volume VI
A Fugitiva
Capítulo I
Mágoa e Esquecimento
continuando...
Escrevi à Albertine:
Minha amiga, ia justamente lhe escrever e agradeço-lhe o ter dito que, se eu tivesse necessidade de você, teria voltado logo; é bem do seu feitio compreender de forma tão elevada o devotamento a um velho amigo e minha estima por você só pode ter aumentado. Mas não, eu não o pedira e não o pedirei; voltar a ver-nos, ao menos daqui a muito tempo, talvez não lhe fosse penoso, moça insensível. Para mim, que às vezes você julgara tão indiferente, seria muito. A vida nos separou. Você tomou uma decisão que acho muito sensata e que ocorreu no momento adequado, com um pressentimento maravilhoso, pois você partiu no dia seguinte àquele em que eu acabava de receber o consentimento de minha mãe para pedir a sua mão. Eu o teria dito quando despertasse, quando recebi a carta dela (ao mesmo tempo que a sua!). Talvez você tivesse receado me fazer sofrer, indo embora nessa ocasião. E talvez tivéssemos unido as nossas vidas pelo que seria, quem sabe? uma desgraça para nós. Se isso era o que havia de acontecer, bendita a sua sabedoria. Perderíamos todos os seus frutos se nos tornássemos a ver. Não que isso não fosse tentador. Mas é pequeno o meu mérito em resistir. Você conhece a criatura inconstante que sou, e como esqueço depressa. Assim, não tenho de que me queixar. Você me disse isto várias vezes, sou principalmente um homem de hábitos. Os que começo a adquirir sem você ainda não são muito arraigados. É claro que, neste momento, os que possuía com você e que sua partida transtornou são ainda os mais fortes. Não o serão por muito tempo. Justo por esse motivo, eu havia pensado em aproveitar esses últimos dias em que ver você ainda não seria para mim o que será daqui a duas semanas, talvez menos (desculpe a franqueza): um incômodo pensei em aproveitá-los, antes do esquecimento final, para que resolvêssemos juntos pequenas questões materiais em que você poderia, boa e encantadora amiga, prestar um serviço àquele que se julgou, por cinco minutos, o seu noivo. Como não duvidava da aprovação de minha mãe, como, por outro lado, desejava que cada um de nós tivesse toda essa liberdade da qual você me fez, muito gentil e abundantemente, um sacrifício que se podia admitir para uma vida em comum de algumas semanas, mas que se tornaria tão odiosa para você quanto à mim, agora que devíamos passar a vida inteira juntos (quase me magoa, ao lhe escrever neste momento, pensar que isso esteve a ponto de ocorrer, esteve por um atriz); tinha pensado em organizar nossa existência da maneira mais independente possível e, para começar, quisera que você possuísse aquele iate, no qual poderia alar, enquanto eu, por demais enfermo, ficaria esperando no porto; tinha escrito a Elstir para pedir conselho, já que você aprecia o seu gosto. Em terra, eu que você tivesse um automóvel só para seu uso particular, no qual sairia; a seu bel-prazer.
O iate já estava quase pronto e se chama, conforme se, expressa em Balbec, o Cisne. E,
lembrando-me que você preferiria os carros Rolls-Royce a todos os demais, havia encomendado
um destes. Pois bem, agora que não nos veremos mais, e como não espero fazê-la aceitar o
barco nem o carro (para mim, eles não teriam utilidade nenhuma), tinha pensado que
encomendara a um intermediário; mas dando o seu nome você talvez cancelando a encomenda,
evitar-me esse iate e esse carro inúteis. Mas para muitas outras coisas, precisamos conversar.
Ora, parece-me que, se for suscetível de amá-la novamente (o que não deverá durar muito tempo)
é insensato, por causa de um barco a vela e de um Rolls-Royce, que nos viéssemos de novo,
arriscando a felicidade da sua vida, pois você julga que ela consista ser longe de mim. Não, prefiro
conservar o Rolls-Royce e até o iate. E, como não me utilizarei deles e ambos certamente ficarão,
sempre, um desarmado e o outro na garagem, mandarei gravar no... (meu Deus, não ouso
escrever um inexato de peça e cometer uma heresia que a deixaria chocada) no iate estes versos
de Mallarmé de que você gosta:
Un cygne, d'autrefois se souvient que c'est lui Magnifique mais qui sans espoir se délivre Pour
n'avoir pas chanté Ia région oú vivre Quand du stérile hiver a resplendi I'ennui.
["Um cisne de outrora se recorda que é magnífico, mas sem esperanças se desprende, por não
ter região onde viveu quando resplandeceu o tédio do estéril inverno." (N. do T)]
Você se lembra, é a poesia que assim começa: Le vierge, le vivace aujourd'hui.
["O virgem, o vivaz, o belo dia de hoje."(N. do T)]
Infelizmente o dia de hoje já não é virgem nem belo. Porém que, como eu, sabem que irão
logo formar desse "hoje" um "amanhã" suportável, que também são quase insuportáveis. Quanto
ao Rolls-Royce, mereceria antes outros versos do mesmo poeta, que você dizia não poder
compreender:
Dis si je ne suis pas joyeux
Tonnerre et rubis aux moyeux De voir en I'air que ce teu troue
Avec des royaumes épars Comme mourir pourpre la roue Du seu I vésperal de mes chars.
["Diga se não sou feliz / Nos eixos corisco e rubis / Por ver no ar que este fogo fura/ E com os reinos/ Como acabar púrpura a roda / De uma só vesperal de meus carros." (N. do T)]
Adeus para sempre, minha pequena Albertine, e obrigado ainda pelo bom passeio que fizemos juntos na véspera de nossa separação. Guardo uma lembrança muito boa dele. P.S.: Não respondo ao que você me diz das pretensas proposições que Saint-Loup (que de modo algum creio que esteja na Touraine) teria feito à sua tia. Isso é coisa de Sherlock Holmes. Que ideia você faz de mim?
["Diga se não sou feliz / Nos eixos corisco e rubis / Por ver no ar que este fogo fura/ E com os reinos/ Como acabar púrpura a roda / De uma só vesperal de meus carros." (N. do T)]
Adeus para sempre, minha pequena Albertine, e obrigado ainda pelo bom passeio que fizemos juntos na véspera de nossa separação. Guardo uma lembrança muito boa dele. P.S.: Não respondo ao que você me diz das pretensas proposições que Saint-Loup (que de modo algum creio que esteja na Touraine) teria feito à sua tia. Isso é coisa de Sherlock Holmes. Que ideia você faz de mim?
Sem dúvida, da mesma forma que antigamente eu dissera a Albertine: "Não amo você",
para que ela passasse a me amar; "esqueço as pessoas quando fico sem vê-las", a fim de que ela
me visse bem mais vezes; "decidi abandoná-la", para prevenir toda ideia de separação-agora,
porque desejava absolutamente que ela voltasse dali a uma semana, é que eu dizia: "Adeus para
sempre;" é porque desejava revê-la, que lhe dizia: "Acho perigoso que nos voltemos a ver";
porque viver separado dela me parecia pior que morrer, é que lhe escrevia: "Você tem razão,
seríamos infelizes juntos." Ai de mim, esta carta fingida, que escrevi para dar a impressão de não
me importar com ela (único orgulho que restou de meu antigo amor por Gilberte no meu amor por
Albertine) e também pela doçura de dizer certas coisas que só podiam emocionar a mim e não a
ela, deveria eu ter previsto logo ser possível que ela tivesse como resultado uma resposta
negativa, ou seja, que consagrasse o que eu dizia; que era até provável que tal ocorresse, pois,
ainda que Albertine fosse menos inteligente do que era, não teria duvidado um só instante do que
o que eu dizia era falso. Com efeito, sem deter-se nas intenções que eu enunciava nessa carta, só
o fato de escrevê-la, mesmo que não se seguisse à missão de Saint-Loup, já lhe bastava para
provar o meu desejo de que ela voltasse e para aconselhá-la a me deixar cada vez mais fisgado
no anzol. Depois, tendo previsto a possibilidade de uma resposta negativa, deveria prever
igualmente que essa resposta de súbito me restituiria, em sua mais extrema vivacidade, o meu
amor por Albertine. E deveria ter indagado a mim mesmo, antes de enviar a carta, se, no caso de
Albertine responder no mesmo tom e não querer voltar, eu seria suficientemente senhor de
minhas mágoas para me forçar a permanecer em silêncio, para não lhe telegrafar: VOLTE, ou não
lhe enviar outro emissário, o que, depois de lhe haver escrito que não mais nos veríamos, seria
mostrar-lhe, até a última evidência, que não podia passar sem ela, e teria como resultado que ela
recusasse ainda mais energicamente, e que, não podendo mais suportar a minha angústia,
partisse ao seu encontro, talvez para não ser recebido. E, sem dúvida, esta teria sido, após três
enormes atitudes desastradas, a pior de todas, depois do que só me restaria o suicídio diante da
sua casa. Mas a forma caótica com que se constrói o universo psicopatológico obriga a que ato
desastrado, o ato que acima de tudo seria preciso evitar, seja justamente o ato calmante, o ato
que, abrindo-nos outras perspectivas de esperança até que lhe percebamos o resultado,
desembarace-nos momentaneamente da dor intolerável que a recusa faz nascer em nós. De
modo que, quando a dor é excessivamente forte, precipitamo-nos na falta de jeito que consiste em
escrever, em implorar a outrem, em ir ver, em provar que não podemos passar sem a mulher
amada. Mas não previ nada disso. Parecia-me, ao contrário, que o resultado da carta era o de
fazer Albertine voltar o mais rápido possível. Assim, pensando na consequência, sentira uma
grande doçura ao escrever a carta. Mas, ao mesmo tempo, não deixara de chorar enquanto
escrevia; primeiro, um pouco da forma como no dia em que havia representado a separação falsa,
porque as palavras, configurando-me à ideia que me expressavam, embora tendessem ao
objetivo oposto (pronunciadas mentirosamente para, por orgulho, não reconhecer que eu a
amava), traziam nelas a sua tristeza; mas também porque eu sentia que a ideia tinha o seu tanto
de verdade.
Volume 6
continua na página 21...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - f)
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