terça-feira, 26 de setembro de 2023

Makarenko - Poema Pedagógico Livro 1(b): Característica das necessidades primordiais

Poema Pedagógico


Antón S. Makarenko


Livro Um

Capítulo 3

Característica das necessidades primordiais

continuando...

Mas nós não tínhamos muito tempo para ficar pensativos. Uma semana depois, em fevereiro de 1921, eu trouxe quinze meninos verdadeiramente abandonados e esfarrapados, numa carroça de carregar mobília. Nós vimos obrigados a trabalhar muito para lavá-los, vesti-los de alguma forma, curar a sarna. Em março tivemos colônia para cerca de trinta meninos. A maioria deles estava muito abandonada, em estado selvagem e absolutamente inadequados para a realização do sonho da educação socialista. No momento não havia neles capacidade a peculiar de criação, que, dizem, assemelha o modo de raciocínio das crianças ao dos homens sábios.

Na colônia também aumentou o número de educadores. Em março já tínhamos um verdadeiro Conselho Pedagógico. O casal Ivan Ivánovitch e Natália Márkovna e Óssipov trouxe, para espanto de toda a colônia, um enxoval bastante considerável: divãs, cadeiras, guarda-roupas, grande quantidade de roupas e louças de todo tipo. Nossos colonistas, carentes até do mais essencial, contemplavam com extraordinário interesse como toda aquela riqueza era descarregada das carroças na porta da residência dos Óssipov.

O interesse dos colonistas pelos bens dos Óssipov não era de forma alguma um interesse acadêmico, e fiquei muito assustado com a ideia de todo aquele transporte magnífico fazer a viagem de volta as feiras da cidade. Uma semana depois, quando a superintendente chegou, o interesse especial pelas riquezas dos Osipov diluiu-se um pouco. A superintendente era uma velhinha muito bondosa, falante e tola. Sua riqueza, embora muito inferior a dos Óssipov, era composta de coisas muito apetitosas. Havia muito farinha, potes de geleia e não sei mais o que, muitos sacos cuidadosamente amarrados e numerosos sacos de jornada, através da qual o olhar dos colonistas discerniu diversos objetos de valor.

A superintendente arrumou seu quarto com o gosto e o conforto de uma pessoa idosa: arrumou suas caixas e demais pertences em despensas, cantos e espaços, dispostos para isso pelo natureza e estabeleceu amizades rápidas com dois ou três rapazes. Esta amizade baseava-se em princípios semelhantes aos de um tratado: eles lhe trariam lenha e acenderiam seu samovar e ela, como pagamento, lhes serviria chá e conversas sobre coisas da vida. Na verdade, a superintendente não tinha nada para fazer na colônia, e me perguntava admirado por que ela fora nomeada. A colônia não precisava de superintendente nenhuma: nós éramos incrivelmente pobres.

Além de algumas salas destinadas ao pessoal - de todas as dependências da colônia - só conseguimos consertar apenas um amplo quarto com duas estufas de ferro. Nesse cômodo havia trinta camas dobráveis ​​e três mesas grandes, onde os rapazes comiam e escreviam. Outro grande dormitório e  refeitório, duas salas de aula e o escritório aguardavam o momento da reforma futura.

Tínhamos um conjunto e meio de lençóis e faltavam-nos completamente outros tipos de roupa. Nossa atitude em relação com o problema do vestuário se expressava quase que exclusivamente nas diversas reivindicações dirigidas ao Departamento de Educação Pública e outras instituições.

O delegado da Instrução Pública que tão energicamente inaugurou a colônia estava agora em outra parte, não se sabe onde, para um trabalho novo, e o seu substituto pouco se interessava pela colônia, tinha assuntos mais importantes para cuidar.

A atmosfera prevalecente no Departamento Provincial de Educação Pública não favoreceu em nada os nossos esforços. de enriquecimento. Naquele tempo, o Departamento Provincial de Educação Pública era um conglomerado de muitas salas, grandes e pequenas e com muita gente, mas as verdadeiras expressões da criatividade pedagógica não foram aqui nem as salas ou as pessoas, mas as mesinhas. Cambaias e deterioradas, seja escrivaninha, penteadeira ou de jogo, outrora pretas ou vermelhas, estas mesinhas, rodeadas de cadeiras semelhantes, simbolizavam as diferentes seções, como evidenciado pelas placas penduradas nas paredes acima de cada mesinha. Uma grande maioria mesas estavam sempre vazias, porque a unidade complementar - o homem - não era essencialmente tanto responsável pela seção como contador do distribuidor provincial. Quando acontecia de repente uma das mesinhas aparecer ocupada pela figura de uma pessoa, os visitantes vinham correndo de todos os lados e se precipitavam sobre ela. Em tais casos, a conversa se resumia no essa, e se era a essa mesma seção que o visitante devia se dirigir, ou devia se dirigir , e se fosse outra, então por, disse que era justamente esta aqui? Após solucionar todas essas questões, o titular da seção alçava âncora e sumia em velocidade cósmica. 

Nossos passos inexperientes em torno das mesinhas não levaram a nenhum resultado positivo. Por isso, no inverno de 1923, a colônia pouco se assemelhava a uma instituição de educacional. Os casacos esfarrapados mais mereciam o nome de mulambos, se adequavam muito melhor, segundo a gíria dos bandidos, mal-e-mal cobriam a pele humana; muito raramente apareciam restos de uma camisa sob o mulambo que caía em pedaços. Nossos primeiros educandos, que chegaram bem vestidos, não se destacaram por muito tempo da massa geral: o rachar lenha, o trabalho na cozinha e na lavanderia faziam o seu trabalho, ainda que pedagógico, mas destrutivo no que se refere a roupa. Por volta de março todos os nossos colonistas estavam vestidos de tal maneira que pudessem dar inveja a qualquer artista que tenha desempenhado o papel de moleiro na ópera Sereia (1). Muito poucos pés de colonistas tinham botinas, a maioria enrolava os pés em trapos e os amarrava com cordas. Mas mesmo com esse tipo de calçado sofríamos crises contínuas.

Nossa comida, um mingau ralo de painço, se chamava condiór, sopa aguada de milho. O resto da comida era puramente casual. Naquele tempo, havia um grande número de normas alimentares: havia normas comuns, normas mais rigorosas, normas para os fracos e para os fortes, normas para os deficientes mentais, para os sanatórios, para os hospitais. Com auxílio de elaborada diplomacia, conseguíamos às vezes convencer as autoridades, implorar, enganar, ganhar simpatia por nossa aparência lamentável, intimidamos acenando com a ameaça de uma rebelião dos colonistas, e então éramos transferidos para as normas de sanatório. No racionamento do sanatório havia leite, gorduras em abundância e pão branco. É claro que não recebíamos isso, mas recebemos em grandes quantidades alguns elementos de condiór e pão de centeio. Depois de um mês ou dois, experimentávamos a derrota da diplomacia e novamente descemos à categoria de meros mortais, e novamente começamos a colocar em prática a linha cautelosa e oblíqua da diplomacia ora secreta, ora aberta. Às vezes, conseguíamos exercer um pressão tão intensa que até conseguíamos carne, defumados e balas, mas a nossa existência ainda era mais triste quando foi demonstrado que os moralmente defeituosos não tinham direito a esse luxo, mas apenas os deficientes intelectuais.

De tempos em tempos, conseguíamos fazer incursões da esfera estritamente pedagógica para algumas esferas vizinhas, como, por exemplo, a Comissão de Produtos Alimentícios da Província ou a Comissão Especial de Abastecimento do Primeiro Exército de Reserva, ou para o Setor de Abastecimento de algum outro departamento adequado. O departamento de Educação Pública proibia terminantemente semelhante atos de guerrilha, é por isso que tivemos de realizar estes ataques em segredo.

Para isso, foi fundamental sair armado de um pedaço de papel, onde apareciam estas palavras simples e expressivas:

"A Colônia de Delinquentes Juvenis solicita a liberação de cem puds de farinha para a alimentação dos educandos."


continua na página 19...
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(1) - Ópera de Alexander Dargomijski (1813 - 1869), em que o personagem do moleiro é um louco maltrapilho. (N. da E.)
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Leia também:

Livro Um
Capítulo 2
Capítulo 3
Característica das necessidades primordiais (b)

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