A Hora da Estrela
continuando...
– Depois que minha santa mãe morreu, nada mais me prendia
na Paraíba.
– De que é que ela morreu?
– De nada. Acabou-se a saúde dela.
Ele falava coisas grandes mas ela prestava atenção nas coisas
insignificantes como ela própria. Assim registrou um portão
enferrujado, retorcido, rangente e descascado que abria o caminho
para uma série de casinhas iguais de vila. Vira isso do ônibus. A vila
além do número 106 tinha uma plaqueta onde estava escrito o nome
das casas. Chamava-se “Nascer do Sol”. Bonito o nome que também
augurava coisas boas.
Ela achava Olímpico muito sabedor das coisas. Ele dizia o que
ela nunca tinha ouvido. Uma vez ele falou assim:
– A cara é mais importante do que o corpo porque a cara
mostra o que a pessoa está sentindo. Você tem cara de
quem comeu e não gostou, não aprecio cara triste, vê se
muda – e disse uma palavra difícil – vê se muda de
“expressão”.
Ela disse consternada:
– Não sei como se faz outra cara. Mas é só na cara que sou
triste porque por dentro eu só até alegre. É tão bom viver, não é?
– Claro! Mas viver bem é coisa de privilegiado. Eu sou um e
você me vê magro e pequeno mas sou forte, eu com um braço posso
levantar você do chão. Quer ver?
– Não, não, os outros olham e vão maldar!
– Magricela esquisita ninguém olha.
E lá foram para a esquina. Macabéa estava muito feliz.
Realmente ele a levantou para o ar, acima da própria cabeça. Ela
disse eufórica:
– Deve ser assim viajar de avião.
É. Mas de repente ele não aguentou o peso num só braço e ela
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caiu de cara na lama, o nariz sangrando. Mas era delicada e foi logo
dizendo:
– Não se incomode, foi uma queda pequena.
Como não tinha lenço para limpar a lama e o sangue, enxugou
o rosto com a saia, dizendo:
– Você não olhe enquanto eu estiver me limpando, por favor,
porque é proibido levantar a saia.
Mas ele emburrara de vez e não disse mais nenhuma palavra.
Passou vários dias sem procurá-la: seu brio fora atingido.
Afinal terminou por voltar para ela. Por motivos diferentes
entraram num açougue. Para ela o cheiro da carne crua era um
perfume que a levitava toda como ,se tivesse comido. Quanto a ele, o
que queria ver era o açougueiro e sua faca amolada. Tinha inveja do
açougueiro e também queria ser. Meter a faca na carne o excitava.
Ambos saíram do açougue satisfeitos. Embora ela se perguntasse:
que gosto terá esta carne? E ele se perguntava: como é que uma
pessoa consegue ser açougueiro? Qual era o segredo? (O pai de
Glória trabalhava num açougue belíssimo.) Ela disse:
– Eu vou ter tanta saudade de mim quando morrer.
– Besteira, morre-se e morre-se de uma vez.
– Não foi o que minha tia me ensinou.
– Que tua tia se dane.
– Sabe o que eu mais queria na vida? Pois era ser artista de
cinema. Só vou ao cinema no dia em que o chefe me paga. Eu
escolho cinema poeira, sai mais barato. Adoro as artistas. Sabe que
Marylin era toda cor-de-rosa?
– E você tem cor de suja. Nem tem rosto nem corpo para ser
artista de cinema.
– Você acha mesmo?
– Tá na cara.
– Não gosto de ver sangue no cinema. Olhe, sangue eu não
posso mesmo ver porque me dá vontade de vomitar.
– Vomitar ou chorar?
– Até hoje com a graça de Deus nunca vomitei.
– É, dessa vaca não sai leite.
Pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito se pensava.
Mas Olímpico não só pensava como usava palavreado fino. Nunca
esqueceria que no primeiro encontro ele a chamara de “senhorinha”,
ele fizera dela um alguém. Como era um alguém, comprou um batom
cor-de-rosa. O seu diálogo era sempre oco. Dava-se conta
longinquamente de que nunca dissera uma palavra verdadeira. E
“amor” ela não chamava de amor, chamava de não-sei-o-quê.
– Olhe, Macabéa...
– Olhe o quê?
– Não, meu Deus, não é “olhe” de ver, é “olhe” como quando se
quer que uma pessoa escute! Está me escutando?
– Tudinho, tudinho!
– Tudinho o quê, meu Deus, pois se eu ainda não falei! Pois
olhe vou lhe pagar um cafezinho no botequim. Quer?
– Pode ser pingado com leite?
– Pode, é o mesmo preço, se for mais, o resto você paga.
Macabéa não dava nenhuma despesa a Olímpico. Só dessa vez
quando lhe pagou um cafezinho pingado que ela encheu de açúcar
quase a ponto de vomitar mas controlou-se para não fazer vergonha.
O açúcar ela botou muito para aproveitar.
E uma vez os dois foram ao Jardim Zoológico, ela pagando a
própria entrada. Teve muito espanto ao ver os bichos. Tinha medo e
não os entendia: por que viviam? Mas quando viu a massa compacta,
grossa, preta e roliça do rinoceronte que se movia em câmara lenta,
teve tanto medo que se mijou toda. O rinoceronte lhe pareceu um
erro de Deus, que me perdoe por favor, sim? Mas não pensara em
Deus nenhum, era apenas um modo de. Com a graça de alguma
divindade Olímpico nada percebeu e ela disse a ele:
– Estou molhada porque me sentei no banco molhado. E ele
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nada percebeu. Ela rezou automaticamente em agradecimento. Não
era agradecimento a Deus, só estava repetindo o que aprendera na
infância.
– A girafa é tão elegante, não é?
– Besteira, bicho não é elegante.
Ela teve inveja da girafa que pairava tão longe no ar. Tendo
visto que seus comentários sobre bichos não agradavam Olímpico,
procurou outro assunto:
– Na Rádio Relógio disseram uma palavra que achei meio
esquisita: mimetismo.
Olímpico olhou-a desconfiado:
– Isso é lá coisa para moça virgem falar? E para que serve
saber demais? O Mangue está cheio de raparigas que fizeram
perguntas demais.
– Mangue é um bairro?
– É lugar ruim, só pra homem ir. Você não vai entender mas eu
vou lhe dizer uma coisa: ainda se encontra mulher barata. Você me
custou pouco, um cafezinho. Não vou gastar mais nada com você,
está bem?
Ela pensou: eu não mereço que ele me pague nada porque me
mijei.
continua pág 60...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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A Hora da Estrela - E o namoro continuava ralo
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