sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Moby Dick: 17 - O Ramadã

Moby Dick

Herman Melville


17 - O RAMADÃ

   Como o Ramadã, ou Jejum e Penitência, de Queequeg iria continuar durante o dia, resolvi não incomodá-lo até o cair da noite; porque sinto muito respeito pelas obrigações religiosas das pessoas, por mais ridículas que sejam, e não subestimaria nem mesmo uma congregação de formigas adorando um cogumelo; e nem aquelas outras criaturas em certas regiões de nossa Terra que, com um grau de servilismo sem precedentes em outros planetas, se curvam em reverência diante do busto de um proprietário de terras defunto apenas em consideração às incontáveis posses que ainda trazem rendimentos em seu nome.
   É a minha opinião que nós, bons Cristãos Presbiterianos, devemos ser caridosos nesses assuntos, sem que nos consideremos tão superiores a outros mortais, pagãos ou sabe-se lá o quê, por conta de suas ideias um tanto desconjuntadas sobre o assunto. Lá estava Queequeg, naquele momento, com as ideias mais absurdas a respeito de Yojo e de seu Ramadã; – mas o que importava? Queequeg achava que sabia o que estava fazendo, imagino; parecia satisfeito; e que assim seja. Toda a nossa argumentação de nada adiantaria; que assim seja, repito: e que o Céu tenha misericórdia de todos nós – Presbiterianos ou Pagãos –, porque estamos todos com a cabeça terrivelmente quebrada, precisando de conserto.
   Ao entardecer, quando achei que as suas práticas e rituais deveriam ter acabado, subi ao seu quarto e bati à porta; mas ninguém respondeu. Tentei abri-la, mas estava trancada por dentro. “Queequeg”, disse baixinho, pelo buraco da fechadura: – silêncio absoluto. “Queequeg, puxa! Por que você não fala? Sou eu – Ishmael.” Mas tudo permaneceu em silêncio como antes. Comecei a ficar preocupado. Tinha lhe dado bastante tempo; achei que podia ter tido um ataque apoplético. Olhei pelo buraco da fechadura; mas, com a porta dando para um estranho canto do quarto, a perspectiva do buraco da fechadura era das piores. Tudo o que vi foi uma parte do pé da cama e um pedaço da parede, nada mais. Fiquei surpreso ao ver encostado à parede o cabo do arpão de Queequeg, que a estalajadeira tinha confiscado na véspera, antes de subirmos ao quarto. Que estranho, pensei; de qualquer modo, já que o arpão está lá, e como ele quase nunca sai sem o arpão, ele deve estar lá dentro do quarto, sem dúvida.

“Queequeg! – Queequeg!” – tudo quieto. Deve ter acontecido algo. Apoplexia! Tentei empurrar a porta, mas ela teimava em não abrir. Corri escada abaixo e contei minha suspeita à primeira pessoa que encontrei, a empregada. “Puxa vida!”, ela gritou, “achei que algo deveria ter acontecido. Fui fazer a cama depois do café-da-manhã, e a porta estava trancada; não se ouvia nem uma mosca lá dentro; e está quieto desde então. Mas eu pensei que talvez vocês dois tivessem saído e trancado a porta por causa da bagagem. Puxa vida! Senhora! Patroa! – Assassinato! Senhora Hussey! Apoplexia!” – e com esses gritos saiu correndo em direção à cozinha, e eu atrás dela.

   A senhora Hussey logo apareceu com um pote de mostarda em uma das mãos e um vidro com vinagre na outra, pois estivera ocupada arrumando os galheteiros e dando uma bronca em seu negrinho.

“O depósito de lenha!”, gritei. “Onde é? Corra, pelo amor de Deus, e pegue alguma coisa para abrir a porta – o machado! – o machado! – ele teve um ataque; pode acreditar!” – e dizendo isso ia subindo a escada de mãos vazias, como um louco, quando a senhora Hussey se interpôs com o pote de mostarda e o vidro com temperos, bem como com todo o vinagre de sua pessoa.

“O que há com você, meu jovem?”

“Pegue o machado! Pelo amor de Deus, chame um médico, alguém, enquanto eu forço a porta!”

“Escute aqui”, disse a estalajadeira, pondo de lado o vidro de vinagre para ter a mão livre; “escute aqui; você está falando em forçar uma das minhas portas?” – e com isso puxou o meu braço. “Qual é o seu problema? Qual é o seu problema, marujo?”

   De uma forma tão calma e rápida quanto possível, fiz com que ela entendesse o caso. Encostando, sem se dar conta, o pote de mostarda no nariz, ela ruminou por um instante; depois exclamou – “Não! De fato não o vi mais depois que o coloquei ali”. Correndo em direção a um pequeno armário embaixo das escadas, deu uma olhada e retornando me disse que o arpão de Queequeg não estava lá. “Ele se matou”, ela gritou. “Tal como o infeliz Stiggs – lá se vai outra colcha – Deus tenha piedade de sua mãe! – será a ruína de minha propriedade. O pobre rapaz tem uma irmã? Onde está a menina? – venha cá, Betty, vá até o pintor Snarles e diga-lhe que faça uma placa com os dizeres – ‘não aceitamos suicidas, e é proibido fumar na sala’; – pode-se matar dois coelhos com uma só cajadada. Matar? Que Deus tenha misericórdia de seu espírito! Que barulho é esse? Você aí, meu jovem, pare com isso!”
   E, correndo atrás de mim, segurou-me enquanto eu tentava forçar a porta.

“Não vou permitir; não vou deixar que estrague minha propriedade. Chame o serralheiro, que fica a mais de um quilômetro daqui. Mas pare com isso!”, e colocou a mão no bolso, “aqui tem uma chave, que pode servir, vamos ver!” Dizendo isso, virou a chave na fechadura; mas, ai! O ferrolho complementar de Queequeg corria por trás da porta. 

“Tenho que arrombá-la”, eu disse, e fui para a entrada para tomar impulso, quando a estalajadeira me pegou, dizendo que eu não deveria quebrar sua propriedade; mas eu me soltei dela e com uma súbita e violenta corrida me joguei contra o alvo.

   Com um barulho notável a porta se abriu, e a maçaneta batendo contra a parede lançou o reboco para o alto; e lá, graças a Deus! Lá estava sentado Queequeg, calmo e composto; bem no meio do quarto; de cócoras; com Yojo em cima da cabeça. Não olhou para nenhum lado, sentado como uma imagem esculpida quase sem sinal de vida. 

“Queequeg”, disse, dirigindo-me a ele, “Queequeg, o que há com você?”

“Ele não ficô’ aí de cócoras o dia inte’ro, né?”, perguntou a estalajadeira. 

   Por mais que nos esforçássemos, não conseguíamos arrancar uma palavra dele; quase cheguei a empurrá-lo para ver se mudava de posição, tão intolerável aquilo me parecia; especialmente porque era muito provável que tivesse mesmo ficado naquela posição por oito ou dez horas, sem fazer nenhuma refeição.

“Senhora Hussey”, disse, “de qualquer modo ele está vivo; portanto, peço-lhe que saia e me deixe tratar sozinho dessa estranha situação.”

   Fechando a porta atrás da estalajadeira, tentei persuadir Queequeg a sentar-se numa cadeira, mas em vão. Ali permaneceu; e – a despeito de todos os meus agrados e estratagemas corteses – ele não se mexeu um milímetro, não disse uma simples palavra, nem olhou para mim, e nem se deu conta de minha presença.
   Será possível que isso faça parte de seu Ramadã?, pensei; será que jejuam de cócoras em sua ilha natal? Deve ser isso; sim, é parte de seu credo, imagino; bom, que assim seja; sem dúvida, mais cedo ou mais tarde ele vai se levantar. Isso não pode durar para sempre, graças a Deus, e seu Ramadã só acontece uma vez ao ano; e não acredito que seja muito pontual.
   Desci para jantar. Depois de ouvir sentado por muito tempo longas histórias de uns marinheiros recém-chegados de uma viagem “pudinzinho de coco”, como a chamavam (isto é, uma viagem rápida de pesca de baleias em escuna ou brigue, cuja rota se limita ao norte da Linha, apenas no oceano Atlântico); depois de escutar esses pudinzeiros até quase onze horas da noite, subi para me deitar, certo de que Queequeg já deveria estar terminando seu Ramadã a essa hora. Mas não; lá estava ele, onde eu o havia deixado; não tinha se mexido um milímetro. Comecei a ficar irritado com ele; parecia-me insensato e irracional sentar-se de cócoras em um quarto frio com um pedaço de madeira na cabeça um dia inteiro e mais metade da noite.

“Pelo amor de Deus, Queequeg, levante-se e mexa-se; levante-se e vá jantar. Você vai morrer de fome; você vai se matar, Queequeg.” Mas ele não respondeu nada. 

   Assim, desesperançado, decidi ir para a cama e dormir; sem dúvida, em breve, ele faria o mesmo. Mas antes de me deitar peguei meu casaco de urso e joguei sobre ele, porque prometia ser uma noite muito fria; e ele estava apenas com seu casaco simples. Por algum tempo, por mais que me esforçasse, não conseguia nem cochilar. Eu tinha apagado a vela; mas a simples ideia de Queequeg – a poucos metros de mim – agachado naquela posição incômoda, sozinho no escuro e no frio; aquilo me deixava bastante aflito. Pense bem; dormir a noite toda no mesmo quarto com um pagão acordado e acocorado, cumprindo os deveres de seu inexplicável Ramadã!
   Mas acabei por adormecer e só acordei ao raiar do dia; ao olhar da cama, vi Queequeg de cócoras, como se estivesse pregado ao chão. Assim que o primeiro raio de sol entrou pela janela, ele se levantou, com as juntas rangendo, mas com uma aparência alegre; cambaleou na minha direção; pressionou seu rosto contra o meu; e disse que seu Ramadã havia terminado.
   Ora, como eu disse antes, não faço objeção à religião de pessoa alguma, seja ela qual for, contanto que a pessoa não mate e nem insulte qualquer outra pessoa que não professe o mesmo credo. Mas quando a religião de um homem se torna destempero; quando é um verdadeiro tormento; e faz com que esta nossa Terra se torne uma estalagem desagradável para a gente se instalar; nesse caso, então, acredito que está na hora de chamar a pessoa à razão e discutir o assunto.
   Foi o que fiz naquela ocasião com Queequeg. “Queequeg”, eu disse, “venha para a cama, e me escute.” Então prossegui, começando com a gênese e a evolução das religiões primitivas, chegando às diferentes religiões do presente, e durante esse tempo me esforcei para mostrar a Queequeg que todas as Quaresmas, Ramadãs e genuflexões prolongadas em quartos frios eram uma tolice; que faziam mal para a saúde; que eram inúteis para a alma; em suma, que se opunham às leis da Higiene e do senso comum. Disse-lhe também que, sendo ele em outras ocasiões um selvagem tão sensível e tão sagaz, me afligia muito vê-lo agindo de modo tão insensato em relação ao seu ridículo Ramadã. Além disso, argumentei, jejuar arruína o corpo; e também faz ruir o espírito; e todos os pensamentos originados durante um jejum devem ser necessariamente um tanto esfomeados. Essa é a razão pela qual a maioria dos religiosos que sofrem de problemas digestivos nutre ideias tão melancólicas sobre seus aléns. Em uma palavra, Queequeg, eu disse, um pouco digressivo, o inferno é uma ideia nascida de um doce de maçã que não desceu bem; e que desde então se perpetuou através das indigestões alimentadas pelos Ramadãs.
   Perguntei então a Queequeg se já sofrera de indigestão, exprimindo a ideia com toda a simplicidade para que ele pudesse compreender. Ele disse que não; exceto numa ocasião memorável. Foi depois do grande banquete oferecido pelo Rei, seu pai, quando venceu uma grande batalha na qual cinquenta inimigos foram mortos antes das duas horas da tarde e foram todos cozidos e devorados à noite.

“Basta, Queequeg”, eu disse, estremecendo, “já chega!”; pois eu sabia o que ele queria dizer sem ter que dizê-lo. Conhecera um marinheiro que tinha visitado a ilha, e ele tinha me dito que era o costume, depois de vencer uma batalha, fazer no quintal ou jardim do vencedor churrasco de todos os mortos; em seguida, estes eram colocados um a um em grandes tachos de madeira, enfeitados com fruta-pão e coco, como um pilau, com salsa na boca, e enviados com os cumprimentos do vencedor a todos os seus amigos, como se fossem vários perus de Natal.

   Pensando bem, não creio que minhas observações sobre religião tenham produzido muito efeito sobre Queequeg. Em primeiro lugar, porque ele parecia embotado ao me ouvir falar sobre assunto tão importante de um ponto de vista diferente do seu; e, em segundo lugar, ele não entendia um terço do que eu falava, por mais simples que fossem minhas ideias; por último, sem dúvida nenhuma, ele achava que sabia mais sobre a verdadeira religião do que eu. Olhou para mim com uma espécie de condescendência e compaixão, como se achasse uma pena que um jovem tão sensato estivesse tão irremediavelmente perdido para a devoção evangélica pagã. 
   Por fim nos levantamos e nos vestimos; Queequeg tomou um café reforçado e comeu tantas caldeiradas que a estalajadeira perdeu o lucro que tinha conseguido com o Ramadã. Depois saímos para embarcar no Pequod, sem pressa, palitando os dentes com as espinhas do linguado.  

Moby Dick: 17 - O Ramadã
Moby Dick: 18 - Sua Marca
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Moby Dick é um romance do escritor estadunidense Herman Melvillesobre um cachalote (grande animal marinho) de cor branca que foi perseguido, e mesmo ferido várias vezes por baleeiros, conseguiu se defender e destruí-los, nas aventuras narradas pelo marinheiro Ishmael junto com o Capitão Ahab e o primeiro imediato Starbuck a bordo do baleeiro Pequod. Originalmente foi publicado em três fascículos com o título "Moby-Dick, A Baleia" em Londres e em Nova York em 1851,
O livro foi revolucionário para a época, com descrições intrincadas e imaginativas do personagem-narrador, suas reflexões pessoais e grandes trechos de não-ficção, sobre variados assuntos, como baleias, métodos de caça a elas, arpões, a cor do animal, detalhes sobre as embarcações, funcionamentos e armazenamento de produtos extraídos das baleias.
O romance foi inspirado no naufrágio do navio Essex, comandado pelo capitão George Pollard, que perseguiu teimosamente uma baleia e ao tentar destruí-la, afundou. Outra fonte de inspiração foi o cachalote albino Mocha Dick, supostamente morta na década de 1830 ao largo da ilha chilena de Mocha, que se defendia dos navios que a perturbavam.
A obra foi inicialmente mal recebida pelos críticos, assim como pelo público por ser a visão unicamente destrutiva do ser humano contra os seres marinhos. O sabor da amarga aventura e o quanto o homem pode ser mortal por razões tolas como o instinto animal, sendo capaz de criar seus fantasmas justamente por sua pretensão e soberba, pode valer a leitura.


E você com o quê se identifica?

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