quarta-feira, 15 de novembro de 2023

O Sol é para todos: 1ª Parte (9d)

Harper Lee

O Sol é para todos


Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto


Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB



PRIMEIRA PARTE

9

continuando...

Tio Jack franziu o cenho. 

— Injusto? Como?

— Você é muito legal, tio Jack, e gosto de você mesmo depois do que fez, mas não entende muito de criança.

Tio Jack pôs as mãos na cintura e olhou para mim.

— E por que não entendo de criança, srta. Jean Louise? Não preciso entender muito para saber o que você fez. Foi rebelde, desobediente e mal-educada.

— Vai me deixar falar? Não quero ser respondona, só quero explicar. 

Tio Jack sentou-se na cama. As sobrancelhas dele se juntaram e ele me olhou sério.

— Vá em frente — ele disse.

Respirei fundo.

— Bom, em primeiro lugar, você não deixou eu contar o meu lado da história, foi logo me batendo. Quando Jem e eu brigamos, Atticus nunca ouve só o lado dele, ouve o meu também. Em segundo lugar, você disse para eu nunca usar palavrão, a não ser quando fosse provocada, e Francis me provocou tanto que merecia que eu o socasse…

Tio Jack coçou a cabeça.

— E qual é o seu lado da história, Scout? 

— Francis não quis retirar o que disse sobre Atticus. 

— O que ele disse?

— Que Atticus adora preto. Não sei direito o que isso quer dizer, mas o jeito que ele falou… Vou dizer uma coisa, tio Jack… juro por Deus, não vou deixar ninguém falar nada de Atticus. 

— Ele disse isso sobre Atticus? 

— Disse. E tem mais: disse que Atticus é a ruína da família, que deixa Jem e eu soltos por aí feito uns selvagens… 

Pela cara de tio Jack, achei que eu fosse levar outra surra, mas quando ele disse “Vamos dar um jeito nisso”, vi que Francis era quem precisava se cuidar.

— Acho que vou à casa de Alexandra esta noite. 

— Por favor, tio, deixa essa história para lá. Por favor. 

— Não tenho a menor intenção de deixar. Alexandra precisa saber disso. Só de pensar que… espera até eu botar as mãos naquele garoto… 

— Por favor, tio Jack, me prometa uma coisa. Prometa que não vai contar nada para Atticus. Ele me pediu uma vez para eu não deixar nada que falassem sobre ele me tirar do sério. Prefiro que ele pense que Francis e eu estávamos brigando por outra coisa. Por favor, prometa…

— Mas não gosto da ideia de Francis se dar bem nessa história…

— Ele já se deu mal. Você pode dar um jeito na minha mão? Ainda está sangrando um pouco. 

— Claro, querida. Não tem nenhuma outra mão da qual eu queira mais cuidar. Pode me acompanhar? 

Tio Jack fez uma reverência para mim e me levou até o banheiro. Enquanto limpava minha mão e fazia curativos, ele me distraiu com a história de um velhinho míope e engraçado, que tinha um gato chamado Hodge e que contava todas as rachaduras na calçada quando ia à cidade.

— Pronto. Você vai ficar com uma cicatriz nem um pouco feminina no dedo da aliança de casamento. 

— Muito obrigada. Tio, posso perguntar uma coisa? 

— Pois não.

— O que é uma prostituta? 

Tio Jack começou outra longa história, dessa vez sobre um velho primeiro-ministro que ficava na Câmara dos Comuns soprando penas para o alto e tentando mantê-las no ar enquanto à sua volta todos os homens estavam perdendo a cabeça. Acho que tio Jack estava tentando responder a minha pergunta, mas não entendi nada. 

Mais tarde, quando eu já devia estar na cama, passei pelo corredor para beber água e ouvi Atticus e tio Jack na sala. 

— Nunca vou me casar, Atticus. 

— Por quê? 

— Porque posso ter filhos.

— Você ainda tem muito o que aprender, Jack — disse Atticus. 

— Eu sei. Sua filha me deu minha primeira lição hoje. Disse que não entendo de criança e explicou por quê. Ela tem razão, Atticus, disse o que eu devia ter feito… ah, meu Deus, me arrependo tanto de ter batido nela. 

Atticus riu. 

— Ela mereceu, então não fique com remorso. 

Esperei, ansiosa, com medo de tio Jack contar o meu lado da história. Mas ele apenas resmungou: 

— Ela usa palavras de baixo calão, mas não sabe o significado delas. Hoje me perguntou o que é uma prostituta…

— E você explicou a ela?

— Não, contei aquela história de lorde Melbourne.

— Jack! Quando uma criança pergunta alguma coisa, você precisa responder, pelo amor de Deus. Mas sem exagerar. Crianças são crianças, mas elas percebem uma evasiva mais rápido que os adultos e ficam confusas. Hoje à tarde você deu a resposta certa — avaliou meu pai —, mas pelas razões erradas. Falar palavrões é uma fase pela qual todas as crianças passam, e com o tempo desaparece, quando elas percebem que não estão conseguindo chamar a atenção. Já o pavio curto é outra coisa. Scout precisa aprender a se controlar, e precisa aprender logo, considerando o que vai enfrentar nos próximos meses. Mas ela tem se esforçado. Jem está amadurecendo e ela segue bastante o exemplo dele. Às vezes, só precisa de um pouco de ajuda. 

— Atticus, você nunca bateu nela — lembrou tio Jack. 

— É verdade. Até agora, só precisei ameaçar. Mas Scout me obedece como pode. Não faz exatamente o que deveria, mas tenta. 

— Essa não é a questão — disse tio Jack.  

— Não, a questão é que ela sabe que eu sei que ela tenta. E é isso que importa. O que me preocupa é que ela e Jem vão ter que lidar com muitas coisas ruins em breve. Não me preocupo com Jem, ele sabe se controlar, mas Scout pode pular no pescoço de alguém se achar que sua honra foi atacada…

Pensei que tio Jack ia quebrar a promessa que tinha feito. Mas ele não disse nada.

— Atticus, quão ruim é esse caso? Ainda não tivemos oportunidade de falar sobre isso.

— Não poderia ficar pior, Jack. Só temos a palavra de um negro contra a dos Ewell. As provas se resumem a “você fez” contra “não fiz”. O júri certamente não vai aceitar a palavra de Tom Robinson contra a dos Ewell. Sabe quem são eles? 

Tio Jack disse que sim, que se lembrava deles. Descreveu-os para Atticus, que disse: 

— Você está atrasado uma geração. Mas eles continuam os mesmos. 

— Então, o que você vai fazer? 

— Antes de terminar a defesa, pretendo sacudir um pouco o júri… Mas acho que temos uma boa chance de apelação. A essa altura, não sei, Jack. Gostaria de nunca enfrentar um caso assim na vida, mas John Taylor apontou o dedo para mim e disse: “Você vai fazer a defesa.”

— Você preferia não ter que fazer isso, não é? 

— É. Mas depois não teria coragem de encarar os meus filhos. Você sabe o que vai acontecer tanto quanto eu, e espero que Jem e Scout passem por isso sem sofrimento e principalmente sem pegar essa doença tão comum em Maycomb. Como pessoas razoáveis ficam possessas quando se trata de qualquer coisa relacionada com um negro eu nunca vou entender… Só espero que Jem e Scout venham me procurar quando quiserem respostas em vez de ficarem dando ouvidos ao que se fala pela cidade. E que confiem em mim… Jean Louise?

Meus cabelos ficaram em pé. Enfiei a cabeça na porta.

— Sim?

— Vá dormir. 

Corri para o meu quarto e deitei na cama. Tio Jack tinha sido um cavalheiro por não me desapontar. Mas nunca descobri como Atticus sabia que eu estava escutando, e só muitos anos depois compreendi que ele queria que eu ouvisse cada palavra.  


continua página 068...
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988 
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês 
TO KILL A MOCKINGBIRD 
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930. 

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