segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Mas esse talento)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes


Primeira Parte


continuando...


Mas esse talento que eu buscava perceber fora do papel formava um só todo com ele. Assim como ocorre com um grande músico (parece que era o caso de Vinteuil, quando ele tocava piano), seu desempenho é de um tão grande pianista que já nem se sabe mais se esse artista é pianista mesmo, porque (não interpondo todo esse aparato de esforços musculares, aqui e ali coroados de efeitos brilhantes, todos esses salpicos de notas, onde pelo menos o ouvinte que não sabe a que se ater julga descobrir talento em sua realidade material, tangível) tal execução tornou-se tão transparente, tão repleta do que ele está interpretando que a ele próprio já ninguém o vê, o artista não passa de uma janela que se abre para uma obra-prima. As intenções que cercam, como um bordado majestoso ou delicado, a voz e a mímica de Arícia, de Ismênia e de Hipólito, eu lograra distingui-las; porém Fedra as interiorizara, e meu espírito não conseguira arrancar à dicção e às atitudes, apreender na avara simplicidade de suas superfícies unidas àqueles achados, aqueles efeitos que não se ressaltariam tanto se não fossem profundamente reabsorvidos. A voz da Berma, na qual não subsistia mais um só resíduo de matéria inerte e refratária ao espírito, não deixava discernir a seu redor aquele excesso de lágrimas que se via correr porque não tinham podido se embeber na voz de mármore de Arícia ou de Ismênia, mas fora delicadamente suavizado em suas menores células, como o instrumento de um grande violonista no qual se deseja louvar, quando se diz que possui um bom som, não uma particularidade física, mas uma superioridade de alma; e, como numa paisagem antiga, onde, em vez de uma ninfa desaparecida existe uma fonte inanimada, uma intenção distinguível e consciente se transformara em uma qualidade de timbre, de estranha limpidez, fria e apropriada. Os braços da Berma que os próprios versos, na mesma emissão com que faziam sair sua voz dos lábios, pareciam erguer sobre seu peito como essas folhagens que a água desloca ao se escapar; sua atitude em cena, que ela vagarosamente constituíra, que modificaria ainda, e que era feita de raciocínios de uma profundeza diversa dos daqueles cujos traços se percebiam nos gestos das companheiras, raciocínios, porém, que tinham perdido sua origem voluntária, dissolvidos numa espécie de irradiação em que faziam palpitar, em torno ao personagem de Fedra, elementos ricos e complexos, mas que o espectador, fascinado, tomava não por um sucesso da artista e, sim, por um dom da vida; e até aqueles brancos véus, que, extenuados e fiéis, pareciam matéria viva e ter sido fiados pelo sofrimento meio pagão, meio jansenista, em torno ao qual se contraíam como um casulo frágil e friorento; tudo isto, voz, atitudes, gestos, véus, não era, ao redor daquele corpo, senão uma ideia do que é um verso (corpo que, ao contrário dos corpos humanos, não está diante da alma como um obstáculo opaco que impede percebê-la e, sim, como uma vestimenta purificada, vivificada, onde ela se difunde e onde a encontramos), senão invólucros suplementares que, em lugar de escondê-la, exibiam mais esplendorosamente a alma que os assimilara e neles se espalhara, como vagas de substâncias diversas, tornadas translúcidas, cuja superposição só faz refratar com maior riqueza o raio central e prisioneiro que as atravessa e tornar mais extensa, mais preciosa e mais linda a matéria embebida de flamas onde está envolvido. Assim, a interpretação da Berma era, em torno da obra, uma segunda obra, igualmente vivificada pelo gênio. 

Minha impressão, a falar a verdade, mais agradável que a de outrora, não era diferente. Apenas, não mais a comparava a uma ideia preconcebida, abstrata e falsa, do gênio dramático, e compreendia que o gênio dramático era justamente aquilo. Havia pouco, pensava que, se não sentira prazer da primeira vez que ouvira a Berma, era que ia a ela com um desejo muito intenso, como antigamente quando encontrava Gilberte nos Champs-Élysées. Entre as duas decepções não havia talvez somente esta parecença, mas uma outra também, mais profunda. A impressão que nos causa uma pessoa, uma obra (ou uma interpretação) fortemente caracterizadas é particular. Chegamos com todas as nossas ideias de "beleza", "amplitude de estilo", "patético" que, a rigor, poderíamos ter a ilusão de reconhecer na banalidade de um talento e de um rosto corretos, porém o nosso espírito atento tem diante de si a insistência de uma forma da qual não possui o equivalente intelectual e cujo desconhecido precisa descobrir. Ouve um som agudo, uma entonação estranhamente interrogativa. Pergunta a si próprio: "É belo? O que estou sentindo é admiração? É isto a riqueza de colorido, a nobreza, a força?" E o que lhe responde de novo é uma voz aguda, é um tom curiosamente questionador, é a impressão despótica provocada por um ser a quem não se conhece, impressão puramente material e na qual não se deixa nenhum espaço vago para a "amplitude da interpretação". E, devido a isso, as obras verdadeiramente belas, se sinceramente escutadas, são as que mais devem nos decepcionar, porque, na coleção das nossas ideias, não houve nenhuma que correspondesse a uma impressão individual.

Era precisamente isso o que me mostrava o desempenho da Berma. Era bem aquilo a nobreza e a inteligência da dicção. Agora eu me dava conta dos méritos de uma interpretação ampla, poética, poderosa; ou melhor, era aquilo a interpretação a que se convencionou atribuir esses títulos, mas como se dá o nome de Marte, de Vênus e de Saturno aos astros que nada têm de mitológico. Sentimos num mundo, pensamos e nomeamos em outro mundo, podemos entre ambos estabelecer uma concordância, mas não preencher o intervalo. Era bem pouca coisa esse intervalo, essa falha, que eu tivera de transpor quando, no primeiro dia em que fora ouvir a Berma, tendo-a escutado com todos os meus ouvidos, sentira um certo esforço para reunir minhas ideias de "nobreza de interpretação", de "originalidade", e só rompera em aplausos após um instante de vazio e como se tais aplausos nascessem não de minha própria impressão, mas como se os unisse a minhas ideias antecipadas, ao prazer que tinha em dizer a mim mesmo: "Enfim, estou ouvindo a Berma." E a diferença que há entre uma pessoa, uma obra fortemente individual e a ideia de beleza existe, igualmente grande, entre o que elas nos fazem sentir e as ideias de amor e de admiração. Portanto, não as reconhecemos. Eu não sentira prazer em ouvir a Berma (como não a sentira em ver Gilberte). Dissera comigo: "Logo, não a admiro." Todavia, só pensava então em criticar o desempenho da Berma, só me preocupava com isso, tentava abrir o meu pensamento o mais amplamente possível para receber tudo o que continha a sua interpretação. Agora compreendia que era justamente isto: admirar.

Este gênio, do qual a interpretação da Berma era apenas a revelação, seria na verdade unicamente o gênio de Racine?

Foi o que acreditei, a princípio. Deveria me desenganar, tão logo terminou o ato da Fedra, depois dos aplausos do público, durante os quais minha vizinha, a velha enraivecida, erguendo a minúscula estatura e enviesando o corpo, imobilizou os músculos do rosto e cruzou os braços no peito para mostrar que não se misturava aos aplausos alheios e tornar mais evidente um protesto que julgava sensacional, mas que passou despercebido. A peça seguinte era uma das novidades que, outrora, devido à falta de celebridade, achava eu que deveriam parecer fracas, restritas, destituídas como eram de existência fora da interpretação que lhe davam. Mas eu não tinha, como no caso de uma peça clássica, essa decepção de ver que a eternidade de uma obra-prima não era mais extensa que o tamanho do palco nem durava mais que a representação que a desempenhava como uma peça circunstancial. Depois, a cada tirada que sentia que o público apreciava e que um dia seria famosa, em vez da celebridade que não pudera ter no passado, eu acrescentava a que ela teria no futuro, por um esforço de espírito contrário ao que consiste em idealizar obras-primas ao tempo de sua estreia infeliz, quando seu título, que jamais fora ouvido, não parecia devesse ser posto um dia, confundido sob a mesma luz, ao lado do das outras obras do autor. E aquele viria a ser colocado, um dia, na lista de seus mais belos papéis, ao lado do de Fedra. Não que em si mesmo não fosse desprovido de qualquer valor literário; mas a Berma, nele, era tão sublime como em Fedra. Compreendi então que a obra do escritor não era, para a artista trágica, senão uma matéria quase indiferente em si mesma para a criação de sua obra-prima de interpretação, como o grande pintor que conhecera em Balbec, Elstir, encontrara o motivo de dois quadros que se equivalem num prédio escolar sem estilo e numa catedral que é, por si mesma, uma obra-prima. E como o pintor dissolve casa, carroça, personagens, em um grande efeito de luz que os torna homogêneos, a Berma estendia amplas camadas de terror, de ternura, sobre as palavras fundidas por igual, todas niveladas ou ressaltadas em conjunto, e que uma artista medíocre teria destacado uma após a outra. Sem dúvida, cada qual tinha uma inflexão própria, e a dicção da Berma não impedia que se percebesse o verso. Não é já um primeiro elemento de complexidade, de beleza, quando, ouvindo uma rima, isto é, algo ao mesmo tempo igual e diferente da rima anterior, por ela motivada, mas que aí introduz a variação de uma idéia nova, se sentem dois sistemas que se superpõem, um de pensamento e o outro de métrica? No entanto, a Berma fazia entrar as palavras, até os versos e mesmo as "tiradas", em conjuntos mais vastos que eles próprios, em cuja fronteira era um encanto vê-los obrigados a parar, a interromper-se; assim um poeta sente prazer em fazer hesitar, por um momento, na rima, a palavra que vai se lançar, e um compositor em confundir as palavras diversas de um libreto em um mesmo ritmo que as arrasta e contraria. Assim nas frases do dramaturgo moderno, como nos versos de Racine, a Berma sabia introduzir essas vastas imagens de dor, de nobreza, de paixão, que eram suas obras-primas pessoais, e onde a reconheciam como se reconhece um pintor nos quadros que pintou segundo modelos diferentes.

Não mais desejaria, como antigamente, poder imobilizar as atitudes da Berma, o belo efeito de cor que ela conferia por um instante apenas numa iluminação logo desvanecida e que não se reproduzia, nem fazer com que repetisse um verso uma centena de vezes. Compreendia que meu desejo de outrora era mais exigente que a vontade do poeta, da trágica, do grande artista decorador que era o seu cenógrafo, e que aquele encanto espalhado em pleno voo sobre um verso, aqueles gestos vacilantes perpetuamente transformados, aqueles quadros sucessivos eram o resultado fugaz, o fim momentâneo, a móvel obra-prima que a arte teatral se propunha e que a atenção de um espectador demasiadamente apaixonado acabaria por destruir, querendo fixá-la. Até nem fazia questão de voltar outro dia para ouvir de novo a Berma; estava satisfeito com ela; era quando estava admirando demais para que não ficasse decepcionado com o objeto da minha admiração, fosse ele Gilberte ou a Berma, que eu pedia previamente à impressão do dia seguinte o prazer que me recusara a impressão da véspera. Sem procurar analisar a alegria que acabara de sentir, e a que talvez pudesse ter dado um emprego mais fecundo, murmurava comigo mesmo, como dizia outrora um de meus companheiros de colégio: "É verdadeiramente a Berma que coloco em primeiro lugar", todavia sentindo confusamente que o gênio da Berma não fosse talvez traduzido precisamente por aquela afirmação de minha preferência e por aquele posto de "primeira" que lhe atribuía, apesar da tranquilidade que me causavam.

No momento em que principiou a segunda peça, olhei para o lado do camarote da Sra. de Guermantes. Esta princesa, por um movimento gerador de uma linha deliciosa que meu espírito perseguia no vácuo, acabava de virar a cabeça para o fundo do camarote; os convidados estavam de pé, também voltados para o fundo, e entre a dupla fila que formavam, em sua segurança e grandeza de deusa, mas com uma doçura desconhecida que se devia à confusão tímida e risonha de ter chegado tão tarde e de fazer todo mundo se levantar no meio da representação, entrou a duquesa de Guermantes, toda envolta em brancas musselinas. Foi direto para a sua prima, fez uma profunda reverência a um rapaz louro que estava sentado bem na frente e, voltando-se para os monstros marinhos e sagrados que flutuavam no fundo do antro, fez a esses semideuses do Jockey-Club que naquele instante, e especialmente o Sr. de Palancy, foram os homens que eu mais gostaria de ser um cumprimento familiar de velha amiga, alusão ao aspecto dia-a-dia de suas relações com eles há quinze anos. Eu percebia o mistério mas não podia decifrar o enigma daquele olhar risonho que ela dirigia aos amigos, no brilho azulado em que fulgia, enquanto abandonava a mão a uns e outros, e que, se lhe tivesse podido decompor o prisma, analisado suas cristalizações, talvez me revelasse a essência da vida desconhecida que nela se mostrava naquele instante. O duque de Guermantes seguia a mulher, com os reflexos de seu monóculo, o riso de seus dentes, a brancura do cravo em sua botoeira ou de seu plastrão plissado, e afastando, para dar lugar à luz de tudo isto, suas sobrancelhas, seus lábios e seu fraque; com um gesto da mão estendida, que baixou sobre os ombros deles, teso, sem mover a cabeça, ordenou que se sentassem aos monstros inferiores que lhe davam lugar, e inclinou-se profundamente diante do jovem louro. Poder-se-ia dizer que a duquesa adivinhara que sua prima, a quem criticava, diziam, o que ela chamava de exageros (nome que, de seu ponto de vista espirituosamente francês e bastante moderado, assumiam logo a poesia e o entusiasmo germânicos), usaria naquela noite uma das toaletes em que a considerava "fantasiada", e que desejara dar-lhe uma aula de bom gosto. Em vez das maravilhosas e macias plumas que desciam da cabeça da princesa até o seu pescoço, em vez da rede de conchinhas e pérolas, a duquesa não ostentava nos cabelos mais que uma simples aigrette que, dominando seu nariz arqueado e os olhos saltados, parecia a crista de um pássaro. Seu pescoço e ombros emergiam de uma onda nevada de musselina contra a qual vinha bater um leque de plumas de cisne, mas a seguir o vestido, cujo corpete possuía, como único ornamento, inumeráveis palhetas, seja de metal, em varinhas ou em grãos, seja de brilhantes, modelava-lhe o corpo com uma precisão absolutamente britânica. Mas, por mais diversas que fossem as toaletes de uma e de outra, depois que a princesa cedeu à prima a cadeira que ocupava até então, viram-nas se voltarem uma para a outra e se admirarem reciprocamente. 

Talvez a duquesa de Guermantes, no dia seguinte, sorrisse ao falar do penteado um tanto complicado da princesa, mas certamente iria declarar que esta nem por isso estava menos deslumbrante e maravilhosamente arrumada; e a princesa que, por gosto, achava algo um tanto frio, um tanto seco, um tanto couturier demais no modo como se vestia a prima, descobria um refinamento delicado naquela sobriedade estrita. Aliás, entre elas, a harmonia e a gravitação universal preestabelecida de sua educação neutralizavam os contrastes não só de ajustamento mas de atitude. Nessas linhas invisíveis e imantadas que a elegância de maneiras estendia entre elas, vinha expirar a natureza expansiva da princesa, ao passo que a retidão da duquesa se deixava atrair e infletir para elas, fazendo-se doçura e encanto. Assim como na peça que se representava, para compreender o que a Berma irradiava de poesia pessoal, bastaria confiar o papel que ela desempenhava, e que somente ela podia desempenhar, a qualquer outra atriz, o espectador que erguesse os olhos para o balcão teria visto, em dois camarotes, um "arranjo", que ela julgava relembrar os penteados da princesa de Guermantes, dar simplesmente à baronesa de Morienval o ar excêntrico, pretensioso e mal-educado, e um esforço a um tempo custoso e paciente para imitar as toaletes e a elegância da duquesa de Guermantes, fazer apenas a Srta. de Cambremer se assemelhar a uma pensionista provinciana, armada em arame, tesa, seca e aguda, um penacho de carro fúnebre verticalmente enfiado nos cabelos. Talvez o lugar desta última não fosse numa sala onde era somente com as mulheres mais brilhantes do ano que os camarotes (e até os mais altos, que de baixo pareciam grandes cestos cheios de flores humanas e ligados à abóbada da sala pelas rédeas rubras de suas divisões de veludo) compunham uma paisagem momentânea que os mortos, os escândalos, as doenças e as brigas em breve modificariam, mas que naquele momento estava imobilizada pela atenção, pelo calor, pela vertigem, pela poeira, a elegância e o tédio, nesse tipo de instante eterno e trágico de espera inconsciente e de tranquilo embotamento que, retrospectivamente, parece ter precedido a explosão de uma bomba ou a primeira chama de um incêndio. 

O motivo pelo qual a Sra. de Cambremer se achava ali era que a princesa de Parma, desprovida de esnobismo como a maior parte das legítimas altezas e, em compensação, devorada pelo orgulho e pelo desejo de praticar a caridade, que nela igualava o gosto pelo que imaginava ser as Artes, cedera aqui e ali alguns camarotes para mulheres como a Sra. de Cambremer, que não fazia parte da alta sociedade aristocrática, mas com quem se relacionava devido às suas obras de beneficência. A Sra. de Cambremer não tirava os olhos da duquesa e da princesa de Guermantes, o que lhe era tanto mais fácil porque, não tendo verdadeiras relações com elas, não podia dar a impressão de implorar um cumprimento. Ser recebida em casa dessas duas grandes damas era no entanto o objetivo que ela perseguia há dez anos com infatigável paciência. Calculara que o conseguiria certamente dentro de cinco anos. 

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