quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Manon Lescaut (XXVIII)

Livro II 


Ela não é galante,
não usa ruge algum.

Sainte-Beuve



Capítulo XXVIII

MANON LESCAUT


Ora, uma vez bem convencido da estupidez e da burrice do prior, era muito 
comum que tivesse êxito ao chamar preto o que era branco, e branco o que 
era preto.

LICHTEMBERG


AS INSTRUÇÕES RUSSAS prescreviam imperiosamente jamais contradizer de viva voz a pessoa a quem se escrevia. Não se devia deixar, sob nenhum pretexto, o papel de admirador mais extático: as cartas partiam sempre dessa suposição.
Uma noite, no teatro da Ópera, no camarote da sra. de Fervaques, Julien elevava às nuvens o balé de Manon Lescaut. Sua única razão para falar assim é que o achava insignificante.
A marechala disse que o balé era muito inferior ao romance do abade Prévost.
Ora vejam!, pensou Julien, entre espantado e divertido, uma pessoa de tão alta virtude elogiar um romance! A sra. de Fervaques fazia profissão, duas ou três vezes por semana, do desprezo mais completo pelos escritores que, por meio de obras vulgares, buscam corromper uma juventude que, infelizmente, está muito disposta aos erros dos sentidos.  
Nesse gênero imoral e perigoso, Manon Lescaut ocupa, dizem, um dos primeiros lugares, continuou a marechala. As fraquezas e as angústias merecidas de um coração muito criminoso são ali descritas, dizem, com uma verdade que tem muita profundidade; o que não impediu seu Bonaparte de afirmar, em Santa Helena, ser um romance escrito por lacaios.
Essa frase devolveu toda a atividade à alma de Julien. Quiseram arruinar-me junto à marechala contando-lhe meu entusiasmo por Napoleão. Esse fato ofendeu-a o bastante para que ela cedesse à tentação de dizê-lo. Tal descoberta o divertiu a noite toda e o deixou alegre. Quando se despedia da marechala no vestíbulo do teatro, ela falou: – Lembre-se, senhor, não se deve amar Bonaparte quando se ama a mim; pode-se no máximo aceitá-lo como uma necessidade imposta pela Providência. De resto, esse homem não tinha a alma bastante flexível para perceber as obras-primas das artes.

Quando se ama a mim!, repetia para si mesmo Julien; isso não quer dizer nada ou quer dizer tudo. Eis os segredos de linguagem que faltam às nossas pobres provincianas. E ele pensou muito na sra. de Rênal, ao copiar uma carta imensa destinada à marechala. 

– Como se explica, ela lhe perguntou no dia seguinte com um ar de indiferença que ele julgou mal representado, que o senhor me fale de Londres e de Richmond numa carta que escreveu provavelmente ontem à noite, ao sair do teatro?

Julien ficou muito embaraçado; ele copiara linha por linha, sem pensar no que escrevia, e aparentemente esquecera de substituir as palavras Londres e Richmond, que estavam no original, por Paris e Saint-Cloud. Começou duas ou três frases, mas sem poder terminá-las; sentia-se a ponto de rebentar de riso. Finalmente, buscando as palavras, formou esta ideia: exaltado pela discussão dos mais sublimes, dos maiores interesses da alma humana, a minha, ao escrever-lhe, pode ter cometido um lapso.
Causei uma impressão, ele pensou, que pode poupar-me do aborrecimento do resto da noite. Saiu apressado da mansão de Fervaques. À noite, revendo o original da carta que copiara na véspera, logo chegou ao lugar fatal onde o jovem russo falava de Londres e de Richmond. Julien surpreendeu-se de achar essa carta bastante terna.
Era o contraste da aparente leviandade de sua conversa com a profundidade sublime e quase apocalíptica de suas cartas que chamara a atenção dela. Era sobretudo do comprimento das frases que a marechala gostava, e não do estilo saltitante posto em moda por Voltaire, esse homem tão imoral! Embora nosso herói procurasse banir toda espécie de bom senso da conversação, esta ainda possuía um colorido ímpio e antimonárquico que não escapava à sra. de Fervaques. Cercada de personagens eminentemente morais, mas que em geral não tinham uma única ideia por noite, essa dama sentia-se profundamente ofendida por tudo que parecesse uma novidade; mas, ao mesmo tempo, acreditava-se na obrigação de ver-se ofendida. Chamava esse defeito guardar a marca da leviandade do século...  
Mas tais salões só são bons de ver quando os solicitamos. Todo o tédio dessa vida sem interesse que Julien levava é certamente partilhado pelo leitor. São as charnecas de nossa viagem.
Durante o tempo usurpado na vida de Julien pelo episódio Fervaques, a srta. de La Mole sentia necessidade de conter-se para não pensar nele. Sua alma estava entregue a violentos combates; às vezes orgulhava-se de desprezar esse jovem tão triste; mas, contra sua vontade, a conversação dele a cativava. O que a espantava, sobretudo, era sua falsidade perfeita; ele não dizia uma palavra à marechala que não fosse uma mentira ou pelo menos um disfarce abominável de sua maneira de pensar, que Mathilde conhecia tão perfeitamente sobre quase todos os assuntos. Esse maquiavelismo a impressionava. Que profundidade!, ela pensava; que diferença com os tolos enfáticos ou os tratantes comuns, como o sr. Tanbeau, que usam a mesma linguagem! 
Todavia, Julien tinha jornadas terríveis. Era para cumprir o mais penoso dos deveres que ele aparecia diariamente no salão da marechala. Seus esforços para desempenhar um papel acabavam por tirar-lhe toda a força da alma. Com frequência, à noite, ao atravessar o pátio imenso da mansão de Fervaques, era somente à força de caráter e de raciocínio que conseguia manter-se um pouco acima do desespero.
Venci o desespero no seminário, ele dizia a si mesmo: no entanto, como era terrível minha perspectiva então! Ganhasse ou perdesse minha fortuna, num caso ou noutro via-me obrigado a passar a vida num convívio íntimo com o que há de mais desprezível e de abjeto sob o céu. Na primavera seguinte, apenas onze meses depois, eu era talvez o mais feliz dos jovens da minha idade.
Mas, na maioria das vezes, esses belos raciocínios eram sem efeito contra a terrível realidade. Diariamente via Mathilde no almoço e no jantar. Pelas cartas numerosas que lhe ditava o sr. de La Mole, sabia que ela estava às vésperas de desposar o sr. de Croisenois. Esse jovem amável já aparecia duas vezes por dia na mansão de La Mole: o olhar ciumento de um amante abandonado não perdia um único de seus passos. 
Quando notava que a srta. de La Mole tratava bem seu pretendente, Julien, ao voltar a seu quarto, não podia deixar de olhar suas pistolas com amor. 
Ah! Como seria mais sensato, pensava, se eu desmarcasse minha roupa íntima e fosse a uma floresta solitária, a vinte léguas de Paris, para acabar com essa vida execrável! Desconhecido na região, minha morte ficaria oculta durante quinze dias, e quem pensaria em mim depois de quinze dias? 
Esse raciocínio era muito sensato. Mas, no dia seguinte, o braço de Mathilde, entrevisto entre a manga do vestido e a luva, era suficiente para mergulhar nosso jovem filósofo em lembranças cruéis, que no entanto o apegavam à vida. Pois bem, dizia-se ele então, seguirei até o fim essa política russa. Como isso acabará?
Em relação à marechala, depois de transcrever as cinquenta e três cartas, com certeza não escreverei outras. 
Em relação a Mathilde, estas seis semanas de penosa comédia ou não mudarão em nada sua cólera, ou me darão um instante de reconciliação. Ó Deus, eu morreria de felicidade com isso! E não podia terminar seu pensamento. 
Quando, após um longo devaneio, conseguia retomar seu raciocínio, dizia a si mesmo: eu obteria então um dia de felicidade, para depois recomeçarem seus rigores baseados no escasso poder que tenho de agradá-la, e não me restaria mais nenhum recurso, estaria arruinado, perdido para sempre...
Que garantia pode ela me dar com seu caráter? Ai! Meu pequeno mérito responde a tudo. Em minha maneiras faltará elegância, meu modo de falar será pesado e monótono. Ó Deus! Por que eu sou eu?  

continua página 288...

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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.

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Henri-Marie Beylemais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.
Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.
Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.
"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.
Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.
Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.
Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.
Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.
O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.

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Leia também:

O Vermelho e o Negro: Uma Hora da Madrugada (XVI)
O Vermelho e o Negro: Uma Velha Espada (XVII)
O Vermelho e o Negro: Manon Lescaut (XXVIII)

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