logo desviei a atenção para o homem que o acompanhava. Passou a um metro de distância e pude observá-lo. Eu nunca havia notado coisa assim, nem imaginava que alguém chorasse daquela maneira. Para bem dizer não havia lágrimas: era um borbotão a rolar no rosto, a cair na roupa, como se torneiras íntimas se houvessem relaxado, quisessem derramar todo o líquido do corpo. A luz forte do sol, o jato brilhava. Nenhum pudor, nem o gesto maquinal de pôr as mãos na cara, tentar esconder a imensa fraqueza. Um soluço, único soluço, uivo rouco; não subia nem descia; enquanto durou a passagem ressoou monótono, invariável: parecia que o homem não tomava fôlego.
     Essa imagem de completo desespero me causou sombrio mal-estar. Desapareceu – e algum tempo o desgraçado queixume ainda me feriu os ouvidos, e diante dos olhos me ficou a máscara luminosa, que semelhava tênue camada de parafina. Não evitei uma sensação de repugnância e desprezo: difícil supor uma criatura humana a acovardar-se de semelhante jeito. Em seguida modifiquei e venci a reação molesta e acusei-me de precipitação: Nunes Leite devia estar doente, devia ser doente. Não era senão isso. O lençol de água a correr como fonte e o brado lamentoso indicavam desequilíbrio, pois não havia razão para tais excessos. Obrigavam-nos ao repouso, impossibilitavam-nos qualquer ação considerada prejudicial à ditadura. Só. Injustiça dizer que procediam duramente conosco. Tratavam-nos até muito bem. Excetuando-se a ameaça de fuzilamento, reduzível, com esforço e boa vontade, a um conselho enérgico, fórmula viva para nos reeducar, tudo corria numa chateação razoável. As caretas da sentinela, o serviço do faxina, o alimento desenxabido na hora certa, idas e vindas de oficiais no alpendre, os toques da corneta, as vozes de comando. Tudo se mexia como impulsionado por um aparelho de relógio, de algum modo nos mecanizava, tornava inconcebível aquela manifestação de dor furiosa. Anulando a sensaboria da caserna, as visitas de capitão Lobo nos mergulhavam numa onda de calor humano. Da janela do pátio, muitas vezes o víamos descer os degraus de cimento, entrar no cárcere vizinho. Com certeza aí gastaria meia hora nas suas viagens de cinco passos, desdobraria monólogos sisudos, agitaria a piteira, firme e condescendente.
 
– Não concordo com as suas ideias, mas respeito-as. Vinha-me ao espírito a figura inquieta de Sebastião Hora, a desenvolver, loquaz, as suas convicções moderadas de presidente da Aliança Nacional Libertadora em Alagoas. A um canto, o advogado Nunes Leite se encolhia, isento de pensar, surdo à bondade áspera do capitão. Nem percebera a roupa de cama e as toalhas que ele mandara trazer. Um pobre vivente cheio de pavor. Ouvira falar decerto em fuzilamento, sentira as balas penetrarem-lhe a carne trêmula, o desmaiado coração. Agora, envolto em fria mortalha de medo, perdera a consciência, era um fantasma choroso e automático, sem dignidade. 

     Tive pena. Porque martirizavam aquele homem, santo Deus? Realmente não martirizavam, mas se o olhassem de perto, conhecer-lhe-iam o pavor, a morte na alma. Duas ou três palavras rápidas, a baldeação, o cheiro da caserna, a cor das paredes, ordens rápidas, sinais imperceptíveis, tinham ocasionado um desmoronamento. Isso pouco influía em tipos ordinários, mas desconchavava nervos demasiado sensíveis. Enfim deviam perceber que estavam praticando uma iniquidade: o bacharel Nunes Leite não suportava a cadeia. Horrível sujeitar-se ao mesmo regime naturezas diversas. Capitão Mata nada sofria. Findos os sobressaltos produzidos pela corneta, manifestava alegria, dedicava-se a exercícios de composição literária, referia-se, ligeiramente vaidoso, aos meses de estágio no Rio, recitava-me sonetos e nenhuma preocupação lhe diminuía o apetite voraz. Diante do tabuleiro, expandia-se à vontade, como se estivesse em casa, e o tique nervoso dava-lhe aparência estranha. O riso lhe aprofundava uma ruga, e vinha-me a impressão de que ele se achava ao mesmo tempo zangado e satisfeito. Riso severo, enérgico. Em contraste, ali perto, um pobre ser esmagado, avizinhando-se da loucura. Um longo terror, um longo pranto, um longo gemido. Arrepiava-me comparando os dois, notando a ligeira punição de um e o tremendo castigo do outro. A administração pública não atenta nessas ninharias, tende a uniformizar as pessoas. Somos grãos que um moinho tritura – e ninguém quer saber se resistimos à mó ou se nos pulverizamos logo.
     Finda a repulsão causada por aquele desabamento, pus-me a refletir sério na origem dele. Covardia apenas, doença? Talvez houvesse ali coisa mais grave: a repentina supressão de uma certeza, mergulho na treva, impossibilidade de achar qualquer luz. O advogado Nunes Leite impetrara hábeas corpus a favor de alguns presos políticos. Vistas as razões, etc., o juiz lançara no requerimento uma penada benigna. Em consequência, fugira, os suplicantes mofavam à sombra e Nunes Leite, embrulhado, necessitava habeas-corpus. Recurso inútil, evidentemente: agora a toga não se arriscaria, considerando isto ou aquilo, a assinar um mandado de soltura. Seria irrisório pretender ela mandar qualquer coisa, mas essa reviravolta desorientava uma alma serena, habituada à petição, à audiência, ao despacho. 
     Certo as ordens sempre tinham sido aparentes: a judicatura servia de espantalho, e na farda havia muque bastante para desobediência. Apenas isto não convinha. E os atores representavam seus papéis, às vezes se identificavam com eles. A repetição de minúcias, a sisudez, a lentidão, a redundância, a língua arcaica davam àquilo um ar de velhice e estabilidade. E Nunes Leite se sentia bem requerendo ao poder competente, ao colendo tribunal, ao meritíssimo juiz. Se essas coisas se houvessem dissolvido aos poucos, ele se acomodaria a novas formalidades legais, dirigir-se-ia a forças diversas, meritíssimas e colendas. Isto não se dera. Nunes Leite se movera entre firmes pedregulhos, julgara-os eternos; esses blocos não se haviam liquefeito: tinham-se evaporado – e ele se achava num deserto. A estampilha, a fórmula, as razões, necessidades venerandas, sumiam-se. Isto o desvairava. Uma prepotência desabusada surgira – e aluíam muralhas de papel. Como seria possível viver se se afastavam da vida o embargo, a diligência, a precatória? Como admitir o desrespeito a uma sentença? Quebra dos valores mais altos, cataclismo. Todos os caminhos fechados. E o infeliz soluçava, no desabamento da sua profissão. Impossível defender o direito de alguém. Propriamente, já não havia direito. A lei fora transgredida, a lei velha e sonolenta, imóvel carrancismo exposto em duros volumes redigidos em língua morta. Em substituição a isso, impunha-se uma lei verbal e móvel, indiferente aos textos, caprichosa, sujeita a erros, interesses e paixões. E depois? Que viria depois? O caos, provavelmente. Se os defensores da ordem a violavam, que devíamos esperar? Confusão e ruína. Desejando atacar a revolução, na verdade trabalhavam por ela. Era por isso talvez que o bacharel Nunes Leite chorava.

continua página 58....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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