quarta-feira, 27 de setembro de 2023

O Sol é para todos: 1ª Parte (9c)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

9

continuando...

— Você às vezes é muito burra, Jean Louise. Mas acho que não tem muito jeito mesmo.

— O que você quer dizer com isso? 

— Se tio Atticus deixa você andar por aí com qualquer um, é problema dele, como diz vovó, não é culpa sua. E acho que também não tem culpa se tio Atticus adora pretos, mas saiba que ele envergonha a família inteira… 

— Francis, do que diabos você está falando? 

— É isso mesmo. Vovó diz que já não basta vocês serem criados soltos por aí, agora ele também virou amigos dos pretos e nunca mais vamos poder andar pelas ruas de Maycomb. Ele está simplesmente arruinando a nossa família… 

Francis se levantou e passou rápido pela passarela em direção à velha cozinha. Quando estava a uma boa distância, berrou:

— Ele adora preto. 

— Não é nada disso! Não sei do que você está falando, mas é melhor parar com isso já! — rosnei.  

Levantei da escada num pulo e corri pela passarela. Foi fácil pegar Francis. Mandei-o retirar o que tinha dito imediatamente.
Mas ele se soltou e foi se esconder na cozinha.

— Adora preto! — berrou. 

Quando a gente quer pegar uma presa, é melhor não ter pressa. É só ficar em silêncio que a presa fica curiosa e, tão certo quanto dois e dois são quatro, sai do esconderijo. Francis surgiu na porta da cozinha. 

— Ainda está com raiva, Jean Louise? — perguntou, hesitante. 

— Um pouco — respondi.  

Francis foi até a passarela.

— Vai retirar o que disse, Fran… Francis?

Mas me precipitei. Francis voltou correndo para a cozinha e tive de voltar para a escada. Eu podia esperar, pacientemente. Estava lá havia uns cinco minutos quando tia Alexandra perguntou:

— Onde está Francis? 

— Na cozinha. 

— Ele sabe que não é para brincar lá. 

Francis veio até a porta e gritou:

— Vovó, ela me obrigou a entrar aqui e não me deixa sair! 

— Que história é essa, Jean Louise? 

Olhei para tia Alexandra.

— Não obriguei ele a ir até lá, muito menos estou prendendo ele na cozinha. 

— Está sim, ela não me deixa sair! — berrou Francis. 

— Vocês estavam brigando? 

— A Jean Louise ficou com raiva de mim, vovó — disse Francis. 

— Francis, saia já daí! Jean Louise, se eu souber que você aprontou mais alguma, conto para o seu pai. Eu ouvi você dizer “droga” agora mesmo? 

— Não. 

— Pensei que tivesse ouvido. Espero que isso não se repita. 

Tia Alexandra era do tipo que escutava atrás das portas. Assim que ela foi embora, Francis apareceu todo orgulhoso e sorridente.

— Não mexa comigo — ele disse. 

Foi para o quintal e começou a chutar a grama; de vez em quando, se virava para mim e sorria. Jem apareceu na varanda, olhou para nós e foi embora. Francis subiu no pé de mimosa, desceu, enfiou as mãos nos bolsos e andou pelo quintal.

— Ah! — exclamou. 

Perguntei quem ele pensava que era, o tio Jack? Francis retrucou que a avó tinha mandado eu ficar quieta e não mexer com ele. 

— Não estou mexendo com você — eu disse.

Francis me olhou atentamente, concluiu que eu estava derrotada e cantarolou baixinho: 

— Adora preto…

Dessa vez, dei um soco com toda a força na boca dele. Com a mão esquerda inutilizada, comecei a socar com a direita, mas tive de parar. Tio Jimmy segurou meus braços e disse: 

— Chega!

Tia Alexandra acudiu Francis, enxugando as lágrimas dele com um lenço, passando a mão nos cabelos, fazendo carinho no rosto dele. Quando Francis começou a chorar, Atticus, Jem e tio Jimmy vieram para a varanda dos fundos. 

— Quem começou? — perguntou tio Jack.

Francis e eu apontamos um para o outro. 

— Vovó, ela me chamou de prostituta e me atacou! — berrou Francis. 

— É verdade, Scout? — perguntou tio Jack. 

— Acho que sim.  

Tio Jack olhou para mim com uma cara igual à de tia Alexandra.

— Lembra que eu disse que, se você usasse palavras assim, ia se meter em confusão? Eu não disse? 

— Disse, mas… 

— Pois se meteu em confusão. Não saia daí. 

Eu estava tentando decidir se obedecia ou corria, mas demorei muito pensando: quando finalmente me virei para correr, tio Jack foi mais rápido. De repente, me vi olhando para uma formiguinha na grama carregando uma migalha de pão.

— Nunca mais falo com você! Detesto você, odeio você, quero que morra amanhã!

Minhas ameaças pareceram incentivar tio Jack. Busquei consolo em Atticus, mas ele disse que eu tinha provocado e que estava mais do que na hora de irmos para casa. Entrei no banco de trás do carro sem me despedir de ninguém e, quando chegamos em casa, corri para o meu quarto e bati a porta. Jem tentou me consolar, mas não deixei. 
Ao conferir os danos, vi que tinha só umas sete ou oito marcas nos braços e estava pensando na relatividade das coisas quando alguém bateu à porta. Perguntei quem era. Tio Jack.  

— Vá embora!

Tio Jack disse que, se eu falasse daquela maneira, apanhava de novo. Então, fiquei quieta. Quando ele entrou no quarto, fui para um canto e me virei de costas. 

— Scout, você ainda está com raiva de mim? 

— Saia, por favor. 

— Não pensei que fosse ficar zangada comigo — ele disse. — Estou desapontado, você sabe que mereceu. 

— Não fiz nada. 

— Querida, você não pode sair por aí xingando as pessoas… 

— Você foi injusto — eu disse. — Injusto.  

continua página 065...
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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