sábado, 31 de agosto de 2019

Cruz e Sousa - Poesias Completas: Outros Sonetos XXXIII - Os Mortos

Cruz e Sousa

Obra Completa
Volume 1
POESIA



O Livro Derradeiro
Primeiros Escritos

Cambiantes
Outros Sonetos Campesinas
Dispersas
Julieta dos Santos




OUTROS SONETOS 







OS MORTOS 


Ao menos junto aos mortos pode a gente 
Crer e esperar n’alguma suavidade: 
Crer no doce consolo da saudade 
E esperar do descanso eternamente.

Junto aos mortos, por certo, a fé ardente 
Não perde a sua viva claridade; 
Cantam as aves do céu na intimidade 
Do coração o mais indiferente.

Os mortos dão-nos paz imensa à vida, 
Dão a lembrança vaga, indefinida 
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.

Nas lutas vãs do tenebroso mundo 
Os mortos são ainda o bem profundo 
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.





FLORIPES


Fazes lembrar as mouras dos castelos, 
As errantes visões abandonadas 
Que pelo alto das torres encantadas 
Suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos 
Acordam-te nas formas delicadas 
Saudades mortas de regiões sagradas, 
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia 
Dá-te segredos de melancolia, 
Da Lua todo o lânguido abandono...

Desejos vagos, olvidadas queixas 
Vão morrer no calor dessas madeixas, 
Nas virgens florescências do teu sono.





O CEGO DO HARMONIUM


Esse cego do harmonium me atormenta 
E atormentando me seduz, fascina. 
A minh’alma para ele vai sedenta 
Por falar com a sua alma peregrina.

O seu cantar nostálgico adormenta 
Como um luar de mórbida neblina. 
O harmonium geme certa queixa lenta, 
Certa esquisita e lânguida surdina.

Os seus olhos parecem dois desejos 
Mortos em flor, dois luminosos beijos 
Fanados, apagados, esquecidos...

Ah! eu não sei o sentimento vário 
Que prende-me a esse cego solitário, 
De olhos aflitos como vãos gemidos!




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De fato, a inteligência, criatividade e ousadia de Cruz e Sousa eram tão vigorosos que, mesmo vítima do preconceito racial e da sempiterna dificuldade em aceitar o novo, ainda assim o desterrense, filho de escravos alforriados, João da Cruz e Sousa, “Cisne Negro” para uns, “Dante Negro” para outros, soube superar todos os obstáculos que o destino lhe reservou, tornando-se o maior poeta simbolista brasileiro, um dos três grandes do mundo, no mesmo pódio onde figuram Stephan Mallarmé e Stefan George. A sociedade recém-liberta da escravidão não conseguia assimilar um negro erudito, multilíngue e, se não bastasse, com manias de dândi. Nem mesmo a chamada intelligentzia estava preparada para sua modernidade e desapego aos cânones da época. Sua postura independente e corajosa era vista como orgulhosa e arrogante. Por ser negro e por ser poeta foi um maldito entre malditos, um Baudelaire ao quadrado. Depois de morrer como indigente, num lugarejo chamado Estação do Sítio, em Barbacena (para onde fora, às pressas, tentar curar-se de tuberculose), seu
corpo foi levado para o Rio de Janeiro graças à intervenção do abolicionista José do Patrocínio, que cuidou para que tivesse um enterro cristão, no cemitério São João Batista.



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