terça-feira, 20 de agosto de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -2)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XXIII -2

DESGOSTOS DE UM FUNCIONÁRIO




Il piacere di alzar la testa tutto l´anno è ben pagato da certi quarti d´ora che bisogna passar. 

CASTI



continuando...





Um dia depois de sua chegada, já às seis horas da manhã, o abade Chélan mandou chamar Julien:

– Não lhe peço nada, ele disse; suplico e, se for preciso, ordeno que nada me diga, mas exijo que dentro de três dias parta para o seminário de Besançon ou para a casa de seu amigo Fouqué, que está sempre disposto a proporcionar-lhe um magnífico futuro. Já previ tudo, arranjei tudo; mas é preciso partir e só voltar a Verrières daqui a um ano. 

Julien nada respondeu; ele examinava se sua honra devia julgar-se ofendida com os cuidados que o sr. Chélan, que afinal não era seu pai, tivera em relação a ele. 

– Amanhã, à mesma hora, terei a honra de revê-lo, disse enfim ao cura. 

O sr. Chélan, que contava levar grande vantagem na luta com um homem tão jovem, falou muito. Dissimulado na atitude e na fisionomia mais humilde, Julien não abriu a boca. 

Saiu, finalmente, e foi correndo prevenir a sra. de Rênal, que ele encontrou desesperada. O marido acabava de falar-lhe com certa franqueza. Mas o caráter fraco dele, de olho na herança de Besançon, fizera-o considerá-la co​mo perfeitamente inocente. Ele falara do estranho estado em que se achava a opinião pública de Verrières. O público estava errado, fora desencaminhado por invejosos; mas, enfim, o que fazer? 

Por um momento, a sra. de Rênal teve a ilusão de que Julien poderia aceitar as ofertas do sr. Valenod e permanecer em Verrières. Mas ela não era mais aquela mulher simples e tímida do ano precedente; sua paixão fatal, seus remorsos haviam-na esclarecido. Ao escutar o marido, logo sentiu a dor de provar a si mesma que uma separação, ao menos momentânea, tornara-se indispensável. Longe de mim, Julien recairá em seus projetos de ambição, tão naturais quando não se tem nada. Enquanto eu, ó Deus! sou tão rica, e tão inutilmente para a minha felicidade! Ele me esquecerá. Atraen​te como é, será amado, amará. Ah! Infeliz... De que posso me queixar? O céu é justo, não fui capaz de fazer cessar o crime, ele me tira a capacidade de julgar. Dependia apenas de mim conquistar Elisa à força de dinheiro, nada me seria mais fácil. Não me dei o trabalho de refletir um pouco, a louca imaginação do amor absorvia todo o meu tempo. Pereço. 

Julien ficou chocado com uma coisa: ao dar a terrível notícia da partida à sra. de Rênal, não encontrou nenhuma objeção egoísta. Evidentemente, ela se esforçava para não chorar. 

– Precisamos de firmeza, meu amigo. 

E cortou uma mecha de seus cabelos. 

– Não sei o que farei, disse a ele; mas, se eu morrer, promete jamais esquecer meus filhos. De longe ou de perto, procura fazer que sejam homens honestos. Se houver uma nova revolução, os nobres serão decapitados, o pai deles talvez emigre por causa daquele camponês morto num telhado. Cuida da família... Dá-me tua mão. Adeus, meu amigo! São os últimos momentos. Feito esse grande sacrifício, espero ter em público a coragem de pensar em minha reputação. 

Julien esperava o desespero. A simplicidade dessa despedida o comoveu. 

– Não, não recebo assim sua despedida. Partirei, é o que eles querem, o que você mesma quer. Mas, três dias depois de minha partida, voltarei para vê-la à noite.

A existência da sra. de Rênal modificou-se. Julien então a amava de verdade, pois ele próprio tivera a ideia de revê-la! Sua dor terrível transformou-se num dos mais vivos estados de alegria que ela sentira na vida.Tudo lhe pareceu fácil. A certeza de rever seu amigo retirou desses últimos momentos o que eles tinham de dilacerante. A partir desse instante, a conduta, assim como a fisionomia da sra. de Rênal, foi nobre, firme e perfeitamente conveniente. 

O sr. de Rênal logo retornou; estava fora de si. Falou enfim à mulher da carta anônima recebida dois meses antes. 

– Quero levá-la ao Cassino, mostrar a todos que foi escrita por esse infame Valenod, que tirei da sarjeta para transformá-lo num dos mais ricos burgueses de Verrières. Hei de envergonhá-lo publicamente e depois me baterei com ele. Isso é demais. 

Meu Deus, posso ficar viúva!, pensou a sra. de Rênal. Mas quase no mesmo instante disse a si mesma: Se eu não impedir esse duelo, como certamente posso fazer, serei a assassina de meu marido. 

Nunca ela administrou a vaidade dele com tamanha habilidade. Em menos de duas horas fê-lo compreender, e sempre por razões encontradas por ele, que mais do que nunca era preciso demonstrar amizade pelo sr. Valenod, e mesmo chamar Elisa de volta. A sra. de Rênal precisou de coragem para decidir-se a rever essa moça, causa de todos os seus infortúnios. Mas a ideia vinha de Julien. 

Enfim, depois de três ou quatro chamadas ao bom caminho, o sr. de Rênal chegou, sozinho, à ideia financeiramente muito penosa de que o mais desagradável, para ele, seria Julien, em meio à efervescência e ao falatório de Verrières inteira, ficar na cidade como preceptor dos filhos do sr. Valenod. O interesse evidente de Julien era aceitar a oferta do diretor do asilo. Para a glória do sr. de Rênal, ao contrário, era importante que Julien entrasse no seminário de Besançon ou no de Dijon. Mas como decidi-lo a isso? E como ele viveria lá? 

Percebendo a iminência do sacrifício financeiro, o sr. de Rênal estava mais desesperado que a mulher. Quanto a ela, depois dessa conversa, estava na posição de um homem corajoso que, cansado da vida, tomou uma dose de stramonium; ele não age mais deliberadamente, por assim dizer, e não se interessa mais por nada. Assim sucedeu ao rei Luís XIV , moribundo, dizer: Quando eu era rei. Frase admirável! 

No dia seguinte, bem cedo, o sr. de Rênal recebeu uma carta anônima. O estilo desta era insultuoso. As palavras mais grosseiras aplicáveis à sua situação liam-se a cada linha. Era obra de algum invejoso subalterno. Essa carta trouxe-lhe de volta a ideia de bater-se com o sr. Valenod. Sua coragem instigou-o inclusive à execução imediata dessa ideia. Saiu sozinho e foi à casa do nego​cian​te de armas obter pistolas, que mandou carregar. 

Em verdade, ele pensava, se a administração severa do imperador Napoleão voltasse ao mundo, eu não teria nenhuma patifaria a reprovar-me. Quando muito fechei os olhos, mas tenho boas cartas em meu escritório que me autorizam a isso. 

A sra. de Rênal ficou assustada com a cólera fria do marido, que lhe trazia de volta a ideia fatal de viuvez que tivera tanta dificuldade de repelir. Encerrou-se com ele, durante várias horas falou-lhe em vão: a nova carta anônima determinava-o. Mas, por fim, ela conseguiu transformar a coragem de esbofetear o sr. Valenod na de oferecer 600 francos a Julien por um ano de pensão num seminário. O sr. de Rênal, maldizendo mil vezes o dia em que tivera a fatal ideia de ter um preceptor em casa, esqueceu a carta anônima. 

Consolou-se um pouco com uma ideia que não disse à mulher; com habilidade, e aproveitando as ideias romanesca do rapaz, ele esperava levá-lo, por uma quantia menor, a recusar a oferta do sr. Valenod. 

A sra. de Rênal teve mais dificuldade de provar a Julien que, fazendo às conveniências do marido o sacrifício de um cargo de 800 francos, que lhe oferecia publicamente o diretor do asilo, ele podia sem a menor vergonha aceitar uma indenização. 

– Mas eu nunca tive, nem por um instante, a intenção de aceitar essa oferta, dizia Julien. Você me acostumou demais à vida elegante, a grosseria daquela gente me mataria. 

A cruel necessidade, com sua mão de ferro, dobrou a vontade de Julien. Seu orgulho oferecia-lhe a ilusão de aceitar apenas como um empréstimo a quantia oferecida pelo prefeito de Verrières, prometendo-lhe reembolso dentro de cinco anos, com juros. 

A sra. de Rênal ainda dispunha de alguns milhares de francos escondidos na pequena gruta da montanha. Ela os ofereceu, trêmula, sentindo que seria recusada com cólera. 

– Quer tornar a lembrança de nossos amores abominável?, disse-lhe Julien. 

Enfim, Julien deixou Verrières. O sr. de Rênal ficou muito satisfeito; no momento fatal de aceitar o dinheiro dele, esse sacrifício pareceu excessivo a Julien, que recusou sem hesitar. O sr. de Rênal abraçou-o com lágrimas nos olhos. Como Julien lhe pedisse um certificado de boa conduta, ele não encontrou, em seu entusiasmo, termos suficientemente magníficos para exaltar seu comportamento. Nosso herói tinha cinco luíses de economias e contava pedir outro tanto a Fouqué. 

Estava muito emocionado. Mas a uma légua de Verrières, onde deixava tanto amor, não pensou mais senão na felicidade de conhecer uma capital, uma grande praça de guerra como Besançon. 

Durante essa curta ausência de três dias, a sra. de Rênal padeceu uma das mais cruéis decepções do amor. Sua vida era sofrível, havia entre ela e a extrema infelicidade aquele último encontro que teria com Julien. Ela contava as horas, os minutos que a separavam dele. Finalmente, durante a noite do terceiro dia, ouviu de longe o sinal combinado. Depois de atravessar mil perigos, Julien apareceu diante dela. 

A partir de então ela só teve um pensamento, esta é a última vez que o vejo. Em vez de responder ao ardor de seu amante, comportou-se quase como um cadáver. Se forçava-se a dizer-lhe que o amava, era de um jeito tão desastrado que podia parecer o contrário. Nada pôde afastá-la da ideia cruel da separação eterna. O desconfiado Julien acreditou, por um momento, já estar esquecido. Queixou-se, mas suas palavras foram acolhidas apenas por lágrimas que corriam em silêncio e por apertos de mão quase convulsivos. 

– Mas, santo Deus! Como quer que eu acredite em você?, respondia Julien aos frios protestos da amiga. Você mostraria cem vezes mais amizade sincera à sra. Derville, a uma simples conhecida. 

Petrificada, a sra. de Rênal não sabia o que responder: 

– É impossível ser mais infeliz... Acho que vou morrer... Sinto meu coração gelar... 

Foram as respostas mais longas que ele pôde obter dela. 

Quando a aproximação do dia tornou a partida necessária, as lágrimas da sra. de Rênal cessaram completamente. Ela o viu atar uma corda à janela, sem dizer nada, sem responder a seus beijos. Em vão Julien lhe dizia: 

– Eis-nos chegados ao estado que tanto desejou. Doravante viverá sem remorsos. Quando seus filhos tiverem uma indisposição, não mais pensará que estão morrendo. 

– Sinto que você não possa beijar Stanislas, disse ela friamente. 

Julien sentiu-se profundamente ferido pelos beijos sem calor daquele cadáver vivo; não pôde pensar noutra coisa durante várias léguas. Sua alma estava magoada e, antes de cruzar a montanha, enquanto pôde avistar o campanário de Verrières, voltou-se várias vezes para trás.



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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)
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Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 1)
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