Simone de Beauvoir
SlMONE DE BEAUVOIR
O ideal da felicidade sempre se materializou na casa, na choupana ou no castelo: encarna a permanência e a separação. É entre seus muros que a família se constitui numa célula isolada e afirma sua identidade para além da passagem das gerações; o passado conservado sob forma de móveis e retratos de antepassados prefigura um futuro sem riscos; no jardim, as estações inscrevem em legumes comestíveis seu ciclo tranquilizador; cada ano a mesma primavera ornada das mesmas flores promete o retorno do imutável verão, do outono com seus frutos idênticos aos de todos os outonos: nem o tempo nem o espaço escapam para o infinito, ambos executam comportadamente o mesmo giro. Numa civilização que assenta na propriedade fundiária há uma abundante literatura que canta a poesia e as virtudes da casa; no romance de Henry Bordeaux intitulado precisamente La Maison, ela resume todos os valores burgueses: fidelidade ao passado, paciência, economia, previdência, amor à família, ao solo natal etc; é frequente que sejam as mulheres que cantem a casa, porque sua tarefa consiste em assegurar a felicidade do grupo familiar; seu papel, como no tempo em que a domina tinha assento no átrio, é ser "dona de casa". Hoje a casa perdeu seu esplendor patriarcal; para a maioria dos homens ela é apenas um habitat que a memória das gerações passadas não mais esmaga e que não encarcera mais os séculos futuros. Mas a mulher esforça-se ainda por dar a seu "interior" o sentido e o valor que possuía a verdadeira casa. Em Cannery Road, Steinbeck descreve uma vagabunda que se obstina em enfeitar com tapetes e cortinas o velho barraco abandonado em que se aloja com o marido: em vão ele objeta que a ausência de janelas torna as cortinas inúteis.
Essa preocupação é especificamente feminina. Um homem normal considera os objetos que o cercam como instrumentos; arruma-os segundo o fim a que se destinam; sua "ordem" — na qual a mulher verá muitas vezes apenas uma desordem — é ter ao alcance da mão seus cigarros, seus papéis, suas ferramentas. Os artistas, entre outros, a quem é dado recriar o mundo através de uma matéria — escultores e pintores — mostram- -se inteiramente indiferentes ao ambiente dentro do qual vivem. Rilke escreve a propósito de Rodin:
A primeira vez que estive em casa de Rodin, compreendi que essa casa não passava para ele de uma pobre necessidade: um abrigo contra o frio, um teto sob o qual dormir. Ela deixava-o indiferente e não pesava em absoluto na sua solidão, no seu recolhimento. Era em si que encontrava um lar: sombra, refúgio e paz. Tornara-se seu próprio céu, sua floresta e seu largo rio que nada mais detém.
Mas para encontrar um lar em si é preciso primeiramente ter-se realizado em obras ou atos. O homem só se interessa mediocremente pelo seu interior porque ascende ato do universo e pode afirmar-se em projetos. Ao passo que a mulher está encerrada na comunidade conjugai: trata-se para ela de transformar essa prisão em reino. Sua atitude em relação ao lar é comandada por essa mesma dialética que define geralmente sua condição: ela possui tornando-se uma presa, liberta-se abdicando; renunciando ao mundo ela quer conquistar um mundo.
Não é sem se lamentar que ela fecha atrás de si as portas do lar; moça, tinha toda a terra por pátria, as florestas pertenciam-lhe. Agora, acha-se confinada num estreito espaço; a Natureza reduz-se às dimensões de um vaso de gerânios; muros barram o horizonte. Uma heroína de V. Woolf murmura:
Não distingo mais o inverno do verão pelo aspecto da relva ou das urzes na charneca, mas sim pela umidade ou a geada que se formam nos vidros. Eu que outrora caminhava pelos bosques de faias, admirando o tom azul da pena do gaio ao cair, eu que encontrava em meu caminho o vagabundo e o pastor. . . vou de quarto em quarto de espanador na mão (As Vagas).
Mas ela esforçar-se-á por negar essa limitação. Encerra entre suas paredes sob formas mais ou menos dispendiosas a fauna e a flora terrestres, os países exóticos, as épocas passadas; aí encerra o marido que resume para ela a coletividade humana, e o filho que lhe dá, de um modo portátil, todo o futuro. O lar torna-se o centro do mundo e até sua única verdade; como observa muito acertadamente Bachelard, é "uma espécie de contra- -universo ou um universo do contra"; refúgio, retiro, gruta, ventre, ele abriga contra todas as ameaças de fora: é essa confusa exterioridade que se torna irreal. A noite principalmente, quando estão fechadas as janelas, a mulher sente-se rainha; a luz espalhada ao meio-dia pelo sol universal perturba-a; à noite ela não se sente mais despojada, porque abole o que não possui; vê brilhar sob o abajur uma luz que é sua e que ilumina exclusivamente sua casa: nada mais existe. Um texto de V. Woolf mostra-nos a realidade concentrando-se na casa, enquanto o espaço de fora se aniquila.
A noite era mantida afastada pelos vidros e estes, ao invés de darem uma vista exata do mundo exterior, ondulavam-no de um modo estranho, a tal ponto que a ordem, a fixidez, a terra firme pareciam ter-se instalado dentro da casa; fora, ao contrário, só restava um reflexo em que as coisas tornadas fluidas tremiam e desapareciam.
Graças aos veludos, às sedas, às porcelanas de que se cerca, a mulher poderá satisfazer parcialmente essa sensualidade preensiva que ordinariamente sua vida erótica não satisfaz; encontrará também nesse cenário uma expressão de sua personalidade; foi ela quem escolheu, fabricou, "descobriu" móveis e bibelôs, quem os arrumou segundo uma estética em que a preocupação da simetria ocupa em geral lugar importante; devolvem-lhe sua imagem singular, dando socialmente testemunho de seu padrão de vida. O lar é, portanto, para ela o quinhão que lhe cabe na terra, a expressão de seu valor social, de sua mais íntima verdade. Como ela não faz nada, ela se procura avidamente no que tem.
É pelo trabalho doméstico que a mulher realiza a apropriação de seu "ninho"; eis por que, mesmo quando "se faz ajudar", quer pôr a mão na massa; vigiando, controlando, criticando, ela se esforça por tornar seus os resultados obtidos pelos servidores. Da administração de sua residência, tira sua justificação social; sua tarefa é também atentar para a alimentação, as roupas, e de uma maneira geral para a manutenção da sociedade familiar. Assim se realiza, ela também, como uma atividade. Mas trata-se, vamos vê-lo, de uma atividade que não a arranca de sua imanência, que não lhe permite uma afirmação singular de si própria.
Elogiou-se altamente a poesia das tarefas domésticas. Ê verdade que colocam a mulher em contato com a matéria e que ela realiza com os objetos uma intimidade que é revelação do ser e que portanto o enriquece. Em À la Recherche de Mane, Madeleine Bourdhouxe descreve o prazer que tem sua heroína em passar no forno a pasta de limpeza: ela sente na ponta dos dedos a liberdade e o poder, cuja imagem brilhante a chapa de ferro bem limpa lhe devolve.
Quando sobe da adega, ela gosta do peso daqueles baldes cheios., que em cada andar se tornam mais pesados. Sempre apreciou as matérias simples que têm seu cheiro próprio, sua rugosidade, sua linha. E então sabe como manuseá-las. Marie tem mãos que sem hesitação mergulham nos fornos apagados ou nas águas saponáceas, que desenferrujam e engraxam o ferro, passam a encáustica, recolhem num só e grande gesto circular os restos que enchem a mesa. Há um entendimento perfeito, uma camaradagem entre suas palmas e os objetos que toca.
Numerosos escritores falaram com amor da roupa recém passada, do brilho azulado da água com sabão, dos lençóis brancos, do cobre faiscante. Quando a dona da casa limpa e lustra os móveis, "sonhos de impregnação sustentam a doce paciência da mão que com a cera dá beleza à madeira", diz Bachelard. Terminada a tarefa, a dona da casa conhece a alegria da contemplação. Mas para que as qualidades preciosas se revelem, o polimento de uma mesa, o brilho de um candelabro, a brancura engomada da roupa, é preciso primeiro que tenha sido exercida uma ação negativa; é preciso que todo princípio mau tenha sido expulso. Esse é, diz Bachelard, o devaneio essencial a que se entrega a dona de casa: é o sonho da limpeza ativa, isto é, da limpeza conquistada contra a sujeira. Assim a descreve:
Parece pois que a imaginação da luta pela limpeza tenha necessidade de uma provocação. Essa imaginação deve excitar-se em meio a uma cólera maligna. Com que maldoso sorriso se espalha a pasta de polir sobre a torneira. Enchem-na com as imundícies de um polidor empastado sobre um trapo sujo e gorduroso. Amargura e hostilidade amontoam-se no coração da trabalhadora. Por que tão vulgares tarefas? Mas que chegue o momento do pano seco, e surge a maldade alegre, a maldade vigorosa e falante: torneira, serás espelho; tacho, serás sol. Finalmente, quando o cobre brilha e ri com a grosseria de um rapagão, faz-se a paz, A dona da casa contempla suas vitórias rutilantes (Bachelard, La Terre et les Rêveries du Repos).
Ponge evocou a luta, dentro do lixiviador, da imundície contra a pureza (cf. Liasses, La Lessiveuse):
Quem não viveu um inverno pelo menos na familiaridade de um lixiviador tudo ignora de uma certa ordem de qualidades e emoções assaz comoventes.
É preciso — vacilante — tê-lo erguido num só esforço, com sua carga de tecidos imundos, para levá-lo ao forno onde cumpre arrastá-lo de certo modo, para em seguida assentá-lo bem no centro do fogo.
É preciso ter atiçado as brasas até progressivamente comovê-lo; muitas vezes, tê-lo apalpado, morno ou fervendo; ter-lhe ouvido depois o profundo murmurejo interior e, amiúde, então, erguido a tampa para verificar a tensão dos jatos e a regularidade da rega.
É preciso enfim tê-lo abraçado de novo ainda escaldante para recolocá-lo no chão...
O lixiviador é de tal maneira concebido que, cheio de um amontoado de ignóbeis tecidos, a emoção interior, a fervorosa indignação que sente, canalizada para a parte superior de seu ser, recai em chuva sobre a imundície que lhe dá ânsias de vômito — e isso quase perpetuamente o que leva a uma purificação...
Sem dúvida, essa roupa já fora grosseiramente lavada antes que o lixiviador a recebesse...
Não é menos certo que apesar disso ele experimenta uma sensação de sujeira difusa das coisas no interior de si mesmo, de que consegue afinal livrar-se à força de emoção, de fervuras e de esforços, de que consegue libertar os tecidos, de modo que mergulhados numa catástrofe de água fresca vão parecer de uma brancura extrema.
E eis que com efeito o milagre ocorreu:
Mil bandeiras brancas desfraldam-se subitamente — atestando não uma capitulação mas uma vitória — e talvez não sejam apenas o sinal de limpeza corporal dos habitantes do lugar...
Essas dialéticas podem dar ao trabalho doméstico a atração de um jogo: a menina de bom grado diverte-se com fazer brilhar a prataria, com dar lustro aos trincos. Mas para que a mulher encontre nisso satisfações positivas, é preciso que dedique seus cuidados a um interior de que se envaideça; sem o quê, não conhecerá nunca o prazer da contemplação, único capaz de recompensar-lhe o esforço. Um repórter norte-americano (cf. Algee, Let us now praise famous men) que viveu durante vários meses entre os "pobres brancos" do sul dos Estados Unidos, descreveu o patético destino de uma dessas mulheres sobrecarregadas de trabalho e que se obstinam em vão a tornar habitável um pardieiro. Vivia ela com o marido e sete filhos num barracão de madeira, de paredes cobertas de fuligem e percevejos: tentara "tornar a casa bonita"; no cômodo principal, a lareira recoberta de um pano azulado, uma mesa e alguns quadros pendurados à parede evocavam uma espécie de altar. Mas o pardieiro continuava pardieiro e Mrs. G. dizia com lágrimas nos olhos: "Detesto tanto esta casa! Parece-me que nada no mundo é capaz de torná-la bonita". Legiões de mulheres não têm por quinhão senão uma fadiga indefinidamente recomeçada no decorrer de um combate que jamais comporta uma vitória. Mesmo em casos mais privilegiados, essa vitória nunca é definitiva. Há poucas tarefas que se aparentem, mais do que as da dona de casa, ao suplício de Sísifo; dia após dia, é preciso lavar os pratos, espanar os móveis, consertar a roupa, que no dia seguinte já estarão novamente sujos, empoeirados, rasgada. A dona de casa desgasta-se sem sair do lugar; não faz nada, apenas perpetua o presente; não tem a impressão de conquistar um Bem positivo e sim de lutar indefinidamente contra o Mal. É uma luta que se renova todos os dias. Conhece-se a história do criado que se recusava melancolicamente a engraxar as botas do patrão: "Para quê? dizia, será preciso recomeçar amanhã". Muitas moças ainda mal resignadas partilham esse desânimo. Lembro-me da dissertação de uma aluna de 16 anos, que começava mais ou menos por estas palavras: "É hoje dia de limpeza geral. Ouço o ruído do aspirador que mamãe passeia através do salão. Quisera fugir. Juro a mim mesma que quando for grande não haverá nunca, em casa, dia de limpeza geral". A criança encara o futuro como uma ascensão indefinida para não se sabe que pico. Repentinamente, na cozinha onde a mãe lava os pratos, a filha compreende que há anos, todas as tardes, à mesma hora, aquelas mãos mergulharam na água gordurosa, enxugaram a porcelana com o trapo rugoso. E até a morte serão elas submetidas a esses ritos. Comer, dormir, limpar..., os anos não escalam mais o céu, espalham-se idênticos e cinzentos sobre uma toalha horizontal; cada novo dia imita o dia precedente; é um eterno presente inútil e sem esperança. Na novela intitulada La Poussière, Colette Audry descreveu sutilmente a triste vaidade de uma atividade que se obstina contra o tempo:
Foi no dia seguinte que, ao passar a vassoura em baixo do sofá, arrastou com ela alguma coisa que a princípio se lhe afigurou um pedaço de algodão ou uma volumosa penugem. Mas era apenas um floco de poeira, como se formam nos armários altos que esquecem de limpar, ou atrás dos móveis, entre a madeira e a parede. Ficou pensativa diante da curiosa substância. Assim, havia oito ou dez semanas que viviam naqueles cômodos e, apesar da vigilância de Juliette, um floco de poeira tivera lazer para formar-se, engordar, agachado na sombra como aqueles bichos cinzentos que lhe infundiam medo quando pequena. Uma cinza fina de poeira proclama a negligência, um começo de abandono, é o impalpável depósito do ar que se respira, das roupas que flutuam, do ar que entra pelas janelas abertas; mas aquele floco já representava um segundo estado da poeira, a poeira triunfante, um espessamento que toma forma, e de depósito passa a resíduo. Era quase bonito, transparente e leve como a polpa das sarças, porém mais descorado.
... A poeira andara mais depressa do que todo o poder aspirante do mundo. Tomara conta do mundo e o aspirador já não passava de um objeto-testemunho, destinado a mostrar tudo o que a espécie humana era capaz de esperdiçar como trabalho, matéria e engenho para lutar contra a irresistível sujeira. Era o resíduo feito instrumento.
... Era a vida em comum a causa de tudo, suas pequenas refeições que deixavam restos, suas duas poeiras que se misturavam por toda parte. . . Cada casa secreta suas pequenas imundícies que é preciso destruir para dar lugar a outras... Que vida se leva — e para poder sair com um peitilho limpo que atrai o olhar dos transeuntes, para que um engenheiro, que é o marido, se apresente bem na vida. Fórmulas passavam pela cabeça de Marguerite: cuidar da conservação do assoalho... para a conservação dos objetos de cobre, empregar... estava encarregada da conservação de dois seres quaisquer até o fim de seus dias
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O Segundo Sexo - 01. Fatos e Mitos: que é uma mulher?
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo II - A Moça (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo III - A Iniciação Sexual (1)
O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo IV - A Lésbica (1)
O Segundo Sexo - 02. Situação: Capítulo I - A Mulher Casada (1)
As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.
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