quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Marcel Proust - O Tempo Recuperado (Os artistas)

em busca do tempo perdido

volume VII
O Tempo Recuperado



continuando...

Os artistas que nos legaram as maiores impressões de elegância raramente colheram elementos na casa de pessoas que estavam entre os grandes elegantes de seu tempo, os quais dificilmente se fazem pintar pelo desconhecido portador de uma beleza que eles não sabem avaliar em suas telas, dissimulada como está pela interposição de chavões cuja graça antiquada flutua, aos olhos do público, como as visões subjetivas que o enfermo julga estarem efetivamente diante dele. Mas que esses sujeitos medíocres, que eu havia conhecido, tivessem além disso inspirado, aconselhado certos arranjos que me encantaram, que a presença de algum deles fosse mais importante que a de um modelo, fosse a de um amigo que o pintor desejasse ostentar em suas telas, isto levava-me a indagar se todas as pessoas que lamentamos não haver conhecido porque Balzac as pintava em seus livros, ou lhes dedicava estes em tributo à admiração que nutria por eles, porque sobre tais pessoas Baudelaire ou Sainte-Beuve fizeram seus mais belos versos, a indagar se, com mais razão ainda, todas as Récamier, todas as Pompadour não me tivessem parecido pessoas insignificantes, seja por debilidade da minha natureza (o que me dava revolta por ser doente e não poder reencontrar todos aqueles que desconhecera), ou porque, de fato, só devessem o seu prestígio a uma magia ilusória da literatura, o que obrigava a usar um dicionário diferente para ler, e me consolava de precisar, de um dia para o outro, devido aos progressos de meu estado enfermiço, romper com a sociedade, renunciar às viagens, aos museus, para ir tratar-me numa casa de saúde. Talvez, no entanto, esse lado mentiroso, essa falsa luz, só exista nas Memórias quando elas são muito recentes, quando as reputações se aniquilam bem depressa, tanto as intelectuais quanto as mundanas (pois, se a erudição tenta reagir logo contra semelhante sepultamento, conseguirá afastar um em mil desses esquecimentos que se acumulam?).

Essas ideias, tendendo umas a diminuir, outras a aumentar a minha tristeza por não possuir dotes literários, jamais se apresentaram ao meu pensamento durante os longos anos que passei longe em Paris, num sanatório, onde aliás renunciei de todo ao projeto de escrever, até que a casa de saúde se viu desfalcada de pessoal médico, em princípios de 1916. Regressei, então, a uma Paris bem diversa, como em breve se verá, daquela a que regressara uma primeira vez, em agosto de 1914, para sofrer um exame médico, após o qual me recolhera de novo ao sanatório. Numa das primeiras noites de meu novo retorno, em 1916, tendo vontade de ouvir falar da única coisa, então me importava, a guerra, saí depois do jantar para fazer uma visita à Verdurin, pois ela estava com a Sra. Bontemps, uma das rainhas durante a guerra, que lembrava a do Diretório. Como que pela ação de um fermento, em aparência de geração espontânea, as moças andavam todo com altos turbantes cilíndricos como o faria uma contemporânea da Senhora. trazendo, por civismo, túnicas egípcias retas, escuras, ao jeito militar, muito curtas, calçavam sapatos atados por correias, lembrando o coturno de longas polainas como as de nossos caros combatentes; porque não se esqueciam de seu dever de alegrar os olhos desses combatentes, diziam, era que como se enfeitavam não só de vestidos "flutuantes", mas também de joias, cujos decorativos evocavam o exército mesmo quando o material dele não procede, nem nele fora trabalhado. Em vez de ornatos egípcios que lembrassem a carne do Egito, viam-se anéis e braceletes feitos com fragmentos de canhões; de isqueiros formados por duas moedas inglesas, às quais um em seu abrigo, lograra dar uma pátina tão bela que se diria traçado pelo perfil da rainha Vitória; era, também, por pensarem nisso constantemente; ainda, que, quando morria um dos seus, mal punham luto, ao pretexto de "mesclado de orgulho", o que permitia um bonezinho branco de crepe mais gracioso efeito e que "autorizava todas as esperanças", invencível do triunfo definitivo; e substituíra casimira de outrora pelo cetim e pela seda; e até mesmo conservar as pérolas, "sempre observando o tato e a que é escusado lembrar às francesas".

O Louvre e todos os museus estavam fechados, e, quando se lia na manchete de um jornal: "Uma exposição sensacional", podia-se ter certeza de que tratava de uma exposição, não de quadros, mas de vestidos; e aliás vestidos adornados à "essas delicadas joias de arte de que as parisienses há muito são privadas". Desse modo é que voltavam a elegância e o prazer; a elegância, na das artes, procurando desculpar-se, como os artistas de 1793, ano em que, no Salão revolucionário, proclamavam que pareceria injustamente "estranhos publicanos austeros que nos ocupemos das artes quando a Europa, assedia o território da liberdade". Assim procediam, em 1916, os costureiras aliás, com uma orgulhosa consciência de artistas, confessavam que, "por novo, afastar a seda; banalidade, afirmar uma personalidade, preparara vitória, para as gerações do pós-guerra uma nova fórmula do belo, tal era a ambição que os animava, a quimera que perseguiam, conforme se poderia constatar indo, seus salões deliciosamente instalados na rua da ..., onde a palavra de ordem era se apagar, com um tom luminoso e alegre, as pesadas tristezas da ocasião, discrição todavia imposta pelas circunstâncias".

"As tristezas da ocasião", é verdade, "poderiam, sem dúvida, vender as energias femininas se não tivéssemos tantos altos exemplos de coragem, a existência a nos servir de meditação. Assim, pensando em nossos combatentes que, no fundo de suas trincheiras, sonham com mais conforto e mais graça para a querida ausente, deixada no lar, não cessaremos de caprichar cada vez mais na criação de vestidos que se adaptem às necessidades do momento. A voga, isto se percebe, "é sobretudo a das casas inglesas, portanto aliadas, e este ano impera a loucura pelo vestido-tonel, cuja bela simplicidade nos confere a todas um estilo interessante de rara distinção. Será mesmo uma das mais felizes consequências dessa triste guerra", acrescentava o agradável cronista (esperava-se: "a retomada das províncias perdidas, o despertar do sentimento nacional"), "será mesmo uma das mais felizes consequências dessa guerra o fato de se terem obtido belos resultados no terreno da toalete, sem luxo descabido e má qualidade, com tão pouco material, de se terem obtido coisas tão graciosas com quase nada. Ao vestido do grande costureiro, editado com vários exemplares, preferem-se no momento as roupas feitas em casa, porque afirmam o espírito, o gosto e as tendências individuais de cada um". 

Quanto à caridade, pensando em todas as misérias nascidas da invasão, em tantos mutilados, era bem natural que a moda devesse tornar-se "mais engenhosa ainda", o que obrigaria as senhoras de altos turbantes a passar o fim da tarde nos chás, ao redor de uma mesa de bridge, comentando as notícias do front, enquanto à porta esperavam-nas seus automóveis, em cujo assento um belo militar conversava com o lacaio. Aliás, não eram novos apenas os chapéus cujos estranhos cilindros encimavam os rostos. Os próprios rostos o eram também. Essas damas de chapéus novos eram mulheres jovens chegadas não se sabia bem de onde, e que eram a flor da elegância, uma há seis meses, outras há dois anos, outras ainda há quatro. De resto, tais diferenças tinham, para elas, tanta importância como, no tempo em que eu estreara na sociedade, as havia, entre duas famílias como os Guermantes e os La Rochefoucauld, três ou quatro séculos de antiguidade comprovada. A dama que conhecia os Guermantes desde 1914 encarava como uma arrivista aquela que lhe apresentavam na casa deles em 1916, cumprimentava-a com certa distância, examinava-a com seu lorgnon e confessava, com um trejeito, que não se sabia ao certo se aquela senhora era casada ou não. "Tudo isso é por demais nauseabundo", concluía a dama de 1914, que desejaria que o ciclo de novas admissões se encerrasse depois dela. Essas novas pessoas, que os jovens achavam muito antigas, e que, aliás, certos velhos, que haviam frequentado outras rodas além da alta, julgavam reconhecer e não seriam já tão novas, não ofereciam à piedade apenas os divertimentos da conversação política e a música na intimidade de quem lhes convinha; era preciso que fossem as únicas que os oferecessem. Pois, para que as coisas pareçam novas, ainda que antigas, e mesmo se são novas, é preciso, na arte como na medicina, como no mundanismo, nomes novos. (Aliás, novos nomes em certas coisas. Assim, a Sra. Verdurin fora à Veneza durante a guerra, mas, como as pessoas que desejam evitar falar em desgosto e sentimento, dizia que algo era estupendo, o que admirava não era Veneza, nem a catedral de Marcos, nem os palácios, tudo o que me havia agradado e a que ela não dava a mínima importância, e sim o efeito dos projetores no céu, os projetores os quais dava informações apoiadas em cifras. Assim, de tempos em tempos, um certo realismo reagindo contra a arte admirada até então.)

O salão Saint-Euverte era um rótulo desbotado que, mesmo com a lembrança dos maiores artistas e dos ministros mais influentes, não teria atraído. Pelo contrário, corria-se a ouvir uma palavra pronunciada pelo secretário daqueles, ou pelo subchefe de gabinete de um destes, na casa das novas de turbante, cuja invasão alada e tagarela enchia Paris. As damas do primeiro Diretório, possuíam uma rainha que era jovem e bela, e se chamava Madame Tallie'n - segundo tinham duas, velhas e feias, chamadas Sra. Verdurin e Sra. Bontemps. Quem poderia ressentir-se com a Sra. Bontemps por ter o seu marido desejo no Caso Dreyfus, um papel que o Écho de Paris duramente criticara? Tendo a Câmara, em dado momento se tornado revisionista, recrutaram-se forças amplas entre os antigos revisionistas, como entre os antigos socialistas, os membros do Partido da Ordem Social, da tolerância religiosa e da preparação militar. Antigamente, teriam detestado o Sr. Bontemps porque os antipatriotas tinham então os dreyfusistas. Mas em breve esse nome fora esquecido, sendo substituído do adversário da lei dos três anos. O Sr. Bontemps era, ao contrário, um dos adeptos dessa lei; portanto, era um patriota. 

Na sociedade (e aliás semelhante fenômeno social não é senão a aplicação de uma lei psicológica bem mais geral), as novidades, culpadas ou não, só são o horror enquanto não são assimiladas e envoltas em elementos tranquilizam.

continua na página 034...
________________

Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
Volume 7
O Tempo Recuperado (Os artistas)

Nenhum comentário:

Postar um comentário