sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (1b) - Para encerrar tais rumores

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

1.

 continuando...

   Para encerrar tais rumores e explicações, acrescentaremos que na primavera houve muitas novidades no lar dos Epantchín, não tendo sido pois difícil esquecer o príncipe, que não mandava notícias, e decerto nem pensou nisso. Durante o inverno combinaram após muitas vacilações passar o verão no estrangeiro, isto é, Lizavéta Prokófievna mais as filhas, visto ser impossível, ao general, perder seu tempo em “diversões frívolas”. Tal decisão partiu mais dos imediatos e contínuos esforços das moças, totalmente persuadidas de que os pais não as queriam levar para fora do país por estarem empenhados demais em casá-las, procurando-lhes maridos. 
   Decerto os pais acabaram se convencendo que isso de maridos era matéria que também podia ser achada no estrangeiro; e que essa viagem. por um verão apenas, longe de atrapalhar seus planos, poderia talvez “ser proveitosa”. 
   E esta é a ocasião e o lugar de mencionar que o proposto casamento de Afanássii Ivánovitch Tótskíi com a moça mais velha foi desmanchado, a oferta mesmo formal, de sua mão, nunca tendo chegado a ser feita, o que se deu por si só, sem nenhum discurso ou disputa doméstica. O projeto caíra sozinho ao tempo da partida do príncipe; e caíra tanto de um como do outro lado. 
   O fato fora uma das causas do mau humor da família, muito embora a mãe acabasse por declarar peremptoriamente, então, que ficara tão contente “que até se benzera com as duas mãos ao mesmo tempo”. 
   Apesar de vencido, e de saber que só se podia queixar de si mesmo, o general se considerou ofendido e desconsiderado em casa, por algum tempo. Sentia ter perdido Afanássii Ivánovitch, “uma tamanha fortuna e um sujeito tão aguçado!” Mas não demorou muito para o general vir a saber que Tótskii se apaixonara por certa francesa da mais alta sociedade, marquesa e legitimista; que estavam ambos para se casar, e que Afanásii Ivánovitch se achava de viagem marcada para Paris, e, depois, Grã-Bretanha. “Ora, com a tal francesa, é um homem perdido!” concluiu ele. 
   Estavam os Epantchín se preparando a fim de partir antes do verão, quando uma circunstância de todo inesperada sobreveio, mudando-lhes os planos. E o passeio foi adiado, outra vez, com grande satisfação para o general e respectiva esposa.
   Apareceu em Petersburgo. vindo de Moscou, um certo Príncipe Chtch... homem muito conhecido; e justamente muito considerado por suas excelentes qualidades. Tratava-se de um desses homens modernos, pode-se mesmo dizer reformadores, e que sendo honesto, modesto, e desejando de modo inteligente e acertado o bem público, trabalhava deveras. sempre se distinguindo por uma rara e feliz faculdade de saber como trabalhar. Sem cortejar o favor público, evitando a amargura e a verbosidade das lutas partidárias, o príncipe tinha uma lúcida compreensão da sua época e respectiva evolução, muito embora não se considerando um chefe. Estivera no serviço imperial. Fora, em seguida, membro ativo de um Zémstvo.
   Filiara-se, como correspondente, a diversas sociedades culturais. Colaborando com um afamado perito, tinha reunido fatos e observações que o levaram a melhorar em muito o plano de uma nova linha de estrada de ferro de grande importância. Andava pelos trinta e cinco anos de idade. Era homem “da mais alta sociedade” e possuía, além de tudo, uma “boa, sólida e notória fortuna”, segundo as palavras do General Epantchín que, por acaso, tivera negócios com ele relativos a certos empreendimentos de monta. Conhecera-o em casa do conde, que era o diretor do seu departamento de trabalho oficial.
   Interessava-se o Príncipe Chtch... pelos homens práticos da Rússia, e nunca desdenhara a sociedade deles. E aconteceu ser introduzido na família Epantchín, tendo Adelaída Ivánovna, a segunda das irmãs, lhe causado considerável impressão. Pediu-a, no fim do inverno. Adelaída o apreciava deveras; Lizavéta Prokófievna, idem. O General Epantchín ficou radiante. O passeio ao estrangeiro foi naturalmente transferido, e o casamento marcado para a primavera.
   Isso não impediria que a viagem se realizasse lá pelos meados do verão, apenas como uma breve visita de um mês ou dois, a título de consolo para a mãe e para as duas filhas que ficavam; consolo pela perda de Adelaída. 
   Mas aconteceu logo algo de novo. 
   Nos fins da primavera (o casamento de Adelaída fora adiado para o meio do verão), o Príncipe Chtch... apresentou aos Epantchín certo membro de sua família, muito íntimo seu, embora parente afastado. Tratava-se de Evguénii Pávlovitch R., jovem de vinte e oito anos, ajudante-de- campo imperial, muito bem-parecido e pertencente a grande e importante família. Era talentoso, brilhante, “moderno”, “de alta educação” e, também, quase fabulosamente rico. Principalmente com este último ponto era o General Epantchín muito cuidadoso sempre. 
   Tomou suas informações. “Parece que a coisa é certa, embora. naturalmente, a gente se deva sempre certificar”. Esse jovem e futuroso ajudante-de-ordens viera altamente recomendado de Moscou, pela Princesa Bielokónskaia. Mas corria a seu respeito um rumor algo inquietador: falava-se em liaisons, em conquistas, em corações esmagados. Vendo Agláia, deu em se tornar assíduo em suas visitas aos Epantchín. Nada ainda fora dito, nenhuma suspeita. por menor, se esboçara, e já aos pais pareceu ficar de lado, outra vez, a ida ao estrangeiro, pelo verão. 
   Só Agláia era de opinião diversa.
   Tudo isso aconteceu justamente antes da segunda entrada do nosso herói na cena desta história. A esse tempo, a julgar pelas aparências, tinha o pobre Príncipe Míchkin sido completamente esquecido em Petersburgo. E se, inopinadamente surgisse entre aqueles que o tinham conhecido, pareceria ter caído do céu. Devemos aqui acrescentar outro fato, para assim completarmos a nossa introdução.
   Depois da partida do príncipe, continuara Kólia Ívolguin a passar o seu tempo como antes – quer dizer, ia à escola, visitava o seu amigo Ippolít, tratava do pai, ajudava a irmã em casa, levava recados. Mas todos os pensionistas se tinham ido. Ferdichtchénko fora-se três dias depois da noitada em casa de Nastássia Filíppovna, sem deixar traço, de maneira que não se sabia dele absolutamente. Dizia-se, aliás, em fontes desautorizadas, que dera em beber.
   Com a ida do príncipe para Moscou os hóspedes acabaram. Mais tarde. com o casamento de Vária, Nina Aleksándrovna e Gánia mudaram-se para a casa de Ptítsin na outra ponta da cidade. Quanto ao General Ívolguin, um acontecimento surpreendente lhe sucedera mais ou menos nessa ocasião: fora dar com os costados na prisão dos devedores por obra e graça da sua amiga, a viúva do capitão, ligando-se o fato a diversas promissórias por ele assinadas no valor total de dois mil rublos. Causara-lhe isso não pequena surpresa; o pobre general fora “indubitavelmente vítima de sua incrível fé na generosidade do coração humano, fiando-se de um modo genérico. Tendo adotado o suave hábito de assinar promissórias e letras, nunca lhe passara pela cabeça que isso implicasse em qualquer compromisso. Sempre supusera que tudo estava muito bem. Mas aconteceu que tudo ficou foi muito mal. “Depois de uma coisa destas, como acreditar na humanidade? De que modo mostrar alguém a sua generosa confiança?”, deu ele em exclamar, amargamente, amesendado entre os seus novos amigos, em casa de Tarássov, em frente de uma garrafa de vinho, contando-lhes anedotas sobre o cerco de Kars e do soldado que ressuscitou.
   Assim a coisa lhe assentou de maneira capital. Ptítsin e Vária foram de opinião que nunca estivera em lugar mais próprio; Gánia concordara inteiramente com eles. Apenas a pobre Nina Aleksándrovna derramou lágrimas amargas, em segredo (do que em casa todo o mundo se admirou, deveras) e, doente como já estava, arrastava-se, muitas vezes, como podia, para visitar o marido.
   Mas desde o tempo da “adversidade do general”, como Kólia dizia - e, mais exatamente, desde o tempo do casamento da irmã, Kólia se desvencilhara deles e as coisas deram em se passar de tal modo que muito raramente dormia em casa, só sabendo, os seus, que fizera um número sem conta de novas relações. Ainda assim se tornou bastante conhecido na prisão dos devedores. Nina Aleksándrovna não ia até lá sem ele, e em casa, agora, já não o aborreciam com questões. Vária, que fora antes tão severa, já não o enfezava com a menor indagação que fosse a respeito da sua vagabundagem; e, com grande surpresa para o restante da família. Gánia, a despeito da sua hipocondria, dera habitualmente em conversar e em se comportar de maneira totalmente amistosa para com o irmão. E isso era algo inteiramente novo, pois Gánia, com vinte e sete anos de idade, jamais tomara o menor interesse, como amigo, pelo rapazinho de quinze anos. Tratara-o sempre de modo rude e exigia que a família fosse severa para com ele, estando sempre pronto a puxar-lhe as orelhas, o que levava Kólia “para lá dos mais extremos limites do sofrimento humano”. Podia-se com isso concluir que Kólia se tornara positivamente indispensável ao irmão.
   Verdade é que o impressionara o fato de Gánia haver devolvido o dinheiro: só por tal gesto estava pronto a perdoar-lhe muita e muita coisa. Foi só três meses depois da partida do príncipe, que a família Ívolguin se deu conta de que Kólia inesperadamente entretinha relações com os Epantchín, sendo muito bem recebido pelas moças. Vária soube logo disso, não devendo ele à irmã esse conhecimento, tendo-os procurado por vontade e inclinação sua. Pouco a pouco os Epantchín foram gostando dele. Logo no começo. Lizavéta Prokófievna não o tolerou; mas depois começou a levá-lo a sério, “por causa da sua franqueza e porque não era adulador”. Que Kólia não era adulador, aí estava uma asserção mais que verídica.
    Armara as coisas de maneira a ser bastante independente e a se pôr em pé de igualdade perante elas, chegando, às vezes, a ler livros e jornais para a generala ouvir. A sua prestimosidade estava sempre à prova. Uma ou duas vezes, no entanto, teve brigas com Lizavéta Prokófievna, ousando chamá-la de déspota e jurando que não tornaria a pisar em casa dela. A primeira vez a briga começou por causa da questão “mulher”, já a segunda tendo sido por causa de divergência quanto ao melhor tempo do ano para apanhar verdelhões. E, por mais esquisito que pareça, dois dias depois da briga a Sra. Epantchina mandou- lhe um bilhete, por um criado, pedindo-lhe que voltasse. Kólia não embirrou e foi imediatamente vê-la. Somente Agláia não simpatizava com ele, conservando-o a distância. E no entanto era a Agláia que ele estava destinado a surpreender: o fato foi que, na Páscoa, ele aproveitou uma oportunidade de estarem ambos sós para lhe entregar uma carta, apenas lhe dizendo que lhe fora recomendado entregar-lhe quando estivesse sozinha. Agláia encarou de modo ameaçador o “pequeno atrevido”, mas Kólia se retirou sem aguardar mais nada. Ela abriu a carta e leu:

Outrora me honrastes com a vossa confiança. Talvez, agora, já me tenhais esquecido. Todavia vos estou escrevendo!... Como pode ser isso? Não sei. Mas sinto um irreprimível desejo de vos relembrar, e a vós tão só, que ainda existo. Quantas vezes não tenho eu tido saudades das três. Mas, de todas, era só a vós que eu via. Preciso de vós - preciso muitíssimo. A meu respeito, que hei de eu dizer? Nada há a dizer. E nem é disso que se trata. O meu maior desejo é que sejais feliz. Sois feliz? Eis tudo quanto eu vos queria dizer. Vosso irmão, Príncipe L. Míchkin.
   
   Lendo essa carta tão curta quanto incoerente, Agláia corou e ficou pensativa. Seria difícil dizer no que estava ela pensando. Entre outras coisas perguntou a si mesma se a deveria mostrar a alguém. Sentiu que isso a envergonharia. E acabou trancando a carta na gaveta da sua mesa, fazendo-o com um sorriso irônico. Mas no dia seguinte a tirou de lá e a enfiou dentro de um volume grosso e pesadão (sempre fazia isso com os seus papéis de maneira a poder encontrá-los com facilidade quando quisesse). E nem bem uma semana depois, notou que livro era esse. Era Dom Quixote de la Mancha. Agláia desandou a rir, sem saber por quê. Nunca se ficou sabendo se chegou a mostrar a carta às irmãs.
   Mas mesmo quando estava lendo a carta ficara perplexa com uma coisa: como podia o príncipe ter escolhido aquele criançola presumido e confiado, como seu correspondente, e talvez até único, em Petersburgo? Pôs-se então, com um cuidado exagerado, a reexaminar Kólia. Mas, apesar de ser ele facilmente suscetível, desta vez nem chegou a perceber essa análise. Apressadamente, e de maneira seca, explicou que apesar de ter dado o seu endereço permanente ao príncipe quando este deixara Petersburgo, tendo-se- lhe oferecido ficar às ordens para o que pudesse fazer, a entrega dessa carta fora a primeira incumbência recebida da parte dele; e, como reforço do que estava dizendo, mostrou o recado que o príncipe lhe dirigira. Agláia não fez a menor cerimônia e leu. A carta para Kólia dizia isto:

Caro Kólia, queira ter a bondade de entregar a cartaselada aqui junta a Agláia Ivánovna! 
Espero que V. esteja bem. 
Seu dedicado, Príncipe L. Míchkin 

- É ridículo confiar em um fedelho como você! - disse Agláia arrogantemente a Kólia, tornando a lhe entregar a carta que acabara de ler; e passou por ele, desdenhosamente, indo embora para os seus aposentos.

   Isso ultrapassava o que Kólia podia suportar, pois chegara a pedir a Gánia, sem lhe dizer para que, que lhe emprestasse (e para essa ocasião) o seu novo cachecol verde. Ficou amargamente ofendido. 

continua página 169..
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