O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
1.
Dois dias depois do estranho incidente na recepção em casa de Nastássia
Filíppovna, com o qual finalizamos a primeira parte da nossa história, o Príncipe
Míchkin seguiu inesperadamente para Moscou a fim de receber a sua inesperada
fortuna. Foi dito que devia ter havido outros motivos para tão apressada partida;
mas quanto a isso e quanto às aventuras do príncipe durante a sua ausência de
Petersburgo pouca informação podemos dar. Esteve ausente seis meses; e
mesmo aqueles que tinham razões para se interessarem por seu destino durante
todo esse tempo, pouco vieram a saber. Mesmo os boatos que até eles chegaram
espaçadamente foram, em sua maioria, estranhos e quase sempre contraditórios.
A família Epantchín, naturalmente, tomou mais interesse do que quaisquer outras
pessoas, apesar dele se ter ido embora sem mesmo se despedir. O General
Epantchín viu-o duas ou três vezes; tiveram certa conversação séria. Mas,
embora o tendo visto, não fez menção à família. E no começo, com efeito, no
mínimo por um mês depois da partida do príncipe, o seu nome foi evitado pelos
Epantchín.
Só a generala, logo no começo, dissera “que se havia enganado cruelmente com
o príncipe”. Dois ou três dias depois acrescentara, vagamente, sem mencionar o
nome de Míchkin, “que a coisa mais chocante da sua vida era o modo por que
continuamente se enganava a respeito de pessoas”. E, finalmente, uns dez dias
depois, ao se zangar com as filhas, explodiu, acrescentando judiciosamente:
“Basta de tantos erros. Basta, daqui por diante.”
Devemos esclarecer que durante
certo tempo a atmosfera sentimental da casa foi insuportável. Havia uma
sensação de mal-estar como que de indizível discórdia. A atmosfera era tensa,
pesada. Todo o mundo andava amuado. O general vivia atarefadíssimo, dia e
noite, absorvido em seu trabalho. A família quase não o via mais. Raramente
fora visto, antes, tão ocupado e ativo, especialmente no que concernia ao seu
trabalho oficial. Quanto às meninas, nunca falavam abertamente uma palavra
que fosse. Mesmo quando juntas sozinhas, muito pouco diziam. Eram moças
orgulhosas, de brio, fechadas mesmo umas com as outras, embora se
compreendessem entre si, não só com a palavra como com o olhar, nem
sempre pois lhes sendo preciso falar muito.
Havia apenas uma conclusão a ser tirada por um observador neutro, caso
houvesse algum: isto é, que a julgar pelos fatos acima mencionados, aliás bem
poucos, o príncipe conseguira deixar forte impressão na família Epantchín, apesar
de só ter estado com eles uma única vez e isso mesmo por tempo bem curto.
Talvez o sentimento que ele inspirou não passasse de mera curiosidade
despertada por suas aventuras excêntricas. Pouco a pouco os boatos que tinham
circulado através da cidade se foram perdendo nas trevas da incerteza.
Contava-se, com efeito, a história de certo principezinho muito ingênuo (ninguém
lhe sabia o nome), que entrara inesperadamente na posse de vasta fortuna, e que
se casara com uma mulher francesa, uma notória dançarina de cancã do
Château des Fleurs de Paris. Diziam outros, porém, que fora um general que se
metera nos dinheiros e que o homem que se casara com a conhecida francesa
dançarina de cancã era um jovem russo comerciante, de incrível fortuna, o qual,
na cerimônia do casamento, por simples e pura arrogância, queimara, estando
bêbado, em uma vela, talões de apólices no valor de setecentos mil rublos. Tais
boatos, porém, acabaram se extinguindo, para isso tendo contribuído muito certas
circunstâncias. Todos os do séquito de Rogójin, por exemplo, muitos dos quais
poderiam ter esclarecido muita coisa, haviam partido, nas suas pegadas, para
Moscou, uma semana depois de uma tremenda orgia no Vauxhall de Ekaterinhóf
e na qual tomara parte Nastássía Filíppovna. As poucas pessoas interessadas no
caso ficaram cientes, através de certas informações, de que Nastássia Filíppovna,
logo depois da orgia, fugira sem deixar vestígios, tendo constado traços de sua
passagem por Moscou; e tanto que a partida de Rogójin para Moscou coincidia
com tal boato. Da mesma forma correram rumores a respeito de Gavríl
Ardaliónovitch Ívolguin, também muito conhecido em determinadas rodas. Mas
certa coisa lhe aconteceu que abrandou e fez parar completamente, todas as
histórias a seu respeito: caiu seriamente doente, não podendo voltar ao escritório
e menos ainda à sociedade.
Restabeleceu-se após um mês de enfermidade, mas, por motivos que ele lá
sabia, resignou ao cargo que desempenhava no escritório, como guarda-livros da
Companhia, tendo sido substituído por outra pessoa. Nem uma vez, sequer, voltou
à casa dos Epantchín. de maneira que um novo escriturário tomou os encargos de
secretário do general.
Os inimigos de Gavríl Ardaliónovitch poderiam insinuar
que ele ficara tão humilhado com o que lhe acontecera que se envergonhava até
de sair à rua; mas, na verdade, estava doente, tendo até
sofrido um ataque de hipocondria; deu em ficar taciturno e irritável. Naquele
mesmo inverno, Varvára Ardaliónovna se casou com Ptítsin. Quantos os
conheciam deduziram que o casamento foi consequência do fato de Gánia não
querer retomar as suas obrigações e não estar capacitado para tomar conta da
família, chegando a necessitar de assistência e mesmo de cuidados dos seus.
Notemos, de passagem, que na família Epantchín não se faziam sequer
referências a Gavríl Ardaliónovitch, como se este nunca tivesse sido visto e com
efeito nem existisse no mundo, absolutamente. Ainda por cúmulo, a família
inteira veio a saber, logo depois, um fato notável a respeito dele.
Na noite fatal,
depois da sua desagradável experiência com Nastássia Filíppovna, Gánia não se
deitara, depois de chegar a casa, tendo ficado à espera do príncipe, com uma
impaciência febril. O príncipe, por sua vez, tendo ido a Ekaterinhóf, só voltara a
casa às seis horas da manhã seguinte. Então Gánia entrara nos cômodos dele e
depusera sobre a mesa, à sua frente, o pacote de notas entreaberto com que
Nastássia o presenteara enquanto jazia desacordado no chão. E solicitara ao
príncipe devolver na primeira oportunidade o presente. Que, ao entrar nos
cômodos de Míchkin, o fizera de maneira desesperada e quase hostil; mas que,
depois da troca de algumas palavras entre os dois, Gánia permanecera lá mais de
duas horas, chorando amargamente todo o tempo, tendo os dois se separado em
termos amistosos.
Tal história, que chegou ao conhecimento dos Epantchín, aconteceu ser
perfeitamente exata. Estranho foi, naturalmente, que tais fatos pudessem logo
transparecer e cair no conhecimento geral. Tudo quanto tinha acontecido, por
exemplo, em casa de Nastássia Filíppovna, se tornou conhecido dos Epantchín
quase que no dia imediato e de maneira minuciosa. Quanto aos fatos relativos a
Gavríl Ardaliónovitch, poder-se-ia supor que tivessem sido levados até à casa dos
Epantchín por Varvára Ardaliónovna, que se tornara muito amiga das moças,
embora talvez não falasse nada do irmão. Pelo menos não devia. Ela também
era uma mulher altiva, à sua maneira, e era esquisito que buscasse intimidade
com quem tinha despedido seu irmão. Já era conhecida, desde muito antes, das
meninas Epantchín. mas as vinha ver raramente. Mesmo agora mal se mostrava
na sala de visitas e entrava, ou melhor, deslizava pela escada dos fundos.
Lizavéta
Prokófievna nunca se incomodara com ela outrora e muito menos agora. o que
não a impedia de demonstrar grande respeito pela mãe, Nina Aleksándrovna.
Ficara espantada, amuara e considerava a intimidade das filhas com Vária como
uma veneta qualquer e caprichos de quem “não sabia de que maneira contrariar
a própria mãe”. Mas Vária continuara a visitá-las, tanto
antes como depois de casada, No entanto, um mês depois da partida do
príncipe, a Sra, Epantchiná recebeu uma carta da velha Princesa Bielokónskaia.
que tinha ido passar quinze dias com a filha mais velha casada; e essa carta lhe
produziu um efeito marcante, nada, porém, tendo referido às filhas e nem a Iván
Fiódorovitch, ficando por vários indícios provado que a sua extrema excitação
provinha disso.
Deu em falar de modo algo estranho às filhas e sempre a respeito
de assuntos extraordinários; evidentemente estava ansiosa por abrir seu coração,
a custo se contendo.
No dia em que recebera a carta se mostrara de uma
bondade incomum para com todos; chegara mesmo a beijar Adelaída e Agláia;
confessara até que estava em falta com elas; escusado dizer que as moças
ficaram sem entender. Mostrou-se mesmo indulgente com Iván Fiódorovitch,
com o qual durante um longo mês estivera “atravessada”.
Claro que já no dia
seguinte se arrependeu da própria sentimentalidade, arranjando motivos para se
indispor com todos, antes do jantar, só clareando o horizonte lá pela noitinha.
Durou toda uma semana esse esplêndido bom humor, caso que não se dava havia
muito tempo.
Uma semana mais tarde chegou outra carta da Princesa
Bielokónskaia; e então a Sra. Epantchiná resolveu falar. Anunciou. com toda a
solenidade, que a “velha Bielokónskaia (nunca chamava de outro modo a
princesa na ausência da mesma, quando a ela se referia) lhe mandara
reconfortantes novas a propósito daquele... “extravagante indivíduo, aquele
príncipe, sabem qual, pois não?”
A velha dama lhe descobrira as pegadas em
Moscou, informara-se a respeito e descobrira coisas bem boas. O príncipe fora
afinal ter com ela, causara-lhe excelente impressão, conforme ficara evidente só
com o fato de ela o ter convidado a ir vê-la todos os dias, entre uma e duas horas.
Ele não lhe deu trégua desde esse dia; e ela ainda não se aborreceu dele”,
concluiu a Sra. Epantchiná acrescentando mais que, por interferência da “velha”,
o príncipe fora recebido em casa de duas ou três boas famílias. “Ainda bem que
ele não se plantou em casa e não se manteve tão arisco como um palerma.”
As
moças a quem tudo isso foi comunicado perceberam logo que sua mãe estava
escondendo muita coisa da tal carta. Muita coisa que, decerto vieram a saber
através de Varvára Ardaliónovna, provavelmente a par de tudo por Ptítsin, que
sabia quanto se passava com o Príncipe nessa sua estada em Moscou. E Ptítsin
estava em condições de saber muito mais do que qualquer outra pessoa,
malgrado o seu impenetrável silêncio costumeiro a propósito de negócios, apenas
Vária lhe conseguindo arrancar as palavras.
A Sra. Epantchiná ficou
antipatizando ainda mais com ela, por causa disso.
Mas, fosse o que fosse, o gelo se rompera sendo já possível falar alto
naquela casa sobre o príncipe.
Desta forma o grande interesse por ele despertado e a extraordinária impressão
deixada na família, mais uma vez se evidenciaram. A mãe ficou perplexa com o
efeito que as notícias de Moscou causaram sobre as filhas. E as filhas, por sua
vez, perplexas ficaram com a mãe que, depois de declarar que “a coisa mais
chocante da sua vida era a facilidade com que se enganava com certas pessoas”,
procurava sem embargo para o príncipe, a proteção da “onipotente” e velha
Princesa Bielokónskaia, o que decerto custara muita insistência e súplica, pois se sabia quão difícil era à “velhota” deixar que outros se prevalecessem dela em
tais casos.
Logo que o gelo se rompeu e o vento mudou, também o general se apressou em
explicar-se.
Ficou evidente que também ele tomara o Príncipe sob especial
interesse. Mas só discutiu o aspecto comercial da questão, Veio a saber-se que,
no interesse mesmo do Príncipe, solicitara a certas pessoas influentes de Moscou
- umas duas em quem podia confiar - para o vigiarem, como lhes fosse possível;
e vigiarem principalmente o tal Salázkin a quem o príncipe confiara o seu caso.
Tudo quanto sobre a fortuna fora dito - ou melhor, quanto à exatidão dessa
fortuna” - era realidade; mas o espólio propriamente dito era menos considerável
do que se tinha murmurado no começo.
A propriedade estava em parte
sobrecarregada com dívidas, outros pretendentes tinham surgido também, e
apesar dos conselhos dados ao príncipe, ele se vinha comportando de modo a
prejudicar-se. “Que Deus o proteja!”
Agora que o gelo do silêncio se rompera, o
general estava contente em poder exprimir o seu modo de sentir “com toda a
sinceridade do seu coração”, muito embora “esse indivíduo fosse um pouco
destituído”, acrescentou. como bom observador.
E a prova é que fizera uma série
de coisas estúpidas.
Credores do falecido comerciante tinham feito suas
reclamações, por exemplo, baseando-se em documentos sem valor ou a estudar.
Muitos mesmo, enfunando-se com o temperamento do príncipe, chegaram a
apresentar-se sem documentos de qualquer ordem, e - parece incrível! - o
príncipe satisfizera a maioria deles malgrado as asseverações dos amigos de que
toda essa corja de credores não tinha absolutamente direito a coisa alguma; e que
o único motivo pelo qual os satisfizera fora o estarem eles atualmente em más
condições.
A Sra. Epantchiná observou que a velha Bielokónskaia lhe mandara dizer, em
carta, algo a respeito e que isso “era estúpido. muito estúpido. Mas os malucos
não têm cura”, acrescentara ela taxativamente; mas aditara de modo a
evidenciar quanto lhe agradava a conduta desse “maluco”.
Notou afinal o
general quanto a mulher se interessava por Míchkin, como se fosse seu filho,
dando logo em se mostrar afetuosa com Agláia, o que dantes não acontecia.
Vendo isso, Iván Fiódorovitch adotou a política de tomar, por certo tempo, o ar
próprio de quem anda ocupadíssimo em negócios. Mas esse agradável estado de
coisas não perdurou muito. Quinze dias depois, houve, outra vez, uma inesperada
mudança. A generala amuou; e então, encolhendo os ombros, o General
Epantchín se resignou outra vez ao “gelo do silêncio”.
O fato foi que, duas semanas antes, ele recebera uma carta confidencial, não
muito clara, mas autêntica, informando-o de que Nastássia Filíppovna, que no
começo tinha desaparecido em Moscou, depois de lá mesmo ter sido encontrada
por Rogójin, sumira outra vez e de novo fora reencontrada, tendo- lhe prometido
casar-se com ele. E o incrível é que, depois desses quinze dias, Sua Excelência
tinha, de repente, vindo a saber que ela escapulira pela terceira vez, quase na
véspera do casamento, ocultando-se em uma província qualquer, coincidindo que
na mesma ocasião o Príncipe Míchkin também sumira, deixando os seus
negócios nas mãos de Salázkin. “Se com ela, ou em perseguição dela, não ficou
esclarecido. mas que há coisa nisso, há”. concluíra o general.
Lizavéta Prokófievna também recebeu notícias desagradáveis. O remate de tudo
isso foi que, dois meses depois da partida do príncipe, quase todos os boatos a seu
respeito se extinguiram em Petersburgo e o “gelo do silêncio” não foi mais
rompido pela família Epantchín.
Mas Vária continuava a visitar as moças.
continua página 164..
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Primeira Parte
O Idiota: Primeira Parte (1a.) Em dada manhã...
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