sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - f)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor


Ao Redor da Sra. Swann


(f)

continuando...

Quando o Sr. de Norpois partiu, meu pai deu uma olhada no jornal vespertino; eu pensava de novo na Berma. O prazer que sentira ao ouvi-la, exigia tanto mais, ser completado como estava longe de igualar àquele que eu me prometera; assim, assimilava imediatamente tudo o que fosse suscetível de nutri-la; por exemplo, os méritos que o Sr. de Norpois reconhecera na Berma e que meu espírito bebera de um só trago como um prado muito seco sobre o qual se lança água. Ora, meu pai me passou o jornal, mostrando-me uma nota concebida nestes termos:

"A representação da Fedra, dada numa sala entusiasta onde se assinalaram as principais personalidades do mundo das artes e da crítica, foi para a Sra. Berma, que desempenhava o papel de Fedra, a ocasião de um triunfo como ela raramente conheceu de tão deslumbrante no decurso de sua prestigiosa carreira. Voltaremos mais longamente a essa representação, que constitui um verdadeiro acontecimento teatral; digamos somente que os mais abalizados juízes concordaram em declarar que uma tal representação renovava inteiramente o papel de Fedra, que é um dos mais belos e profundos de Racine, constituindo-se na mais pura e alta manifestação de arte à qual nos tenha sido dada a oportunidade de assistir em nosso tempo."

Desde que meu espírito concebeu essa ideia nova da "mais pura e alta manifestação de arte", esta se aproximou do prazer imperfeito que eu sentira no teatro, acrescentou-lhe um pouco do que lhe faltava, e a união de ambos formou algo tão grandioso que exclamei: 

"Que grande artista!"

Sem dúvida, pode-se achar que eu não fosse totalmente sincero. Mas imaginem o caso de tantos escritores que, descontentes com um trecho que acabam de escrever, leem o elogio do gênio de Chateaubriand, ou comparam à um grande artista a quem desejariam igualar, cantarolando, por exemplo, "trecho de Beethoven cuja tristeza comparam à que quiseram pôr em sua prosa, absorvem de tal modo dessa ideia de gênio que a acrescentam às próprias produções ao pensar de novo nelas, não as vendo mais como lhes tinham aparecido, e dizem, arriscando-se a uma profissão de fé quanto ao valor de sua obra: ''Que demônio, depois de tudo!", sem perceber que, no total que determina sua satisfação final, incluem a lembrança de magníficas páginas de Chateaubriand, que assimilam às quais enfim não escreveram; imaginem tantos homens que acreditam numa amante da qual só conhecem as traições; imaginem, também, todos que esperam alternativamente, seja uma vida futura incompreensível pensam, maridos inconsoláveis, numa mulher que perderam e que ainda são artistas, na glória futura da qual poderão gozar, seja num nada apaziguador e sua inteligência se reporta, ao contrário, às faltas que, sem ele, teriam após a morte; imaginem ainda os turistas que exaltam a beleza de um desfrutar em conjunto, cujo cotidiano contudo os aborrece; e veja-se na vida em comum que levam as ideias no seio do nosso espírito, existirem - dessas que nos fazem felizes, que não tenha sido antes, verdadeira para si uma ideia próxima e estranha o melhor da força que lhe faltava.

Minha mãe não pareceu ficar satisfeita pelo fato de meu pai não pensar mais na minha "carreira". Creio que, preocupada acima de tudo em que as regras de existência disciplinassem os caprichos de meus nervos, o que ela menos queria era me ver renunciar à diplomacia do que aplicar-me à literatura. -Porém deseja-o - exclamava meu pai. -É preciso, antes de tudo, fazer as coisas que o agradam, já não é uma criança. Sabe perfeitamente bem, agora, do que gosta. É provável que mude, e é capaz de perceber o que o fará feliz na vida.

Esperando que à liberdade que me concediam, eu fosse ou não feliz na vida, as palavras me magoaram muito naquela noite. Em todas as épocas, suas gentilezas, ao se produzirem, tinham me dado uma tal vontade de beijar acima de suas faces coradas que, se não o fazia, era só por medo de lhe desagradar, como um autor se assusta ao ver suas próprias fantasias, que lhe tem pouco valor por não conseguir separá-las de si mesmo, obrigarem a escolher um tipo de papel, empregar caracteres talvez lindos demais. Perguntava-me se meu desejo de escrever era algo suficientemente importante, que meu pai mostrasse tanta bondade por sua causa. Porém, sobretudo meus gostos que não mudariam mais, daquilo que estava destinado a minha existência, insinuava em mim duas terríveis suspeitas. A primeira, (enquanto me considerava todos os dias no limiar da minha vida ainda que só começaria na manhã do dia seguinte) minha existência já começava ainda, que o que se seguiria não seria diferente do que havia ocorrido; segunda suspeita, que, para falar a verdade, não passava de uma outra forma da primeira, era que eu não estava situado fora do Tempo; porém, achava-me submetido às suas leis, exatamente como aquelas personagens de romance que, isso, me faziam mergulharem grande tristeza quando lia as suas vidas, em minha cadeira de vime. 

Teoricamente, sabe-se que a Terra gira, mas não nos apercebemos disso, o chão sobre o qual caminhamos parece não se mover e vivemos tranquilos. O mesmo ocorre com o Tempo na vida. E, para fazer ver a sua fuga, os romancistas são obrigados, acelerando doidamente a marcha dos ponteiros, a fazer com que o leitor ultrapasse dez, vinte, trinta anos, em dois minutos. No alto da página deixamos um amante cheio de esperanças; ao pé da página seguinte, encontramo-lo octogenário, fazendo penosamente no pátio de um asilo o seu passeio cotidiano, mal respondendo às palavras que lhe dirigem, tendo esquecido o passado. Dizendo de mim: "Não é mais uma criança, seus gostos não mudarão mais, etc.", meu pai acabava de súbito de me fazer pensar em mim mesmo no Tempo, causando-me o mesmo tipo de tristeza de como se eu fosse, não o asilado decrépito, mas aquele herói sobre quem o autor, num tom indiferente que é particularmente cruel, nos diz no final de um livro: "Cada vez menos deixa o campo. Acabou por fixar-se ali definitivamente, etc."

Entretanto, meu pai, para antecipar-se às críticas que poderíamos fazer sobre nosso convidado, disse à mamãe: 

- Confesso que o velho Norpois foi um tanto "medalhão", como vocês dizem. Quando ele diz que teria sido "pouco oportuno" fazer uma pergunta ao conde de Paris, tive receio de que vocês desatassem a rir.

- Mas de modo nenhum. - contestou minha mãe -, gosto muito que um homem desse valor e dessa idade tenha conservado esta espécie de inocência que só dá provas de um fundo de honestidade e de boa educação.

- Creio que sim. Isto não impede que seja fino e inteligente; sei disso muito bem porque o vejo na Comissão bem diferente do que se mostrou aqui. - exclamou meu pai, feliz por ver que mamãe apreciava o Sr. de Norpois, querendo convencê-la de que era ainda superior ao que ela julgava, pois a cordialidade sente o mesmo prazer em exagerar os méritos que a maledicência tem em diminuí-los. - E como ele disse aquilo de que "com os príncipes nunca se sabe..."

- É verdade, sim, exatamente como dizes. Já tinha reparado, é muito esperto. Vê-se que possui uma profunda experiência da vida.

- É extraordinário que tenha ido jantar em casa dos Swann e que ali haja encontrado boas pessoas, afinal de contas, funcionários. Onde será que a Sra. Swann vai pescar todo esse povo?

- Notaste com que malícia ele se referiu a: "É uma casa onde vão principalmente cavalheiros"?

E ambos procuravam reproduzir a maneira com que Norpois dissera aquelas frases; como o teriam feito quanto à alguma entonação de Bressant, ou de Thiron em ''A Aventureira'', ou em ''O Genro do Sr. Poirier''. Porém de todos, quem mais apreciara as palavras de Norpois foi Françoise, que, muitos anos depois, não podia ficar ''em si'' quando lhe recordavam que fora tratada pelo embaixador como "mestre-cuca de primeira ordem", frase que minha mãe comunicou como um ministro da Guerra transmite às forças armadas, as felicitações de um soberano em visita. Aliás, eu havia precedido mamãe quando entrou na cozinha. Pois conseguira que Françoise, pacifista porém cruel, prometesse que não faria sofrer demais o coelho que teria que matar, e não tivera notícias dessa morte; Françoise me assegurou que passara no melhor dos mundos e bem depressa: - Nunca vi um bicho que morreu sem soltar um guincho, poderia jurar que era mudo.- Sem estar da linguagem dos animais, aleguei que o coelho talvez não gritasse como frangos.- Conte com isso - retrucou Françoise, indignada com a minha ignorância que coelhos não gritam tanto como os frangos; têm até voz mais forte e aceitou os cumprimentos do Sr. de Norpois com a soberba simplicidade alegre e - ainda que momentaneamente - inteligente de um artista quando falam de sua arte. Minha mãe a enviara antigamente a certos restaurantes famosos, para aprender como se cozinhava ali. E naquela noite, ao ouvi-la chamar de bodegas, renomados restaurantes, senti o mesmo prazer de outrora ao saber, pelos dramáticos, que a hierarquia de seus méritos não era a mesma de suas reputações.

- O embaixador - disse-lhe minha mãe - assegura que em parte alguma se come rosbifes e suflês como os seus. Françoise, com ar modesto e como que em homenagem à verdade, concordou, aliás sem ficar impressionada com o título do embaixador; dizia do Sr. de Norpois, com a amabilidade devida à alguém que se considerava um "mestre-cuca": 

- É um bom velho, como eu. - Gostaria de ter visto o Sr. de Norpois quando este chegara; mas, sabendo que minha mãe não gostava que ficassem atrás das portas ou nas janelas a espiar, e pensando que mamãe pelos outros criados, ou pelos porteiros que estivera espreitando (pois Françoise via por toda a parte "ciúmes" e "mexericos" que, na sua imaginação, desenhavam o mesmo papel permanente e funesto das intrigas de jesuítas e de outras pessoas), contentara-se em olhar da janela da cozinha "para não haver conflito com madame", e, na visão sumária que tivera do Sr. de Norpois: "parecido com o Sr. Legrandin" por causa de sua agilidade, e embora não existisse qualquer traço em comum entre eles. 

- Mas, enfim - perguntou minha mãe – explica-me como que ninguém faz geleia tão bem como você quando quer? 

- Eu não sei como decorre isso. - respondeu Françoise, que não estabelecia uma diferença nítida entre o verbo ocorrer, ao menos em certas acepções, e o verbo decorrer; em parte dizia a verdade e não se mostrava muito mais capaz de desvelar o mistério que formava a superioridade de suas geleias, ou de seu rosbife, do que uma elegante com relação à seus vestidos, ou uma grande cantora relativamente a seu canto. Suas explicações não nos dizem grande coisas: quanto às receitas da nossa cozinheira.

 - Eles mandam cozinhar depressa - respondeu ela falando dos grandes cozinheiros de restaurantes - e não tudo junto. É necessário que a carne de vitela fique como uma esponja, bebe o suco até o fim. Entretanto, havia um desses cafés onde conheciam bastante sobre cozinha. Não digo que fosse inteiramente conhecedores de geleia, mas era preparado devagar e os suflês tinham muito creme.

- É? - indagou meu pai, que se juntara a nós e apreciava muito o restaurante da praça Saillon, onde fazia em datas fixas refeições comemorativas.

- Oh, não. - respondeu Françoise com uma suavidade que ocultava um profundo desdém -, eu falava de um pequeno restaurante. Na casa desse Henry, a comida certamente é muito boa, mas não se trata de um restaurante, é mais uma... casa de pasto!

- Weber?

- Ah, não, senhor, eu queria dizer um bom restaurante. Weber fica na rua Royale, não é um restaurante, é uma cervejaria. Não sei nem se tem serviço. Parece que até nem tem toalha, botam as coisas de qualquer jeito na mesa, com toda a força.

- Então é Cirro?

Françoise sorriu:

- Oh, lá, creio que em matéria de cozinha há principalmente damas da sociedade. ("Sociedade", para Françoise, significava "sociedade de reputação duvidosa".) Diabos, a juventude precisa disso. 

Percebíamos que, com seu ar de simplicidade, Françoise era, quanto aos cozinheiros célebres, uma "colega" mais terrível do que o pode ser a atriz mais invejosa e mais enfatuada. No entanto, verificamos que ela possuía um sentimento justo de sua arte e o respeito das tradições, pois acrescentou:

- Não, quero dizer um restaurante onde parecia haver uma boa cozinha burguesa. É uma casa ainda considerável. Lá se trabalhava bastante. Ah, reuniam sous lá dentro! (Françoise, econômica, contava por sous e não por luíses, como os gastadores.) Madame sabe: lá embaixo, à direita, nos grandes bulevares, um pouco recuado...

O restaurante de que falava com imparcialidade mista de orgulho e bonomia era... o Café Anglais.

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