sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Memórias do Cárcere - Viagens 14

Memórias do Cárcere

Graciliano Ramos


Volume I 
 Editora Record 
PRIMEIRA PARTE 

VIAGENS 

14


     MANDARAM-ME comparecer na sala à esquerda, situada em frente ao cárcere de Sebastião Hora e Nunes Leite. Vesti-me à pressa, num minuto me achei no pátio, amarrando a gravata, dirigi-me ao lugar que, por falta de termo próprio, batizei como uma espécie de secretaria. Entrei atarantadamente e divisei, no topo de uma mesa coberta de papéis, um moço de farda. Já me ia habituando aos distintivos: apesar de confuso, examinei as estrelas e percebi um capitão. Ofereceu-me uma cadeira, estendeu-me um envelope. Para que sentar-me, se apenas viera ali receber a correspondência? Desejei agradecer e conservar-me de pé, mas a semana de permanência naquele meio já me havia feito compreender que tais recusas significavam indisciplina. Executei o movimento exigido, recebi a carta, ia metê-la no bolso e levantar-me quando o rapaz me deteve com um gesto:

– Sou forçado a pedir-lhe que abra o envelope na minha presença.

– Perdão, perdão, murmurei atrapalhado, recebendo a espátula que ele me entregou. Sem dúvida. 

   Obedeci, apresentei-lhe a folha de papel. Tomou-a, virou rapidamente para cima o lado branco, escondendo as letras. Volveu igualmente para o dorso algumas fotografias que se espalharam na mesa e desviou discretamente os olhos: 

.– Estou satisfeito. Desculpe. É uma formalidade.

   Ergui-me, retirei-me com agradecido espanto, a duvidar um pouco dos olhos e dos ouvidos. Esquisito. Era realmente levar muito longe o ramerrão obrigar um sujeito a fazer qualquer coisa e logo afirmar que aquilo não tinha valor, era uma exigência à-toa. Desperdício de tempo. Com semelhante proceder, chegaríamos a supor que ali não havia ocupação e se desmandavam inutilmente. Quereriam apenas dar-me a entender que me poderiam obrigar a comportar-me desta ou daquela maneira, sentar-me ou levantar-me. romper ou deixar intacto um sobrescrito? Não, seria um jogo tolo de gato com rato. Um gesto blandicioso de pata macia me indicava uma cadeira; de repente uma garra cor-de-rosa surgia na flacidez amável: 

– “Sou forçado a pedir-lhe .. Desculpe É uma formalidade.”

   Aquilo não me entrava no entendimento. Poderiam julgar que no quadrilátero de vinte centímetros, de espessura insignificante, houvesse armas, dinamite ou veneno, disfarçados numa escrita e em pedaços de cartão? Se o bilhete e os retratos não despertavam curiosidade, parecia-me desnecessário exibi-los. Com tais exigências burocráticas desarrazoadas, a censura degenerava. Depois de tudo, ficava-me a certeza de que o funcionário dela incumbido era pessoa muito amável. Isto e nada mais. 

– Faça o favor de sentar-se. Bem. Estou satisfeito. Desculpe. Formalidade.

   Boa educação, perfeitamente, mas seria mais compreensível que ela se aplicasse em cargo produtivo. Daquele jeito, podiam fazer-me supor que lhe davam função parasitária. Embora o meu juízo não tivesse ali nenhum valor, o fato permanecia, e quem o observasse concordaria comigo. Quase me agastava por não ter o homem visto o recado de minha mulher, olhado as caras distantes que ela me enviava pelo correio. Nenhum dano me causaria tomarem conhecimento de algumas páginas destinadas a jornal ou revista de Buenos Aires. Talvez houvesse uma inconfessável e besta vaidade nisso, talvez o desejo pusilânime de mostrar que ali nada havia de comprometedor. Não tive, porém, consciência de semelhantes baixezas e menciono-as como possibilidades. Sei lá o que se passava no meu interior? Difícil sermos imparciais em casos desse gênero; naturalmente propendemos a justificar-nos, e é o exame do procedimento alheio que às vezes revela as nossas misérias íntimas, nos faz querer afastar-nos de nós mesmos, desgostosos, nos incita à correção aparente. Na verdade, vigiando-me sem cessar, livrava-me de exibir sentimentos indignos. Afirmaria, porém, que eles não existiam? Tudo lá dentro é confuso, ambíguo, contraditório, só os atos nos evidenciam, e surpreendemo-nos, quando menos esperamos, fazendo coisas e dizendo palavras que nos horrorizam. De fato ainda não me assaltara o medo, faltava razão para isto; vinha-me, porém, às vezes o receio de experimentá-lo. Sensação angustiosa e absurda: medo de sentir medo. 
   Aparentemente nada nos ameaça, estamos calmos; súbito nos chega uma inquietação que nos domina, cresce e nos dá suores frios:

–“Se um perigo surgir, de que modo me comportarei? Reagirei como um sujeito decente ou sucumbirei, trêmulo e acanalhado?”

   Resistimos a essa dolorosa incerteza fingindo segurança, que realmente conseguimos obter, falamos à toa, largamos opiniões temerárias. Bazófias. Pouco importa que nos julguem nocivos e nos conservem no isolamento. As nossas cogitações afastam-se daí, têm sentido muito diverso:

– “Revelei acaso fraqueza, conformismo? Pensarão que me quero vender?”

   Essa prostituição nos aterroriza – e o terror nos força a proceder de maneira razoável. Capitão Lobo é homem direito. Bem. Ficaríamos com ele se as nossas ideias não brigassem com as dele. Mas quais são as ideias de capitão Lobo? Temos certo número de ideias, firmes, e recusamos fórmulas desacreditadas. Boas há um século, hoje nada valem. Vendo-o, escutando-o, precisamos saber que ele está do outro lado e é consequentemente um inimigo. Percebendo-lhe a retidão, ficamos em guarda. 

  Certo não refleti nisso ao voltar da secretaria, vendo nos cartões as figuras de pessoas de minha família e inteirando-me de notícias rápidas. O conto, vagabundo e mal escrito, havia sido enviado a Benjamin Garay, que, francamente, eu nem sabia quem era. Um indivíduo que se oferecera para lançar na Argentina negócios do Brasil. Quem diabo seria Benjamin Garay? Amolava-me em cartas amáveis, mas agora, se me visse a olhar a sentinela, as duas peças de artilharia que adornavam o portão, deixaria de escrever-me. prudente e encolhido. Referia-se a tradutores qualificados, supondo-me talvez bicho razoável, propenso à glória, à Academia. Certamente a prisão suprimiria Garay, os tipos qualificados, etc. Isso passara despercebido ao capitão que me afastara minutos antes com um gesto amável: 

–“Formalidade”.

   Porque era que ele havia procedido assim? Julgar-me-ia uma natureza plástica, moldável por qualquer político, qualquer general? Devia ser isso. Provavelmente não houvera ali somente a repetição enfadonha de gestos convencionais e palavras burocráticas. Percebera em mim um sujeito da sua classe, desviado, facilmente conversível, e resolvera ser cortês. A promessa de fuzilamento não era aplicável à situação: nem podia simular autoridade para semelhante exagero. Assim, enquanto eu me confundia, manejando a espátula, ele me observava, considerava-me inofensivo, provavelmente complicado por engano, indigno de fiscalização. Se houvesse notado um gesto suspeito, não afetaria condescendência: leria o papel, atento, rigoroso, buscando propósitos reservados nas mais simples notícias. Nada. Afastara os olhos, num desinteresse quase humilhante. Eu não era capaz de jogar bombas, sublevar quartéis. Estava ali apenas para dar ao burguês a impressão de que havia muitos elementos perniciosos e o capital corria perigo.

continua página 61....
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Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 – Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por sua obra Vidas Secas (1938).
Em setembro de 1915, motivado pela morte dos irmãos Otacília, Leonor e Clodoaldo e do sobrinho Heleno, vitimados pela epidemia de peste bubônica, volta para o Nordeste, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Apoiado pelo governador do estado e impulsionado por ser um nome de fora da política, foi eleito em um pleito de uma candidatura só. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das autodescrições, "Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936. viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934, havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso após a Intentona Comunista de 1935. Foi levado para o Rio de Janeiro e ficou preso por onze meses, sendo liberado sem ter sido acusado de nada ou julgado. Em Memórias do Cárcere recorda a prisão que sofrera seis anos antes.

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