terça-feira, 19 de setembro de 2023

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - f)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva



Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...


Escrevi à Albertine: 

Minha amiga, ia justamente lhe escrever e agradeço-lhe o ter dito que, se eu tivesse necessidade de você, teria voltado logo; é bem do seu feitio compreender de forma tão elevada o devotamento a um velho amigo e minha estima por você só pode ter aumentado. Mas não, eu não o pedira e não o pedirei; voltar a ver-nos, ao menos daqui a muito tempo, talvez não lhe fosse penoso, moça insensível. Para mim, que às vezes você julgara tão indiferente, seria muito. A vida nos separou. Você tomou uma decisão que acho muito sensata e que ocorreu no momento adequado, com um pressentimento maravilhoso, pois você partiu no dia seguinte àquele em que eu acabava de receber o consentimento de minha mãe para pedir a sua mão. Eu o teria dito quando despertasse, quando recebi a carta dela (ao mesmo tempo que a sua!). Talvez você tivesse receado me fazer sofrer, indo embora nessa ocasião. E talvez tivéssemos unido as nossas vidas pelo que seria, quem sabe? uma desgraça para nós. Se isso era o que havia de acontecer, bendita a sua sabedoria. Perderíamos todos os seus frutos se nos tornássemos a ver. Não que isso não fosse tentador. Mas é pequeno o meu mérito em resistir. Você conhece a criatura inconstante que sou, e como esqueço depressa. Assim, não tenho de que me queixar. Você me disse isto várias vezes, sou principalmente um homem de hábitos. Os que começo a adquirir sem você ainda não são muito arraigados. É claro que, neste momento, os que possuía com você e que sua partida transtornou são ainda os mais fortes. Não o serão por muito tempo. Justo por esse motivo, eu havia pensado em aproveitar esses últimos dias em que ver você ainda não seria para mim o que será daqui a duas semanas, talvez menos (desculpe a franqueza): um incômodo pensei em aproveitá-los, antes do esquecimento final, para que resolvêssemos juntos pequenas questões materiais em que você poderia, boa e encantadora amiga, prestar um serviço àquele que se julgou, por cinco minutos, o seu noivo. Como não duvidava da aprovação de minha mãe, como, por outro lado, desejava que cada um de nós tivesse toda essa liberdade da qual você me fez, muito gentil e abundantemente, um sacrifício que se podia admitir para uma vida em comum de algumas semanas, mas que se tornaria tão odiosa para você quanto à mim, agora que devíamos passar a vida inteira juntos (quase me magoa, ao lhe escrever neste momento, pensar que isso esteve a ponto de ocorrer, esteve por um atriz); tinha pensado em organizar nossa existência da maneira mais independente possível e, para começar, quisera que você possuísse aquele iate, no qual poderia alar, enquanto eu, por demais enfermo, ficaria esperando no porto; tinha escrito a Elstir para pedir conselho, já que você aprecia o seu gosto. Em terra, eu que você tivesse um automóvel só para seu uso particular, no qual sairia; a seu bel-prazer.
O iate já estava quase pronto e se chama, conforme se, expressa em Balbec, o Cisne. E, lembrando-me que você preferiria os carros Rolls-Royce a todos os demais, havia encomendado um destes. Pois bem, agora que não nos veremos mais, e como não espero fazê-la aceitar o barco nem o carro (para mim, eles não teriam utilidade nenhuma), tinha pensado que encomendara a um intermediário; mas dando o seu nome você talvez cancelando a encomenda, evitar-me esse iate e esse carro inúteis. Mas para muitas outras coisas, precisamos conversar. Ora, parece-me que, se for suscetível de amá-la novamente (o que não deverá durar muito tempo) é insensato, por causa de um barco a vela e de um Rolls-Royce, que nos viéssemos de novo, arriscando a felicidade da sua vida, pois você julga que ela consista ser longe de mim. Não, prefiro conservar o Rolls-Royce e até o iate. E, como não me utilizarei deles e ambos certamente ficarão, sempre, um desarmado e o outro na garagem, mandarei gravar no... (meu Deus, não ouso escrever um inexato de peça e cometer uma heresia que a deixaria chocada) no iate estes versos de Mallarmé de que você gosta:

Un cygne, d'autrefois se souvient que c'est lui Magnifique mais qui sans espoir se délivre Pour n'avoir pas chanté Ia région oú vivre Quand du stérile hiver a resplendi I'ennui. 

["Um cisne de outrora se recorda que é magnífico, mas sem esperanças se desprende, por não ter região onde viveu quando resplandeceu o tédio do estéril inverno." (N. do T)] 

Você se lembra, é a poesia que assim começa: Le vierge, le vivace aujourd'hui. 

["O virgem, o vivaz, o belo dia de hoje."(N. do T)]

Infelizmente o dia de hoje já não é virgem nem belo. Porém que, como eu, sabem que irão logo formar desse "hoje" um "amanhã" suportável, que também são quase insuportáveis. Quanto ao Rolls-Royce, mereceria antes outros versos do mesmo poeta, que você dizia não poder compreender:

Dis si je ne suis pas joyeux 
Tonnerre et rubis aux moyeux De voir en I'air que ce teu troue 
Avec des royaumes épars Comme mourir pourpre la roue Du seu I vésperal de mes chars.  

["Diga se não sou feliz / Nos eixos corisco e rubis / Por ver no ar que este fogo fura/ E com os reinos/ Como acabar púrpura a roda / De uma só vesperal de meus carros." (N. do T)] 

Adeus para sempre, minha pequena Albertine, e obrigado ainda pelo bom passeio que fizemos juntos na véspera de nossa separação. Guardo uma lembrança muito boa dele. P.S.: Não respondo ao que você me diz das pretensas proposições que Saint-Loup (que de modo algum creio que esteja na Touraine) teria feito à sua tia. Isso é coisa de Sherlock Holmes. Que ideia você faz de mim?

Sem dúvida, da mesma forma que antigamente eu dissera a Albertine: "Não amo você", para que ela passasse a me amar; "esqueço as pessoas quando fico sem vê-las", a fim de que ela me visse bem mais vezes; "decidi abandoná-la", para prevenir toda ideia de separação-agora, porque desejava absolutamente que ela voltasse dali a uma semana, é que eu dizia: "Adeus para sempre;" é porque desejava revê-la, que lhe dizia: "Acho perigoso que nos voltemos a ver"; porque viver separado dela me parecia pior que morrer, é que lhe escrevia: "Você tem razão, seríamos infelizes juntos." Ai de mim, esta carta fingida, que escrevi para dar a impressão de não me importar com ela (único orgulho que restou de meu antigo amor por Gilberte no meu amor por Albertine) e também pela doçura de dizer certas coisas que só podiam emocionar a mim e não a ela, deveria eu ter previsto logo ser possível que ela tivesse como resultado uma resposta negativa, ou seja, que consagrasse o que eu dizia; que era até provável que tal ocorresse, pois, ainda que Albertine fosse menos inteligente do que era, não teria duvidado um só instante do que o que eu dizia era falso. Com efeito, sem deter-se nas intenções que eu enunciava nessa carta, só o fato de escrevê-la, mesmo que não se seguisse à missão de Saint-Loup, já lhe bastava para provar o meu desejo de que ela voltasse e para aconselhá-la a me deixar cada vez mais fisgado no anzol. Depois, tendo previsto a possibilidade de uma resposta negativa, deveria prever igualmente que essa resposta de súbito me restituiria, em sua mais extrema vivacidade, o meu amor por Albertine. E deveria ter indagado a mim mesmo, antes de enviar a carta, se, no caso de Albertine responder no mesmo tom e não querer voltar, eu seria suficientemente senhor de minhas mágoas para me forçar a permanecer em silêncio, para não lhe telegrafar: VOLTE, ou não lhe enviar outro emissário, o que, depois de lhe haver escrito que não mais nos veríamos, seria mostrar-lhe, até a última evidência, que não podia passar sem ela, e teria como resultado que ela recusasse ainda mais energicamente, e que, não podendo mais suportar a minha angústia, partisse ao seu encontro, talvez para não ser recebido. E, sem dúvida, esta teria sido, após três enormes atitudes desastradas, a pior de todas, depois do que só me restaria o suicídio diante da sua casa. Mas a forma caótica com que se constrói o universo psicopatológico obriga a que ato desastrado, o ato que acima de tudo seria preciso evitar, seja justamente o ato calmante, o ato que, abrindo-nos outras perspectivas de esperança até que lhe percebamos o resultado, desembarace-nos momentaneamente da dor intolerável que a recusa faz nascer em nós. De modo que, quando a dor é excessivamente forte, precipitamo-nos na falta de jeito que consiste em escrever, em implorar a outrem, em ir ver, em provar que não podemos passar sem a mulher amada. Mas não previ nada disso. Parecia-me, ao contrário, que o resultado da carta era o de fazer Albertine voltar o mais rápido possível. Assim, pensando na consequência, sentira uma grande doçura ao escrever a carta. Mas, ao mesmo tempo, não deixara de chorar enquanto escrevia; primeiro, um pouco da forma como no dia em que havia representado a separação falsa, porque as palavras, configurando-me à ideia que me expressavam, embora tendessem ao objetivo oposto (pronunciadas mentirosamente para, por orgulho, não reconhecer que eu a amava), traziam nelas a sua tristeza; mas também porque eu sentia que a ideia tinha o seu tanto de verdade.

continua na página 21...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - f)


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