O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
1.
continuando...
Para encerrar tais rumores e explicações, acrescentaremos que na primavera
houve muitas novidades no lar dos Epantchín, não tendo sido pois difícil esquecer
o príncipe, que não mandava notícias, e decerto nem pensou nisso. Durante o
inverno combinaram após muitas vacilações passar o verão no estrangeiro, isto é,
Lizavéta Prokófievna mais as filhas, visto ser impossível, ao general, perder seu
tempo em “diversões frívolas”. Tal decisão partiu mais dos imediatos e contínuos
esforços das moças, totalmente persuadidas de que os pais não as queriam levar
para fora do país por estarem empenhados demais em casá-las, procurando-lhes
maridos.
Decerto os pais acabaram se convencendo que isso de maridos era
matéria que também podia ser achada no estrangeiro; e que essa viagem. por um
verão apenas, longe de atrapalhar seus planos, poderia talvez “ser proveitosa”.
E
esta é a ocasião e o lugar de
mencionar que o proposto casamento de Afanássii Ivánovitch Tótskíi com a
moça mais velha foi desmanchado, a oferta mesmo formal, de sua mão, nunca
tendo chegado a ser feita, o que se deu por si só, sem nenhum discurso ou disputa
doméstica. O projeto caíra sozinho ao tempo da partida do príncipe; e caíra tanto
de um como do outro lado.
O fato fora uma das causas do mau humor da
família, muito embora a mãe acabasse por declarar peremptoriamente, então,
que ficara tão contente “que até se benzera com as duas mãos ao mesmo
tempo”.
Apesar de vencido, e de saber que só se podia queixar de si mesmo, o
general se considerou ofendido e desconsiderado em casa, por algum tempo.
Sentia ter perdido Afanássii Ivánovitch, “uma tamanha fortuna e um sujeito tão
aguçado!” Mas não demorou muito para o general vir a saber que Tótskii se
apaixonara por certa francesa da mais alta sociedade, marquesa e legitimista;
que estavam ambos para se casar, e que Afanásii Ivánovitch se achava de
viagem marcada para Paris, e, depois, Grã-Bretanha. “Ora, com a tal francesa,
é um homem perdido!” concluiu ele.
Estavam os Epantchín se preparando a fim
de partir antes do verão, quando uma circunstância de todo inesperada sobreveio,
mudando-lhes os planos. E o passeio foi adiado, outra vez, com grande satisfação
para o general e respectiva esposa.
Apareceu em Petersburgo. vindo de Moscou, um certo Príncipe Chtch... homem
muito conhecido; e justamente muito considerado por suas excelentes qualidades.
Tratava-se de um desses homens modernos, pode-se mesmo dizer reformadores,
e que sendo honesto, modesto, e desejando de modo inteligente e acertado o bem
público, trabalhava deveras. sempre se distinguindo por uma rara e feliz
faculdade de saber como trabalhar. Sem cortejar o favor público, evitando a
amargura e a verbosidade das lutas partidárias, o príncipe tinha uma lúcida
compreensão da sua época e respectiva evolução, muito embora não se
considerando um chefe. Estivera no serviço imperial. Fora, em seguida, membro
ativo de um Zémstvo.
Filiara-se, como correspondente, a diversas sociedades culturais. Colaborando
com um afamado perito, tinha reunido fatos e observações que o levaram a
melhorar em muito o plano de uma nova linha de estrada de ferro de grande
importância. Andava pelos trinta e cinco anos de idade. Era homem “da mais
alta sociedade” e possuía, além de tudo, uma “boa, sólida e notória fortuna”,
segundo as palavras do General Epantchín que, por acaso, tivera negócios com
ele relativos a certos empreendimentos de monta. Conhecera-o em casa do
conde, que era o diretor do seu departamento de
trabalho oficial.
Interessava-se o Príncipe Chtch... pelos homens práticos da
Rússia, e nunca desdenhara a sociedade deles. E aconteceu ser introduzido na
família Epantchín, tendo Adelaída Ivánovna, a segunda das irmãs, lhe causado
considerável impressão. Pediu-a, no fim do inverno. Adelaída o apreciava
deveras; Lizavéta Prokófievna, idem. O General Epantchín ficou radiante. O
passeio ao estrangeiro foi naturalmente transferido, e o casamento marcado para
a primavera.
Isso não impediria que a viagem se realizasse lá pelos meados do verão, apenas
como uma breve visita de um mês ou dois, a título de consolo para a mãe e para
as duas filhas que ficavam; consolo pela perda de Adelaída.
Mas aconteceu logo
algo de novo.
Nos fins da primavera (o casamento de Adelaída fora adiado para
o meio do verão), o Príncipe Chtch... apresentou aos Epantchín certo membro de
sua família, muito íntimo seu, embora parente afastado. Tratava-se de Evguénii
Pávlovitch R., jovem de vinte e oito anos, ajudante-de- campo imperial, muito
bem-parecido e pertencente a grande e importante família. Era talentoso,
brilhante, “moderno”, “de alta educação” e, também, quase fabulosamente rico.
Principalmente com este último ponto era o General Epantchín muito cuidadoso
sempre.
Tomou suas informações. “Parece que a coisa é certa, embora.
naturalmente, a gente se deva sempre certificar”. Esse jovem e futuroso
ajudante-de-ordens viera altamente recomendado de Moscou, pela Princesa
Bielokónskaia. Mas corria a seu respeito um rumor algo inquietador: falava-se em
liaisons, em conquistas, em corações esmagados. Vendo Agláia, deu em se tornar
assíduo em suas visitas aos Epantchín. Nada ainda fora dito, nenhuma suspeita.
por menor, se esboçara, e já aos pais pareceu ficar de lado, outra vez, a ida ao
estrangeiro, pelo verão.
Só Agláia era de opinião diversa.
Tudo isso aconteceu justamente antes da segunda entrada do nosso herói na cena
desta história. A esse tempo, a julgar pelas aparências, tinha o pobre Príncipe
Míchkin sido completamente esquecido em Petersburgo. E se, inopinadamente
surgisse entre aqueles que o tinham conhecido, pareceria ter caído do céu.
Devemos aqui acrescentar outro fato, para assim completarmos a nossa
introdução.
Depois da partida do príncipe, continuara Kólia Ívolguin a passar o seu tempo
como antes – quer dizer, ia à escola, visitava o seu amigo Ippolít, tratava do pai,
ajudava a irmã em casa, levava recados. Mas todos os pensionistas se tinham ido.
Ferdichtchénko fora-se três dias depois da noitada em casa de Nastássia
Filíppovna, sem deixar traço, de maneira que não se sabia dele
absolutamente. Dizia-se, aliás, em fontes desautorizadas, que dera em beber.
Com a ida do príncipe para Moscou os hóspedes acabaram. Mais tarde. com o
casamento de Vária, Nina Aleksándrovna e Gánia mudaram-se para a casa de
Ptítsin na outra ponta da cidade. Quanto ao General Ívolguin, um acontecimento
surpreendente lhe sucedera mais ou menos nessa ocasião: fora dar com os
costados na prisão dos devedores por obra e graça da sua amiga, a viúva do
capitão, ligando-se o fato a diversas promissórias por ele assinadas no valor total
de dois mil rublos. Causara-lhe isso não pequena surpresa; o pobre general fora
“indubitavelmente vítima de sua incrível fé na generosidade do coração humano,
fiando-se de um modo genérico. Tendo adotado o suave hábito de assinar
promissórias e letras, nunca lhe passara pela cabeça que isso implicasse em
qualquer compromisso. Sempre supusera que tudo estava muito bem. Mas
aconteceu que tudo ficou foi muito mal. “Depois de uma coisa destas, como
acreditar na humanidade? De que modo mostrar alguém a sua generosa
confiança?”, deu ele em exclamar, amargamente, amesendado entre os seus
novos amigos, em casa de Tarássov, em frente de uma garrafa de vinho,
contando-lhes anedotas sobre o cerco de Kars e do soldado que ressuscitou.
Assim a coisa lhe assentou de maneira capital. Ptítsin e Vária foram de opinião
que nunca estivera em lugar mais próprio; Gánia concordara inteiramente com
eles. Apenas a pobre Nina Aleksándrovna derramou lágrimas amargas, em
segredo (do que em casa todo o mundo se admirou, deveras) e, doente como já
estava, arrastava-se, muitas vezes, como podia, para visitar o marido.
Mas desde o tempo da “adversidade do general”, como Kólia dizia - e, mais
exatamente, desde o tempo do casamento da irmã, Kólia se desvencilhara deles
e as coisas deram em se passar de tal modo que muito raramente dormia em
casa, só sabendo, os seus, que fizera um número sem conta de novas relações.
Ainda assim se tornou bastante conhecido na prisão dos devedores. Nina
Aleksándrovna não ia até lá sem ele, e em casa, agora, já não o aborreciam com
questões. Vária, que fora antes tão severa, já não o enfezava com a menor
indagação que fosse a respeito da sua vagabundagem; e, com grande surpresa
para o restante da família. Gánia, a despeito da sua hipocondria, dera
habitualmente em conversar e em se comportar de maneira totalmente amistosa
para com o irmão. E isso era algo inteiramente novo, pois Gánia, com vinte e
sete anos de idade, jamais tomara o menor interesse, como amigo, pelo
rapazinho de quinze anos. Tratara-o sempre de modo rude e exigia que a
família fosse severa para com ele, estando sempre pronto a puxar-lhe as orelhas,
o que levava Kólia “para lá dos mais extremos limites do sofrimento humano”.
Podia-se com isso concluir que Kólia se tornara positivamente indispensável ao
irmão.
Verdade é que o impressionara o fato de Gánia haver devolvido o dinheiro: só por
tal gesto estava pronto a perdoar-lhe muita e muita coisa. Foi só três meses depois
da partida do príncipe, que a família Ívolguin se deu conta de que Kólia
inesperadamente entretinha relações com os Epantchín, sendo muito bem
recebido pelas moças. Vária soube logo disso, não devendo ele à irmã esse
conhecimento, tendo-os procurado por vontade e inclinação sua. Pouco a pouco
os Epantchín foram gostando dele. Logo no começo. Lizavéta Prokófievna não o
tolerou; mas depois começou a levá-lo a sério, “por causa da sua franqueza e
porque não era adulador”. Que Kólia não era adulador, aí estava uma asserção
mais que verídica.
Armara as coisas de maneira a ser bastante independente e a se pôr em pé de
igualdade perante elas, chegando, às vezes, a ler livros e jornais para a generala
ouvir. A sua prestimosidade estava sempre à prova. Uma ou duas vezes, no
entanto, teve brigas com Lizavéta Prokófievna, ousando chamá-la de déspota e
jurando que não tornaria a pisar em casa dela. A primeira vez a briga começou
por causa da questão “mulher”, já a segunda tendo sido por causa de divergência
quanto ao melhor tempo do ano para apanhar verdelhões. E, por mais esquisito
que pareça, dois dias depois da briga a Sra. Epantchina mandou- lhe um bilhete,
por um criado, pedindo-lhe que voltasse. Kólia não embirrou e foi imediatamente
vê-la. Somente Agláia não simpatizava com ele, conservando-o a distância. E no
entanto era a Agláia que ele estava destinado a surpreender: o fato foi que, na
Páscoa, ele aproveitou uma oportunidade de estarem ambos sós para lhe
entregar uma carta, apenas lhe dizendo que lhe fora recomendado entregar-lhe
quando estivesse sozinha. Agláia encarou de modo ameaçador o “pequeno
atrevido”, mas Kólia se retirou sem aguardar mais nada. Ela abriu a carta e leu:
Outrora me honrastes com a vossa confiança. Talvez, agora, já me tenhais esquecido. Todavia vos estou escrevendo!... Como pode ser isso? Não sei. Mas sinto um irreprimível desejo de vos relembrar, e a vós tão só, que ainda existo. Quantas vezes não tenho eu tido saudades das três. Mas, de todas, era só a vós que eu via. Preciso de vós - preciso muitíssimo. A meu respeito, que hei de eu dizer? Nada há a dizer. E nem é disso que se trata. O meu maior desejo é que sejais feliz. Sois feliz? Eis tudo quanto eu vos queria dizer. Vosso irmão, Príncipe L. Míchkin.
Lendo essa carta tão curta quanto incoerente, Agláia corou e ficou pensativa.
Seria difícil dizer no que estava ela pensando. Entre outras coisas perguntou a si
mesma se a deveria mostrar a alguém. Sentiu que isso a envergonharia. E
acabou trancando a carta na gaveta da sua mesa, fazendo-o com um sorriso
irônico. Mas no dia seguinte a tirou de lá e a enfiou dentro de um volume grosso e
pesadão (sempre fazia isso com os seus papéis de maneira a poder encontrá-los
com facilidade quando quisesse). E nem bem uma semana depois, notou que
livro era esse. Era Dom Quixote de la Mancha. Agláia desandou a rir, sem saber
por quê. Nunca se ficou sabendo se chegou a mostrar a carta às irmãs.
Mas mesmo quando estava lendo a carta ficara perplexa com uma coisa: como
podia o príncipe ter escolhido aquele criançola presumido e confiado, como seu
correspondente, e talvez até único, em Petersburgo? Pôs-se então, com um
cuidado exagerado, a reexaminar Kólia. Mas, apesar de ser ele facilmente
suscetível, desta vez nem chegou a perceber essa análise. Apressadamente, e de
maneira seca, explicou que apesar de ter dado o seu endereço permanente ao
príncipe quando este deixara Petersburgo, tendo-se- lhe oferecido ficar às ordens
para o que pudesse fazer, a entrega dessa carta fora a primeira incumbência
recebida da parte dele; e, como reforço do que estava dizendo, mostrou o recado
que o príncipe lhe dirigira. Agláia não fez a menor cerimônia e leu. A carta para
Kólia dizia isto:
Caro Kólia, queira ter a bondade de entregar a cartaselada aqui junta a Agláia Ivánovna!Espero que V. esteja bem.Seu dedicado, Príncipe L. Míchkin
- É ridículo confiar em um fedelho como você! - disse Agláia arrogantemente a Kólia, tornando a lhe entregar a carta que acabara de ler; e passou por ele, desdenhosamente, indo embora para os seus aposentos.
Isso ultrapassava o que Kólia podia suportar, pois chegara a pedir a Gánia,
sem lhe dizer para que, que lhe emprestasse (e para essa ocasião) o seu novo
cachecol verde. Ficou amargamente ofendido.
continua página 169..
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