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quinta-feira, 23 de novembro de 2023
Chico Buarque - Ópera do Malandro / Segundo Ato - Cena 5
Ópera do malandro
Chico Buarque
Ópera do malandro
americanismo: da pirataria à modernização autoritária (e o que se pode seguir)
"A multidão vai estar é seduzida" — Teresinha Fernandes de Duran
SEGUNDO ATO
CENA 5
Cadeia; Max dentro da cela e Barrabás do lado de fora
BARRABÁS
Desta tu não escapa, hein?
MAX
Escapo sim.
BARRABÁS
Ah, é? E quem te safa?
MAX
Você, Barrabás. Você vai tomar a arma do inspetor, vai trancar todo mundo
no banheiro e vai embora comigo.
BARRABÁS
Ah sim, meu amor? Depois promete que casa comigo? Hein, coraçãozinho?
Também vai me levar pra Hollywood?
MAX
Não, muito melhor. Vou te levar pra Cuba. Já ouviu falar de Cuba? É o
paraíso, Barrabás. Muita praia, muito coqueiro, muito cassino, muita rumba, muita
mulher e ninguém precisa trabalhar. Eu tenho um camaradinha lá chamado
Fulgêncio. Imagina que o Fulgêncio me mandou um cartão postal contando que
agora ele é o mandachuva de lá. Quer dizer, Barrabás, que lá em Havana você é
amigo do amigo do rei.
BARRABÁS
Conta mais, conta mais que eu tô quase abrindo as pernas!
MAX
Para com isso, Barrabás! Eu sei que você não é mulher nem criança pra
cair em conversa fiada. Você é malandro, que eu sei! Muito mais malandro do que
eu! Basta dizer que arranjou emprego na polícia, logo você que tem uma folha
corrida mais suja que colchão de puta. Não precisa dizer mais nada, é só ver
quem tá de que lado da grade pra saber quem é mais malandro.
BARRABÁS
Obrigado.
MAX
Então, isso que eu falo do meu amigo Fulgêncio, isso não é nada, é só uma
sugestão dum belo lugar pra você passar o resto dos seus dias, fazendo pesca
submarina no Caribe. É só isso, e você não vai me soltar por causa disso. Você
vai me soltar porque eu te dou condições de ser feliz em Cuba, em Honolulu ou
em qualquer outro lugar do mundo. Em outras palavras, vou te dar todo o dinheiro
que tenho no cofre.
BARRABÁS
Cala a boca, Max. Assim você me ofende. Agora eu sou um homem de
bem. . . Quanto é que você tem no cofre?
MAX
Pra lá de cinco mil dólares. . . Escuta! É a voz da Teresinha. Vamos fazer
melhor, Barrabás. Eu digo à Teresinha pra te abrir o cofre. Você me solta e fica
garantido. Eu não vou te dar um golpe se a Teresinha ta contigo de refém. . .
Teresinha, meu amor!
TERESINHA (Entra)
Max, que bom te ver! Eu tava com tanto medo de chegar atrasada!
MAX
Você chegou na hora exata. Conhece o Barrabás, não é mesmo?
TERESINHA
Prazer. Sabe o que é, Max? A gente tá com o tempo apertado e eu trouxe
uns papéis pra você assinar.
MAX
Isso a gente vê amanhã, baby. Agora o Barrabás vai me soltar e você vai
dar a ele todo o dinheiro do cofre.
TERESINHA
Dinheiro do cofre?
MAX
Todinho. Vamos, Barrabás! Dá uma gravata no inspetor.
TERESINHA
Mas, querido, não tem dinheiro nenhum no cofre.
MAX
Não tem? Cê tá louca? Tinha mais de cinco mil dólares!
TERESINHA
Cinco mil cento e sete dólares e vinte e cinco cents. Mas agora a gente tá
devendo dezessete mil.
BARRABÁS
Adeus, Max.
MAX
Tá brincando. Devendo a quem?
TERESINHA
Aos bancos, é claro. Uma firma tem que estar sempre devendo a todos os
bancos. Tá tudo aqui no livro-caixa, meu amor, mas é meio complicado de explicar
e não vai dar tempo de você conferir. Mas pra ter uma ideia, só de advogados,
contabilidade e documentação, foram uns seis mil. E dez mil dólares eu dei de
entrada num conjunto de salas na Avenida Central. Uma beleza, Max. No oitavo
andar, com porteiro, elevador e ar refrigerado para os dias de calor. Você tem que
assinar aqui, aqui e aqui. Foi mais por isso que eu vim assim correndo, porque é
da maior urgência e mal deu pra eu me pintar. (Max vai assinando tudo sem
esboçar a menor reação) A firma precisava dum endereço comercial porque não
tinha graça timbrar no papel: MAXTERTEX Limitada, endereço cabana na praia.
Ah, as promissórias, que eu prometi levar a tua assinatura aos bancos amanhã
bem cedo. Os gerentes têm sido muito camaradas comigo, sabe, Max? Imagina
que eles me atenderam em dia de sábado! Agora só falta assinar
essa folha em branco que é pra me prevenir em caso de acidente grave ou
doença que te deixe impedido e que é prós nossos negócios não sofrerem solução
de continuidade e o dr. Sobral já me disse que espólio é um processo muito
demorado. . . Ah, que bom que deu tempo pra tudo! Fala de você agora, querido.
Max, eu nunca te vi calado assim! Diz o que é que você ta sentindo, por favor!
MAX
Eu estou sentindo medo, muito medo. (Cresce o barulho da passeata, como
uma canção selvagem)
TERESINHA
Bom, não é pra te consolar, mas quem hoje te condena à morte tá
condenado pra depois de amanhã. Papai, inspetor Chaves, a Lapa, as falcatruas,
todo esse mundo já tá morto e caindo aos pedaços.
MAX_
É, isso não me consola muito não. Tô com medo.
TERESINHA
Eles também tão com medo, Max. Precisava ver a cara da mamãe. Tá
ouvindo a multidão aí embaixo? Coitada da mãe, mas essa gente tá certa, tem
mesmo que desabafar. Ninguém aguenta mais esse clima, esse sufoco! Tá todo
mundo precisando duma coisa nova, mais aberta, mais limpa e arejada. Tá na
cara que tem que mudar tudo e já! Tem que abrir avenidas largas, tem que
levantar muitos arranha-céus, tem que inventar anúncios luminosos, e a
MAXTERTEX faz parte do grande projeto. Você devia se orgulhar, Max, porque
nisso tudo tem um pedaço do teu nome e um pouquinho do teu
espírito. . .
MAX
Que se foda o meu espírito. Quem tá com medo é o meu corpo. É deste
corpo aqui que eu gosto, gosto muito, adoro. Tô acostumado dentro dele e não
quero sair.
TERESINHA
Sangue novo! A nova civilização! É claro que os malandrinhos, os
bandidinhos e os que acham que sempre dá-se um jeitinho, esses vão apodrecer
debaixo da ponte. Mas nesse povo aí fora não dá só vagabundo e marginal, não.
E vai ter um lugar ao sol pra quem quiser lutar e souber vencer na vida. É daí que
vem o progresso, Max, do trabalho dessa gente e da nossa imaginação. Daqui a
uns anos, você vai ver só. Em cada sinal de trânsito, em cada farol de carro, em
cada nova sirene de fábrica vai ter um dedo da nossa firma. Você devia se
orgulhar, Max.
MAX
Este meu corpo tá inteirinho, tá cheiroso, tá com toda a vida, tá jogando
saúde pelo ladrão. A boca quer chupar mais manga, a garganta quer tomar mais
cerveja, o pau tá querendo foder e a cabeça quer pensar besteira. Depois ia
chegar um dia que o corpo ia parando de querer. Ia minguando a fome, a sede, o
tesão, ia dando preguiça de pensar, e as carnes se decompondo naturalmente,
devagar, na cama. Assim é que tinha que ser.
TERESINHA
E vai demorar meio século pra essa gente se juntar de novo e levantar a
voz. Porque a multidão não vai estar abafada, nem encurralada, nem tiranizada,
nem nada. Sabe o quê? A multidão vai estar é seduzida. Você devia se orgulhar.
MAX
Então, não é justo esmagar um corpo assim no meio do caminho.
Interromper um gesto, a digestão, interromper uma idéia, um programa, uma
música, o sangue correndo nas veias, e o corpo parar de chofre, ainda produzindo
saliva e esperma, e cheio de merda por dentro.
Orquestra ataca a introdução, abafando o barulho da passeata
TERESINHA
Acho que tá na hora, Max.
MAX
Acho que tá na hora.
Max e Teresinha cantam "Pedaço de Mim"
TERESINHA
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
MAX
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
TERESINHA
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que jâ morreu
MAX
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que jâ perdi
OS DOIS
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus
A orquestra segue tocando, mas é abafada aos poucos pelo canto
barulhento da passeata.
continua pág 132 ...
_____________________
NOTA
O texto da "Ópera do Malandro" ê baseado na "Ópera dos Mendigos" (1728), de John Gay, e na "Ópera dos Três Vinténs" (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. O trabalho partiu de uma análise dessas duas peças conduzida por Luís Antônio Martinez Corrêa e que contou com a colaboração de Maurício Sette, Marieta Severo, Rita Murtinho, Carlos Gregório e, posteriormente, Maurício Arraes. A equipe também cooperou na realização do texto final através de leituras, críticas e sugestões. Nessa etapa do trabalho, muito nos valeram os filmes "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, e "Getúlio Vargas", de Ana Carolina, os estudos de Bernard Dort ("O Teatro e Sua Realidade"), as memórias de Madame Satã, bem como a amizade e o testemunho de Grande Otelo. Contamos ainda com a orientação do prof. Manoel Maurício de Albuquerque para uma melhor percepção dos diferentes momentos históricos em que se passam as três "óperas". E o prof. Luiz Werneck Vianna contribuiu com observações muito esclarecedoras. Esta peça é dedicada à lembrança de Paulo Pontes.
Chico Buarque - foi musicando o poema "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Mello Neto, encenado pelo grupo universitário TUCA, que Chico Buarque se revelou como compositor, dois anos antes do sucesso de "A Banda", "Roda Viva", sua primeira peça, teve uma carreira tumultuada: estreou no Rio, em 1967, com um sucesso que desgostou a muita gente; em São Paulo, os atores foram espancados durante o espetáculo e, em Porto Alegre, sequestraram a atriz Elizabeth Gasper. A peça acabou proibida pela censura.
Chico só voltou ao teatro em 1972. OU melhor: tentou voltar.. Depois de muito tempo e dinheiro gastos com ensaios e produção, "Calabar - O Elogio da Traição", teve sua encenação vetada. E a censura foi além: proibiu a imprensa de fazer qualquer referência à obra, aos autores e até ao próprio Calabar. Mas, transcrita em livro, a peça esgotou-se rapidamente.
No ano seguinte, outro sucesso de venda: "Fazendo Modelo - Uma Novela Pecuária". E, em 1975, apesar de inúmeros cortes, "Gota d'Água" chegou aos palcos de Rio e São Paulo, onde ficou por dois anos. Agora, aí está a "Ópera do Malandro", que estreou no Rio a 26 de julho de 1978, e que é mais uma prova do gênio de Chico Buarque de Hollanda.
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