quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Marcel Proust - A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - g)

em busca do tempo perdido

volume VI
A Fugitiva

Capítulo I
Mágoa e Esquecimento


continuando...

Parecendo-me seguro o resultado dessa carta, lamentei tê-la enviado, ao imaginar a volta de Albertine, em suma tão fácil, bruscamente as tornavam o nosso casamento uma coisa má para mim regressaram com todas as suas forças. Esperava que ela se recusasse a voltar. Estava me preocupando de que minha liberdade, todo o futuro da minha vida achavam-se na dependência de sua recusa; que fizera uma loucura ao escrever-lhe; que deveria ter pegado de volta a carta, infelizmente já enviada, quando Françoise, ao entregar-me o jornal que acabava de chegar, a trouxera de novo, pois não sabia quantos selos devia pôr no envelope. Porém logo mudei de opinião; desejava que Albertine regressasse, mas queria que essa decisão partisse dela para acabar com a ansiedade, e decidi restituir a carta à Françoise. Abri o jornal. Anunciava Berma. Então lembrei-me das duas maneiras diferentes como tinha ouvido-a e foi agora de uma terceira forma diversa que pensei na cena da declaração: tinha a impressão de que aquilo que recitara tantas vezes para mim mesmo, o que escutara no teatro, era o enunciado de leis que deveria experimentar na vida. Em nossa vida há coisas às quais não sabemos o quanto nos ligamos. Ou então, se não as vemos, é porque vivemos adiando, com medo de fracassar ou de sofrer, ou mesmo tomar posse delas. Foi o que me acontecera no caso de Gilberte, quando julgara renunciar a ela.
   Se, antes do momento em que estamos totalmente ligados nessas coisas, momento bem posterior àquele em que nos julgamos absolutamente desligados delas, a moça a quem amamos, por exemplo, fica noiva; enlouquecemos; não mais podemos suportar a vida que nos parecia tão momentaneamente sossegada. Ou então, se a coisa está em nossa posse, achamos o fardo, que de bom grado cederíamos; é o que me havia acontecido com Albertine. Mas, se uma viagem nos tira a criatura desprezada, já não podemos suportar. Pois bem, não é certo que o "argumento" da Fedra reunia os dois casos? Hipótese a partir de Fedra, que até então cuidara de oferecer-se à sua inimizade por escrever, diz ela, ou melhor, como a faz dizer o poeta; pois, não vê saída e porque não amada, Fedra não se contém. Vai confessar-lhe o seu amor, e ocorre então que eu tantas vezes recitara para mim mesmo: On dit qu'un prompt départ vous éloigne de nous. ["Dizem que breve ireis para longe de nós." (Racine, Phédre, ato II, cena V, verso 584). (N. do, T)]
   Claro que esse motivo da partida de Hipólito é acessório. Podemos pensar, junto do outro, a morte de Teseu. E da mesma forma, quando, alguns versos adiante, Fedra, por um momento, faz cara de que foi mal compreendida: “Aurais je perdu tout le soin de ma gloire?” ["Teria eu perdido todo o zelo pela minha honra?" (ibid. verso 666). (N. do T)]; pode-se pensar que é porque Hipólito repeliu sua declaração: Madame, oubliez-vous/ Que Thésée est mon pere, et qu'il est votre époux? ["Senhora, acaso esqueceis / Que Teseu é meu pai e que é vosso marido?" ibid, versos 663-664) (N. do T)].  
   Todavia, mesmo que ele não manifestasse tal indignação, Fedra poderia sentir do mesmo modo, diante da felicidade, que esta valia muito pouco. Vendo, porém, que não alcançava a felicidade, e que Hipólito julga ter entendido mal e se desculpa, então - assim como eu, querendo devolver a minha carta à Françoise - ela deseja que a recusa venha dele, deseja arriscar a sorte até o fim: “Ah! cruel, tu mas troe entendue." ["Ah, cruel, entendeste-me até demais." (ibid., verso 670) (N. do T)] 
   E até mesmo as grosserias, segundo me contaram de Swann para com Odette, ou as minhas para com Albertine, grosserias que substituem o amor anterior por um novo, feito de piedade, de enternecimento e de necessidade de efusão, e que apenas representam uma variante do antigo, também se encontram nesta cena: 

Tu me hai'ssais plus, je ne t'aima!s pas moins. 
Tes malheurs te prêtaient encor de nouveaux charmes

[“Pois que mais me odiavas, eu não te amava menos./ Tuas desgraças ainda te davam novos encantos." (Id., ibid., 688-689). (N. do T)]

   A prova que o zelo pela sua honra não é o que mais importa para Fedra, está em que ela perdoaria Hipólito e recusaria os conselhos de Oenone, caso não soubesse, naquele instante, que Hipólito gostava de Arícia. De tal forma o ciúme, que em amor equivale à perda completa da felicidade, é mais sensível que a perda da reputação. 
   É então que ela deixa Oenone (que é somente o nome da pior parte dela mesma) caluniar Hipólito sem se encarregar do cuidado de defendê-lo e, assim, envia este que não quer saber dela a um destino cujas calamidades, aliás, não a consolam de maneira alguma, já que sua morte voluntária segue-se logo à morte de Hipólito. Pelo menos, foi assim, reduzindo a parte de todos os escrúpulos "jansenistas", como teria dito Bergotte, que Racine atribuiu à Fedra para fazê-la parecer menos culpada, que me surgia aquela cena, espécie de profecia dos episódios amorosos da minha própria existência. Essas reflexões, aliás, nada mudado em minha determinação, e estendi a carta para Françoise para que enfim a pusesse no correio, tencionando realizar junto à Albertine aquela que me parecia indispensável desde que soubera não ter sido feita. Se erramos ao pensarmos que a satisfação do nosso desejo tenha pouca importância, pois, desde que supomos que ele não pode se realizar; novamente nos aferramos nele, e só admitimos que não valia a pena persegui-lo quando estamos seguros de alcançá-lo. E, no entanto, temos razão. Pois, se tal satisfação e tal felicidade só parecem mesquinhas devido à certeza, são, todavia, algo de instável de onde podem sair desgostos. E estes serão tanto mais intensos quanto mais completa a realização do desejo, e mais impossíveis de suportar se, contra a lei da natureza a felicidade tiver sido prolongada por algum tempo, recebendo a consagração do hábito. 
   Também num outro sentido, as duas tendências - na espécie, a que meu empenho em que a carta seguisse; e aquela de, ao julgá-la remetida, arrependo-me - contém ambas a sua verdade. Quanto à primeira, é perfeitamente compreensível que corramos atrás da nossa felicidade ou da nossa desgraça - e que ao mesmo tempo, aspiremos a pôr diante de nós, através desse ato novo que começara a desenvolver suas consequências, uma espera que não nos deixa em desespero absoluto numa palavra: que procuremos fazer passar por outras mas, que imaginamos nos devem ser talvez menos cruéis, o mal de que sofremos. Mas a outra tendência não é menos importante, pois, nascida da crença no êxito nossa tentativa, é pura e simplesmente o começo; o começo antecipado da decisão que em breve sentiríamos em presença da satisfação do desejo; ou a pena de termos fixado para nós, em detrimento das outras que se acham excluídas, em forma de felicidade. 
   Eu dera a carta a Françoise dizendo-lhe que fosse pôr no correio. Logo que a carta partiu, concebi de novo o regresso de Albertine como coisa iminente. Tal regresso não deixava de pôr em meu pensamento graciosas imagens que neutralizavam bastante, um pouco por sua doçura, os perigos que eu via nesse retorno. A doçura, perdida há tanto tempo, de tê-la junto a mim abrigava-me.

continua na página 23...
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Leia também:

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Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
A Prisioneira (Prefácio)
Volume 6
A Fugitiva (Mágoa e Esquecimento - g)

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