A Hora da Estrela
continuando...
– Mas puxa vida! Você não abre o bico e nem tem assunto!
Então aflita ela lhe disse:
– Olhe, o Imperador Carlos Magno era chamado na terra dele
de Carolus! E você sabia que a mosca voa tão depressa que se voasse
em linha reta ela ia passar pelo mundo todo em 28 dias?
– Isso é mentira!
– Não é não, juro pela minha alma pura que aprendi isso na
Rádio Relógio!
– Pois não acredito.
– Quero cair morta neste instante se estou mentindo. Quero
que meu pai e minha mãe fiquem no inferno, se estou lhe
enganando.
– Vai ver que cai mesmo morta. Escuta aqui: você está fingindo
que é idiota ou é idiota mesmo?
– Não sei bem o que sou, me acho um pouco... de quê? ...Quer
dizer não sei bem quem eu sou.
– Mas você sabe que se chama Macabéa, pelo menos isso?
– É verdade. Mas não sei o que está dentro do meu nome. Só
sei que eu nunca fui importante...
– Pois fique sabendo que meu nome ainda será escrito nos
jornais e sabido por todo o mundo.
Ela disse para Olímpico:
– Sabe que na minha rua tem um galo que canta?
– Por que é que você mente tanto?
– Juro, quero ver minha mãe cair morta se não é verdade!
– Mas sua mãe já não morreu?
– Ah, é mesmo... que coisa...
(Mas e eu? E eu que estou contando esta história que nunca
me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça? Fico abismado por
saber tanto a verdade. Será que o meu ofício doloroso é o de
adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? Se sei
quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar
de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo
inteiro. Quanto ao paraibano, na certa devo ter-lhe fotografado
mentalmente a cara — e quando se presta atenção espontânea e
virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz quase
tudo.)
E agora apago-me de novo e volto para essas duas pessoas que
por força das circunstancias eram seres meio abstratos.
Mas ainda não expliquei bem Olímpico. Vinha do sertão da
Paraíba e tinha uma resistência que provinha da paixão por sua terra
braba e rachada pela seca. Trouxera consigo, comprada no mercado
da Paraíba, uma lata de vaselina perfumada e um pente, como posse
sua e exclusiva. Besuntava o cabelo preto até encharcá-lo. Não
desconfiava que as cariocas tinham nojo daquela meladeira
gordurosa. Nascera crestado e duro que nem galho seco de árvore ou
pedra ao sol. Era mais passível de salvação que Macabéa pois não
fora à toa que matara um homem, desafeto seu, nos cafundós do
sertão, o canivete comprido entrando mole-mole no fígado macio do
sertanejo. Guardava disso segredo absoluto, o que lhe dava a força
que um segredo dá. Olímpico era macho de briga. Mas fraquejava em
relação a enterros: às vezes ia, três vezes por semana a enterro de
desconhecidos, cujos anúncios saíam nos jornais e sobretudo no O
dia: e seus olhos ficavam cheios de lágrimas. Era uma fraqueza, mas
quem não tem a sua. Semana em que não havia enterro, era semana
vazia desse homem que, se era doido, sabia muito bem o que queria.
De modo que não era doido coisa alguma. Macabéa, ao contrário de
Olímpico, era fruto do cruzamento de “o quê” com “o quê”. Na verdade
ela parecia ter nascido de uma idéia vaga qualquer dos pais famintos.
Olímpico pelo menos roubava sempre que podia e até do vigia de
obras onde era sua dormida. Ter matado e roubar faziam com que ele
não fosse um simples acontecido qualquer, davam-lhe uma categoria,
faziam dele um homem com honra até lavada. Ele também se salvava
mais do que Macabéa porque tinha grande talento para desenhar
rapidamente perfeitas caricaturas ridículas dos retratos de poderosos
nos jornais. Era a sua vingança. Sua única bondade com Macabéa foi
dizer-lhe que arranjaria para ela emprego na metalúrgica quando
fosse despedida. Para ela a promessa fora um escândalo de alegria
(explosão) porque na metalúrgica encontraria a sua única conexão
atual com o mundo: o próprio Olímpico. Mas Macabéa de um modo
geral não se preocupava com o próprio futuro: ter futuro era luxo. Ouvira na Rádio Relógio que havia sete bilhões de pessoas no mundo.
Ela se sentia perdida. Mas com a tendência que tinha para ser feliz
logo se consolou: havia sete bilhões de pessoas para ajudá-la.
Macabéa gostava de filme de terror ou de musicais, Tinha
predileção por mulher enforcada ou que levava um tiro no coração.
Não sabia que ela própria era uma suicida embora nunca lhe tivesse
ocorrido se matar. É que a vida lhe era tão insossa que nem pão
velho sem manteiga. Enquanto Olímpico era um diabo premiado e
vital e dele nasceriam filhos, ele tinha o precioso sêmen. E como já
foi dito ou não foi dito Macabéa tinha ovários murchos como um
cogumelo cozido. Ah pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom
banho, um prato de sopa um beijo na testa enquanto a cobria com
um cobertor. E fazer que quando ela acordasse encontrasse
simplesmente o grande luxo de viver.
Olímpico na verdade não mostrava satisfação nenhuma em
namorar Macabéa — é o que eu descubro agora. Olímpico talvez visse
que Macabéa não tinha força de raça, era subproduto. Mas quando
ele viu a colega da Macabéa, sentiu logo que ela tinha classe.
continua pág 63...
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"Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em leitores e críticos.
Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que era porque nenhuma “contava os fatos necessários a uma história”, nenhuma relatava um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais “atraente” o seu texto se usasse, “por exemplo, algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um personagem”.
Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil, mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de seu traçado: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro”. Ela se afastou dos “escritores que por opção e engajamento defendem valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos, religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor”, em nome de uma outra forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura."
Clarisse Fukelman, Professora de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
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Leia também:
A Hora da Estrela - Depois da chuva
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