terça-feira, 20 de agosto de 2019

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (8)

 Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1


1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE




VIII – DA MESMA PARA A MESMA





Temos como professor um pobre refugiado forçado a esconder-se por causa de sua participação na revolução que o duque de Angoulême foi vencer, sucesso ao qual devemos belas festas. Embora liberal e, sem dúvida, burguês, esse homem me interessou: imaginei que ele fora condenado à morte. Fi-lo conversar para conhecer seu segredo; ele, porém, é de uma taciturnidade castelhana, altivo como se fosse Gonçalvez de Córdoba, [119] e, não obstante, de uma doçura e paciência angelicais; sua altivez não é imponente como a de miss Griffith, é toda interior; ele faz com que se tribute o que lhe é devido, ao nos prestar suas cortesias, e afasta-nos de si pelo respeito com que nos trata. Meu pai acha que há muito de grão-senhor no sr. Henarez, que, entre nós, ele chama de dom Henarez, por gracejo. Quando, faz poucos dias, eu tomei a liberdade de chamá-lo dessa maneira, ele, que conserva os olhos sempre baixos, ergueu-os para mim e dirigiu-me um olhar fulgurante, que me deixou embaraçada; tem indiscutivelmente os mais belos olhos do mundo. Perguntei-lhe se o havia magoado de qualquer forma e ele então respondeu-me na sua sublime e grandiosa língua espanhola: 

— Senhorita, aqui venho somente para ensinar-lhe o espanhol. 

Senti-me humilhada e corei; ia replicar-lhe com alguma boa impertinência, quando me lembrei do que nos dizia nossa querida mãe em Deus, e então respondi: 

— Se o senhor tiver de me fazer qualquer observação seja no que for, ficar-lhe-ei obrigada. 

Ele estremeceu, o sangue lhe coloriu as faces azeitonadas, e respondeu com voz suavemente comovida: 

— A religião deve ter-lhe ensinado, melhor do que eu o poderia fazer, a respeitar os grandes infortúnios. Se eu fosse Don na Espanha e tudo tivesse perdido com o triunfo de Fernando VII, seu gracejo seria uma crueldade; mas se eu nada mais sou do que um pobre professor de línguas, não lhe parece isso um sarcasmo atroz? Nem uma coisa nem outra são dignas de uma senhorita nobre. 

Tomei-lhe a mão e disse: 

— Invoco, pois, também a religião para pedir-lhe que esqueça minha falta. 

Ele curvou a cabeça, abriu meu Dom Quixote e sentou-se. Esse pequeno incidente perturbou-me mais do que todos os cumprimentos e frases por mim recolhidos no sarau em que fui mais cortejada. Durante a lição, eu olhava atentamente para aquele homem, que se deixava examinar sem saber: nunca ergue os olhos para mim. Descobri que o nosso professor, ao qual dávamos quarenta anos, é moço; não deve ter mais de vinte e seis a vinte e oito anos. Minha governanta, a quem eu o destinara, fez-me notar a beleza dos seus cabelos negros e dos seus dentes, que são como pérolas. Quanto a seus olhos, são ao mesmo tempo veludo e fogo. E é tudo, pois é pequeno e feio. Tinham-nos descrito os espanhóis como pouco asseados; ele, porém, é extremamente cuidadoso da sua pessoa e tem as mãos mais alvas que o rosto; seu dorso é um pouco curvado; a cabeça é enorme e de um feitio singular; sua fealdade, aliás de expressão bastante inteligente, é agravada por sinais de varíola, que lhe picaram o rosto; sua fronte é muito proeminente, as sobrancelhas se juntam e são muito bastas, dando-lhe um ar duro, que afugenta as almas. Tem a fisionomia casmurra e doentia que caracteriza as crianças destinadas a morrer e que só deveram a vida a cuidados infinitos, como a irmã Marta. Enfim, como dizia meu pai, tem a cara miúda do cardeal Ximenez. [120] Meu pai não o aprecia, sente-se constrangido perto dele. As maneiras de nosso professor têm uma dignidade natural que parece inquietar o querido duque, que não suporta a superioridade sob nenhuma forma, na sua vizinhança. Assim que meu pai souber o espanhol, partiremos para Madri. Dois dias após a lição que eu recebera de Henarez, eu disse a este, para manifestar-lhe uma espécie de gratidão: 

— Não tenho dúvidas de que o senhor tenha deixado a Espanha em consequência de acontecimentos políticos: se meu pai for para lá, como parece, estaremos em condições de lhe prestar alguns serviços e de obter seu perdão, no caso em que se ache condenado. 

— A ninguém é dado o poder de me prestar serviços — respondeu-me. 

— Como, senhor? — disse-lhe eu — Diz isso por não querer aceitar nenhuma proteção, ou por impossibilidade? 

— Por uma e outra coisa — disse, inclinando-se e com um acento que me impôs silêncio. 

O sangue de meu pai ferveu-me nas veias. Aquela soberba revoltou-me, e deixei ali o sr. Henarez. Entretanto, querida, há algo de belo em nada querer dos outros. “Ele não aceitaria nem mesmo nossa amizade”, pensei comigo mesma, enquanto conjugava um verbo. Nesse ponto, detive-me e disse-lhe meu pensamento em espanhol. Henarez respondeu-me muito cortesmente que os sentimentos demandavam uma igualdade que não existia no caso e que, portanto, a questão era inútil. 

— Refere-se à igualdade na reciprocidade dos sentimentos ou na diferença de categoria social? — perguntei, para tentar fazê-lo sair da sua gravidade, que me impacientava. 

Ele tornou a erguer seus temíveis olhos, e eu baixei os meus. Esse homem, querida, é um enigma indecifrável. Parecia perguntar-me se minhas palavras eram uma declaração: havia no seu olhar uma felicidade, uma altivez, uma angústia de incerteza que me apertaram o coração. Compreendi que esse coquetismo, que em França é estimado no seu justo valor, para um espanhol adquiria uma significação perigosa, e um tanto atoleimada recolhi-me à minha concha. Ao terminar a lição, ele saudou-me, dirigindo-me um olhar cheio de humildes súplicas e que dizia: “Não se divirta à custa de um infeliz”. Esse súbito contraste com seus modos graves e dignos causou-me uma viva impressão. 

Não é uma coisa horrível de pensar e de dizer? Pareceu-me haver tesouros de afeição nesse homem.





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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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[119] Gonçalvez de Córdoba: general espanhol (1445-1515), herói da Reconquista. 
[120]Cardeal Ximenez: Ximenez de Cisneros (1436-1517), arcebispo de Toledo. 

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