quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Massa e Poder - A Massa (A Lentidão ou a Lonjura da Meta)

Elias Canetti


A LENTIDÃO OU A LONJURA DA META


À massa lenta vincula-se a lonjura de sua meta. Com grande perseverança, as pessoas se movem rumo a uma meta inamovível e, aconteça o que acontecer, permanecem juntas enquanto estão a caminho. O caminho é longo; os obstáculos, desconhecidos; perigos as ameaçam, provindos de todos os lados. Antes que tenham atingido sua meta, qualquer descarga lhes é vedada. 

A massa lenta assume a forma de um cortejo. Já desde o princípio, ela pode consistir de todos os que dela participam, como na partida do Egito dos filhos de Israel. Sua meta é a Terra Prometida, e seus participantes constituirão uma massa enquanto acreditarem nessa meta. A história de sua peregrinação é a história de sua crença. As dificuldades são amiúde tão grandes que as pessoas começam a duvidar. Passam fome ou sede e, tão logo começam a resmungar, ameaça-lhes a desagregação. O homem que as conduz empenha-se continuamente por restabelecer-lhes a crença. E logra consegui-lo sempre, ou, se não o consegue ele próprio, conseguem-no os inimigos pelos quais as pessoas se sentem ameaçadas. A história dessa peregrinação estendendo-se por mais de quarenta anos encerra muitas formações isoladas de massas de natureza veloz e aguda; oportunamente, haverá aqui muito a dizer a seu respeito. Tais massas, contudo, encontram-se todas elas subordinadas à noção mais abrangente de uma única massa lenta, movendo-se rumo à meta que lhe foi prometida, à Terra da Promissão. Os adultos envelhecem e morrem; crianças nascem e crescem; porém, mesmo sendo outros os indivíduos, o cortejo como um todo permanece o mesmo. Não aflui para essa massa nenhum grupo novo. Desde o princípio, encontra-se definido quem a ela pertence e tem direito à Terra Prometida. Considerando-se que essa massa não pode crescer aos saltos, uma pergunta capital permanece ao longo de toda a sua peregrinação: como logra ela não desagregar-se?

Uma segunda forma de massa lenta é comparável antes a um sistema fluvial. Ela principia com pequenos regatos confluindo paulatinamente; no rio que assim se forma desembocam outros rios que para ele afluem provindos de toda parte; dispondo de terra suficiente diante de si, o todo faz-se uma torrente, e sua meta é o mar. A peregrinação anual a Meca é, talvez, o exemplo mais impressionante dessa forma de massa lenta. Das porções mais longínquas do mundo islâmico partem caravanas de peregrinos, todas caminhando em direção a Meca. Várias delas começam pequenas, talvez; outras, providas de grande esplendor por príncipes, constituem, já de início, o orgulho de suas terras de origem. No decorrer da peregrinação, porém, todas elas encontram outras caravanas dotadas da mesma meta, de modo que crescem mais e mais, transformando-se, já próximas de sua meta, em portentosos rios. Meca é o seu mar, aquele no qual desembocam. 

É da constituição de tais peregrinos que haja neles muito espaço para vivências de natureza mais corriqueira, as quais nada têm a ver com o sentido em si de sua marcha. Eles vivem seus dias sempre iguais, enfrentam muitos perigos, são pobres em sua maioria e têm de prover sua comida e sua bebida. A vida desses homens, desenrolando-se em terra estranha — terra esta que muda continuamente —, encontra-se aí muito mais exposta a perigos do que em casa. Não se trata absolutamente de perigos relacionados à natureza de sua empreitada. Assim, esses peregrinos permanecem, em grande medida, indivíduos a, separadamente, viver cada um a sua vida, como os seres humanos em toda parte. Enquanto, porém, seguirem aferrando-se a sua meta — como é o caso da maioria deles —, serão sempre parte de uma massa lenta, a qual — seja qual for o modo como se comportem para com ela — seguirá existindo e perdurará até que tenha atingido sua meta. 

Uma terceira forma assumida pela massa lenta observa-se em todas aquelas formações relacionadas a uma meta invisível e inatingível nesta vida. O além no qual os bem-aventurados aguardam todos aqueles que fizeram por merecer um lugar ali é uma meta bem articulada, pertinente somente aos crentes. Eles o veem clara e nitidamente diante de si, não precisando contentar-se com um símbolo vago que o represente. Sua vida é como uma peregrinação rumo a esse além; entre eles e sua meta encontra-se a morte. O caminho não se apresenta delineado em detalhes, e é difícil abarcá-lo com os olhos. Muitos desviam-se, perdendo-se nele. Ainda assim, a esperança no além matiza de tal forma a vida dos crentes que se pode, com razão, falar aqui em uma massa lenta à qual pertencem conjuntamente todos os adeptos de uma crença. Como não conhecem uns aos outros, espalhando-se por diversas cidades e países, a anonimidade dessa massa é particularmente impressionante.

Mas que aspecto tem ela em seu interior, e o que mais a diferencia das formas velozes da massa? 

À massa lenta não é dado conhecer a descarga. Poder-se-ia dizer que essa é sua característica principal, de modo que, em vez de lentas, seria admissível falar-se em massas desprovidas de descarga. Preferível é, entretanto, a primeira designação, pois o que ocorre não é que possam renunciar totalmente à descarga. Esta, ainda que deslocada para um ponto longínquo, permanece sempre contida na noção de um estado final da massa. Lá, onde a meta se encontra, encontra-se também a descarga. Uma vigorosa visão dela está sempre presente; sua certeza situa-se no final do processo.

 No caso da massa lenta, o que se tem em mira é o retardamento para o longo prazo do processo que conduz à descarga. Nesse retardamento, as grandes religiões desenvolveram particular maestria. Importa-lhes conservar os adeptos que conquistaram. Para conservá-los e, ao mesmo tempo, conquistar novos adeptos, cumpre reuni-los de quando em quando. Se, nessas reuniões, chegaram a ocorrer alguma vez violentas descargas, estas devem repetir-se, e, na medida do possível, superar-se em intensidade; ao menos uma repetição regular dessas descargas faz-se imprescindível, senão se há de pôr a perder a unidade dos crentes. O que se passa durante esse tipo de cerimônia envolvendo massas rítmicas não é controlável a grandes distâncias. O problema central das religiões universais é o controle de seus fieis, espalhados por vastas porções da terra. Tal controle somente se faz possível mediante uma diminuição consciente da velocidade dos processos de massa. As metas distantes precisam adquirir importância; as próximas têm de, progressivamente, perder o seu peso e, por fim, afigurem-se sem valor algum. A descarga terrena jamais dura; duradouro é o que é deslocado para o além.

Assim sendo, meta e descarga coincidem; a primeira é, porém, invulnerável. E isso porque a Terra Prometida aqui sobre a terra pode ser ocupada e devastada por inimigos, e o povo ao qual foi prometida pode dela ser expulso. Meca foi conquistada e saqueada pelos sármatas, que roubaram a pedra sagrada — a caaba. Durante muitos anos não se pôde empreender nenhuma peregrinação até a cidade. 

O além, no entanto, com seus bem-aventurados, encontra-se a salvo de toda devastação dessa espécie. Ele vive unicamente da fé e só pode ser alcançado por meio desta. A desagregação da massa lenta do cristianismo teve início no momento em que a fé nesse além começou a dissolver-se. 

continua página 60...
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Leia também:

Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Massa e Poder - A Massa (A Lentidão ou a Lonjura da Meta)
Massa e Poder - A Massa (As Massas Invisíveis)
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.


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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg

Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim

Título original Masse und Macht


"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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