Graciliano Ramos
Volume I
Editora Record
PRIMEIRA PARTE
VIAGENS
13
DEBRUÇADO à janela interna, vi Sebastião Hora e o advogado Nunes Leite deixarem a sala, atravessarem o pátio, entrarem numa espécie de secretaria, à esquerda. O primeiro ia bastante preocupado e não me avistou; o segundo chorava. Estranhei novamente a frieza de Hora, a indiferença ao aceno que lhe fiz, mas logo desviei a atenção para o homem que o acompanhava. Passou a um metro de distância e pude observá-lo. Eu nunca havia notado coisa assim, nem imaginava que alguém chorasse daquela maneira. Para bem dizer não havia lágrimas: era um borbotão a rolar no rosto, a cair na roupa, como se torneiras íntimas se houvessem relaxado, quisessem derramar todo o líquido do corpo. A luz forte do sol, o jato brilhava. Nenhum pudor, nem o gesto maquinal de pôr as mãos na cara, tentar esconder a imensa fraqueza. Um soluço, único soluço, uivo rouco; não subia nem descia; enquanto durou a passagem ressoou monótono, invariável: parecia que o homem não tomava fôlego.
– Não concordo com as suas ideias, mas respeito-as. Vinha-me ao espírito a figura inquieta de Sebastião Hora, a desenvolver, loquaz, as suas convicções moderadas de presidente da Aliança Nacional Libertadora em Alagoas. A um canto, o advogado Nunes Leite se encolhia, isento de pensar, surdo à bondade áspera do capitão. Nem percebera a roupa de cama e as toalhas que ele mandara trazer. Um pobre vivente cheio de pavor. Ouvira falar decerto em fuzilamento, sentira as balas penetrarem-lhe a carne trêmula, o desmaiado coração. Agora, envolto em fria mortalha de medo, perdera a consciência, era um fantasma choroso e automático, sem dignidade.
Tive pena. Porque martirizavam aquele homem, santo Deus? Realmente não martirizavam, mas se o olhassem de perto, conhecer-lhe-iam o pavor, a morte na alma. Duas ou três palavras rápidas, a baldeação, o cheiro da caserna, a cor das paredes, ordens rápidas, sinais imperceptíveis, tinham ocasionado um desmoronamento. Isso pouco influía em tipos ordinários, mas desconchavava nervos demasiado sensíveis. Enfim deviam perceber que estavam praticando uma iniquidade: o bacharel Nunes Leite não suportava a cadeia. Horrível sujeitar-se ao mesmo regime naturezas diversas. Capitão Mata nada sofria. Findos os sobressaltos produzidos pela corneta, manifestava alegria, dedicava-se a exercícios de composição literária, referia-se, ligeiramente vaidoso, aos meses de estágio no Rio, recitava-me sonetos e nenhuma preocupação lhe diminuía o apetite voraz. Diante do tabuleiro, expandia-se à vontade, como se estivesse em casa, e o tique nervoso dava-lhe aparência estranha. O riso lhe aprofundava uma ruga, e vinha-me a impressão de que ele se achava ao mesmo tempo zangado e satisfeito. Riso severo, enérgico. Em contraste, ali perto, um pobre ser esmagado, avizinhando-se da loucura. Um longo terror, um longo pranto, um longo gemido. Arrepiava-me comparando os dois, notando a ligeira punição de um e o tremendo castigo do outro. A administração pública não atenta nessas ninharias, tende a uniformizar as pessoas. Somos grãos que um moinho tritura – e ninguém quer saber se resistimos à mó ou se nos pulverizamos logo.
Finda a repulsão causada por aquele desabamento, pus-me a refletir sério na origem dele. Covardia apenas, doença? Talvez houvesse ali coisa mais grave: a repentina supressão de uma certeza, mergulho na treva, impossibilidade de achar qualquer luz. O advogado Nunes Leite impetrara hábeas corpus a favor de alguns presos políticos. Vistas as razões, etc., o juiz lançara no requerimento uma penada benigna. Em consequência, fugira, os suplicantes mofavam à sombra e Nunes Leite, embrulhado, necessitava habeas-corpus. Recurso inútil, evidentemente: agora a toga não se arriscaria, considerando isto ou aquilo, a assinar um mandado de soltura. Seria irrisório pretender ela mandar qualquer coisa, mas essa reviravolta desorientava uma alma serena, habituada à petição, à audiência, ao despacho.
Certo as ordens sempre tinham sido aparentes: a judicatura servia de espantalho, e na farda havia muque bastante para desobediência. Apenas isto não convinha. E os atores representavam seus papéis, às vezes se identificavam com eles. A repetição de minúcias, a sisudez, a lentidão, a redundância, a língua arcaica davam àquilo um ar de velhice e estabilidade. E Nunes Leite se sentia bem requerendo ao poder competente, ao colendo tribunal, ao meritíssimo juiz. Se essas coisas se houvessem dissolvido aos poucos, ele se acomodaria a novas formalidades legais, dirigir-se-ia a forças diversas, meritíssimas e colendas. Isto não se dera. Nunes Leite se movera entre firmes pedregulhos, julgara-os eternos; esses blocos não se haviam liquefeito: tinham-se evaporado – e ele se achava num deserto. A estampilha, a fórmula, as razões, necessidades venerandas, sumiam-se. Isto o desvairava. Uma prepotência desabusada surgira – e aluíam muralhas de papel. Como seria possível viver se se afastavam da vida o embargo, a diligência, a precatória? Como admitir o desrespeito a uma sentença? Quebra dos valores mais altos, cataclismo. Todos os caminhos fechados. E o infeliz soluçava, no desabamento da sua profissão. Impossível defender o direito de alguém. Propriamente, já não havia direito. A lei fora transgredida, a lei velha e sonolenta, imóvel carrancismo exposto em duros volumes redigidos em língua morta. Em substituição a isso, impunha-se uma lei verbal e móvel, indiferente aos textos, caprichosa, sujeita a erros, interesses e paixões. E depois? Que viria depois? O caos, provavelmente. Se os defensores da ordem a violavam, que devíamos esperar? Confusão e ruína. Desejando atacar a revolução, na verdade trabalhavam por ela. Era por isso talvez que o bacharel Nunes Leite chorava.
continua página 58....
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Leia também:
Memórias do Cárcere - Viagens 13
Memórias do Cárcere - Viagens 14
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Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.
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