quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VIII — A onda e a sombra

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Segundo - A Queda



VIII — 
A onda e a sombra




Homem ao mar!

Que importa? O navio não pára. O vento é fresco e o navio tem um rumo que é obrigado a seguir. Não pode deter-se. Segue sempre.

O homem que caiu ao mar desaparece, torna a aparecer, mergulha, sobe à superfície, estende os braços, chama. Ninguém o ouve. O navio, balouçado pelas vagas, obedece ao impulso da manobra de quem o dirige; equipagem e passageiros nem sequer divisam já o homem submergido; a cabeça do infeliz é apenas um ponto escuro na imensidade do mar. No espaço retumbam os seus gritos desesperados ao ver o espectro daquela vela que lhe foge. Contempla-a, crava nela os olhos com frenesi. E ela afasta-se, vai decrescendo, vai-se esfumando, confundida no ambiente nebuloso do horizonte. Há pouco ainda que ele ia dentro desse navio, que fazia parte da sua equipagem, que passeava no convés com os outros, que tinha a sua parte de respiração e de sol, que era um vivo. Agora, que foi que sucedeu? Escorregou, caiu, acabou-se.

Ei-lo em luta com a voracidade da água. Tenta firmar os pés e não encontra um ponto de apoio; estende os braços e não encontra a que se apegar. As ondas revoltas e retalhadas pelo vento rodeiam-no medonhas. As vagas envolvem-no, sacudidas pelo vento em pavorosos escarcéus; as ondulações impetuosas e desencontradas do abismo fazem dele seu ludíbrio; a espuma das ondas fusga-lhe a cara, como se fora a lava deste vulcão líquido, como se fora um escarro de pungente ironia arado às faces do infeliz por aquele povoléu de vagas indômitas; a cada passo o dragão imenso abre as fauces de chofre e subverte-o, devora-o; e ele, de cada vez que mergulha, avista precipícios de trevas cerradas; medonhas vegetações desconhecidas o enleiam, emaranham-se-lhe nos pés, o atraem para si; sente que se torna abismo, faz parte da espuma, as vagas trazem-no aos repelões, bebe a amargura, o oceano porfia cobardemente no intento de o afogar, a imensidade zomba da sua agonia. Parece que toda aquela água lhe tem ódio.

E ele luta sempre! O infeliz tenta defender-se, tenta suster-se, esbraceja, emprega todos os esforços, consegue nadar Ele, pobre força de repente exausta, combate a que é inexaurível.

Onde está o navio? Muito longe. Mal se avista nas lívidas sombras do horizonte.

O vento continua em rajadas; a espuma das ondas vence-o. Ergue os olhos e vê apenas a lividez das nuvens. Presencia agonizante o imenso delírio do mar e a vítima dessa demência é ele. No meio da sua angústia, ouve ruídos estranhos ao homem, que parecem provir não sei de que terrível região de além da terra.

Por entre aquelas nuvens pairam aves, como os anjos por cima dos infortúnios humanos. Mas que podem fazer por ele? Voam, cantam, fendem os ares e ele agoniza. Vê-se sepultado por dois infinitos ao mesmo tempo: o oceano e o céu; um é o sepulcro, o outro a mortalha.

Desce a noite.

Já as forças lhe escasseiam, porque há umas poucas de horas que nada; o navio, esse vulto longínquo em que havia homens, desapareceu: o infeliz está só na medonha voragem crepuscular; mergulha, debate-se, sente por debaixo de si monstruosas e invisíveis vagas, chama e pede que lhe acudam.

Não há um só homem que o ouça. Onde está Deus?

Chama ainda, brada por socorro.

Nada no horizonte, nada no céu!

Implora à imensidade, às vagas, à alga marinha, ao escolho; é tudo surdo. Suplica à tempestade; a tempestade, imperturbável, só obedece ao infinito.

Em torno dele a escuridão, o nevoeiro, a solidão, tumulto tempestuoso e inconsciente, o redemoinho infinito das águas enfurecidas. Nele o horror e a fadiga. A seus pés o abismo incomensurável e nem um só ponto de apoio. Lembra-se das tenebrosas aventuras do cadáver no meio da escuridão ilimitada. Paralisado o frio sem fim. Crispam-se-lhe as mãos, fecha-as e apanha o nada.

Ventos, nuvens, turbilhões, lufadas, estrelas inúteis! Que fazer? Desesperado, cansado de lutar, entrega-se sem esperança, deixa-se arrastar, deixa-se despedaçar, adota a resolução de morrer, e ei-lo que desaparece para sempre nas lúgubres profundidades do abismo.

Ó impiedosa marcha das sociedades humanas, em que se não dá atenção aos homens e às almas que se vão perdendo! Oceano que absorve sem remédio quanto a lei deixa cair! Sinistra desaparição do socorro! Ó morte moral!

O mar é a inexorável escuridão social a que a penalidade arremessa os seus condenados. O mar é a imensa miséria!

A alma que cai a este golfão pode tornar-se cadáver. Quem a ressuscitará?




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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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