segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Segundo - A Queda, VII — O interior do desespero

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Segundo - A Queda



VII —O interior do desespero 



Vamos tentar descrevê-lo. 

É indispensável que a sociedade olhe para estas coisas visto serem obra sua. 

Jean Valjean era ignorante, mas não imbecil. Ardia ainda naquele homem a luz natural. O infortúnio, que traz consigo um tal ou qual clarão, aumentou a pouca claridade que havia naquele espírito. Não obstante o azorrague, a grilheta, o calaboiço, o trabalho incessante, o sol ardente das galés, a tarimba dos forçados, Jean Valjean concentrou-se na sua consciência e refletiu. 

Constituíra-se em tribunal e principiou por julgar-se a si próprio. 

Reconheceu então que não era um inocente injustamente punido. Confessou a sós consigo que cometera uma ação violenta e repreensível; que talvez lhe não recusassem aquele pão, se o vesse pedido; que, em todo o caso, sempre lhe fora melhor esperá-lo, ou da compaixão ou do trabalho; que não era, em suma, razão definitiva e sem réplica dizer-se: não é possível a espera quando se morre de fome. Primeiro, porque é raríssimo que alguém morra literalmente à fome; segundo, porque, feliz ou infelizmente, o homem é conformado de tal modo, que pode padecer muito e por espaço de muito tempo, sem morrer, quer sica, quer moralmente; que devia, portanto, ter sofrido com resignação, o que mesmo teria sido melhor para aquelas pobres criancinhas; que fora por certo um ato de loucura nele, mesquinha criatura impotente, querer arcar com a sociedade a peito descoberto e imaginar que o roubo o podia tirar da miséria; que, finalmente, era má porta para sair da miséria aquela por onde se entra na infâmia e concluiu que procedera mal. 

Depois fez a si próprio as seguintes perguntas:

Fora ele o único que procedera mal na sua fatal história? Antes de tudo, não era uma coisa grave que um trabalhador como ele não vesse em que se ocupar; que um homem laborioso como ele não vesse que comer? Em segundo lugar, confessada a culpa comeda, não fora bárbaro e desmesurado o castigo infligido? Não houvera maior abuso da parte da lei na pena do que da parte do criminoso na culpa? Não houvera excesso de peso no prato da balança que contém a expiação? O excesso do castigo não seria a aniquilação do delito e não daria em resultado inverter as situações, substituindo a culpa do delinquente pela culpa da repressão, fazendo do criminoso a vítima e do devedor credor e pondo definitivamente o direito da parte daquele mesmo que o violara? Aquele castigo, complicado com sucessivos agravos por tentavas de evasão, não viria a ser, por último, um atentado do mais forte contra o mais fraco, um crime da sociedade contra o indivíduo, crime que recomeçara todos os dias, crime que durara dezanove anos? 

Perguntou a si próprio se a sociedade humana podia ter o direito de fazer sofrer igualmente a todos os seus membros, num caso a sua desarrazoada imprevidência, noutro a sua previdente inexorabilidade, e de sequestrar para sempre a liberdade a um infeliz entre uma falta e um excesso: falta de trabalho, excesso de castigo. Se não era exorbitante que a sociedade assim tratasse injustamente os seus membros mais mal contemplados na repartição dos bens que dá o acaso, e, por conseguinte, mais dignos de consideração.

Propostas e resolvidas estas questões, julgou a sociedade e condenou-a. Condenou-a ao seu ódio. Tornou-a responsável pela sorte que experimentava e pareceu-lhe que talvez não hesitasse em pedir-lhe contas algum dia. A si próprio afirmou que não havia equilíbrio entre o dano que causara e o dano que lhe causavam; concluiu, por fim, que o seu castigo não era, na verdade, uma injustiça, mas uma incontestável iniquidade. 

A cólera pode ser louca e absurda; pode o homem sentir-se irritado sem forte motivo para isso, mas a indignação tem sempre por base uma razão poderosa. Jean Valjean sentia-se indignado. 

Além disso, a sociedade humana nunca lhe fizera senão mal; nunca lhe conhecera senão o aspecto irado, chamado por ela a sua justiça, que mostra àqueles a quem fere. Nunca homem algum se achegara a ele senão para o maltratar. O contato com eles fora-lhe sempre motivo de alguma dor. Nunca mais, depois da sua infância, morta sua mãe, perdida sua irmã, nunca mais encontrara uma palavra amiga, um olhar benévolo. De sofrimento em sofrimento, chegara a pouco e pouco à convicção de que a vida é uma guerra, guerra em que o vencido era ele. A única arma que possuía era o seu ódio. Resolveu afiá-la nas galés e levá-la consigo quando dali saísse. 

Havia em Toulon uma escola para os forçados, na qual se ensinava o essencial a alguns daqueles desgraçados que tinham boa vontade. Jean Valjean foi do número desses homens Frequentou a escola tendo quarenta anos e aprendeu a ler, a escrever e a contar. Sentiu que desenvolvendo a inteligência, fortificava o seu ódio. Em certos casos, a instrução e a luz podem servir para desenvolver a maldade.

Triste é dizê-lo, mas depois de ter julgado a sociedade que o fizera desgraçado, julgou a Providência, que estabelecera a sociedade e condenou-a também. 

Assim, durante aqueles dezenove anos de tormentos e escravidão, aquela alma elevara-se e precipitara-se ao mesmo tempo. Por um lado recebera luz, pelo outro as trevas. 

Jean Valjean não era dotado de maus instintos. Quando entrou para as galés, ainda não tinha perdido a natural bondade. Lá condenou a sociedade e reconheceu que se tornara mau; condenou a Providência e tornava-se ímpio. 

Não podemos continuar sem refletir um momento. 

Em verdade, a natureza humana transforma-se assim tão completamente? O homem que saiu bom das mãos de Deus pode tornar-se mau entre as mãos do homem? A alma pode ser integralmente transformada pelo destino e tornar-se má, sendo mau esse destino? O coração pode tornar-se disforme e contrair enfermidades incuráveis sobre a pressão de um desproporcionado infortúnio, como a coluna vertebral debaixo de uma abóbada extremamente baixa? Acaso não existe na alma de qualquer homem, acaso não existia na alma de Jean Valjean em particular, uma centelha primitiva, um elemento divino, incorruptível neste mundo, imortal no outro, que pode desenvolver o bem, acender e fazer fulgurar esplendorosamente e que jamais o mal pode extinguir inteiramente? Graves e obscuras perguntas, à última das quais qualquer fisiologista talvez respondesse negativamente e sem hesitação, se tivesse visto em Toulon, nas horas de repouso, que para Jean Valjean eram horas de melancólica meditação, sentado, de braços cruzados, em cima de algum dos poiais que servem para a amarração dos navios, com a extremidade inferior da grilheta suspensa da abertura do bolso, para não andar com ela de rastos, aquele forçado taciturno, grave, silencioso e pensativo, pária das leis que contemplava os homens com aspecto irado, condenado pela civilização, que contemplava o céu com severidade. 

Por certo que o fisiologista teria visto naquele homem uma miséria irremediável; teria lamentado aquele enfermo produzido pela lei, mas nem sequer tentaria um tratamento; desviaria os olhos das cavernas que entrevisse naquela alma, e, como Dante fez da porta do inferno, riscaria daquela existência a palavra que o dedo de Deus, apesar de tudo, escreveu na fronte detodo o homem: «Esperança!» 

Seria este estado da alma de Jean Valjean, tão perfeitamente claro para ele, como nós diligenciamos que o fosse para quem nos lê? Jean Valjean veria acaso distintamente após a sua formação e veria distintamente à medida que se tinham ido formando, todos os elementos de que se compunha a sua miséria moral? Teria esse homem rude e ignorante claro conhecimento da sucessão de ideias, mediante a qual gradualmente subira e descera até aos lúgubres aspectos que eram, havia já tantos anos, o interior horizonte do seu espírito? Teria perfeita consciência de quanto se passara nele e todas as suas sensações? 

É o que não ousaremos dizer; é até o que não acreditamos. Jean Valjean era demasiadamente ignorante para que, mesmo após tão grandes infortúnios, se não desse na sua alma um grande vácuo. Havia ocasiões em que nem ele próprio sabia ao certo o que experimentava. Jean Valjean jazia no meio das trevas, sofria no meio das trevas, odiava no meio das trevas. Vivia por hábito no meio desta escuridão, às apalpadelas como um cego ou como um homem que sonha. 

De tempos a tempos, originado nele ou produzido por uma causa exterior, era de súbito acometido por um acesso de cólera e que era como um requinte de sofrimento, um pálido e rápido fulgor que lhe iluminava todas as sinuosidades da alma, fazendo repentinamente despontar em torno dele para qualquer parte que lançasse a vista, os pavorosos precipícios e sombrias perspectivas do seu destino, ao clarão de uma medonha luz.

Extinto esse fulgor, envolvia-o de novo a escuridão e nem ele próprio sabia onde se encontrava. 

O característico das punições desta natureza, nas quais domina o inexorável, isto é, o elemento embrutecedor, é transformarem gradualmente, por uma espécie de estúpida transfiguração, um homem num animal perigoso. Algumas vezes num animal feroz. Bastariam para provar esta singular ação exercida pela lei sobre a alma humana, as necessárias e pertinazes tentavas de evasão levadas a efeito por Jean Valjean Ele renovaria essas tentativas, tão completamente ineficazes e tolas, tantas vezes quantas se lhe oferecesse ensejo para as realizar,sem refletir, por um só instante, nem no resultado nem nas experiências já feitas. Irrompia impetuoso, como o lobo que avista a janela aberta. Dizia-lhe o instinto: «Foge!» O raciocínio ter-lhe-ia decerto dito: «Não fujas!» Porém, diante de tão forte tentação, a razão desaparecia e ficava só o instinto. A besta era quem agia. Depois agarravam-no outra vez e as novas severidades que lhe infligiam apenas conseguiam torná-lo ainda mais bravio. 

Uma particularidade se dava nele que não devemos omitir. 

Jean Valjean era dotado de uma força física, a respeito da qual nenhum dos seus companheiros das galés o igualava. No trabalho de alar um cabo ou de puxar um cabrestante, valia por quatro homens. Levantava e conduzia muitas vezes às costas enormes pesos, substituindo quando era preciso o instrumento chamado «crie», que outrora tinha o nome de «orgueil», donde, seja dito de passagem, tomou nome a rua de Montorgueil. Em razão disto, os seus camaradas alcunharam-no de Jean-le-Cric. Uma ocasião, andando a fazer-se alguns reparos na varanda da casa da câmara de Toulon, uma das admiráveis cariátides de Puget que sustentam a varanda deslocou-se e esteve quase a vir a terra. Jean Valjean, que se encontrava próximo, deitou os ombros à cariátide e sustentou-a sozinho enquanto os outros operários não acudiram.

A sua destreza ultrapassava ainda o vigor de que era dotado. Certos forçados, perpétuos sonhadores de evasões, chegam a fazer da força e da destreza combinadas, verdadeira ciência. É a ciência dos músculos. Uma completa e misteriosa estatística é quotidianamente posta em prática pelos presos, eternos invejosos dos pássaros e das moscas. Trepar por uma vertical e achar pontos de apoio onde apenas se via uma saliência, era um brinquedo para Jean Valjean. Dado o ângulo de uma parede, com a tensão das costas e das curvas das pernas, com os cotovelos e os calcanhares fincados nas asperezas da pedra, içava-se como por magia à altura de um terceiro andar. As vezes subia deste modo até ao telhado da prisão.

Jean Valjean falava pouco e nunca se ria. Era necessário uma comoção extraordinária para lhe arrancar, uma ou duas vezes por ano, aquele lúgubre riso do forçado, que é como que o eco de um rir infernal. Ao ver a expressão habitual do seu rosto, dir-se-ia que aquele homem trazia de contínuo os olhos fitos em alguma pavorosa visão. Andava, com efeito, absorto. 

Por entre as confusas percepções de uma natureza incompleta e de uma inteligência atrofiada, Jean Valjean conhecia vagamente que pesava sobre ele o que quer que fosse de monstruoso. No meio da obscura e desmaiada penumbra em que se arrastava, de cada vez que voltava a cabeça e tentava elevar os olhos, via com terror misturado de raiva, surgir, erguer-se, elevar-se em alturas incomensuráveis, com horríveis escarpamentos, uma espécie de pavoroso montão de coisas, leis, preconceitos, homens e factos, cujos contornos mal distinguia, cuja aglomeração o amedrontava, e que não era nada mais do que essa maravilhosa pirâmide a que nós chamamos civilização. 

No meio desse conjunto desigual e disforme, divisava aqui e além, ora próximo a ele, ora longe e em alturas inacessíveis, algum grupo, alguma saliência iluminada por um clarão mais vivo; aqui, por exemplo, o guarda-chusma com o seu azorrague, além o gendarme com o seu sabre, mais ao longe o arcebispo mitrado, mais acima ainda e no meio de uma como auréola resplandecente, o imperador coroado e coruscante. Parecia-lhe que esses longínquos esplendores, em vez de dissipar as trevas que o circundavam, as tornavam mais carregadas e fúnebres.

Tudo isso, leis, preconceitos, factos, homens, cruzava-se numa região superior, consoante o misterioso e complicado movimento que Deus imprime à civilização, caminhando por cima dele e esmagando-o com o que quer que era de serena crueldade e inexorável indiferença. Almas despenhadas no abismo do mais intenso infortúnio, homens infelizes perdidos no mais fundo desses limbos, para os quais ninguém deita os olhos, os réprobos da lei sentem sobre si todo o peso da sociedade humana, tão horrível para os que se acham de fora, tão terrível para os que se acham por baixo. 

Vítima desta situação, Jean Valjean meditava. De que natureza poderiam ser as suas cogitações? 

Se o grão de milho debaixo da mó pensasse, pensaria, sem dúvida, o que Jean Valjean pensava. 

Todas estas coisas, realidades cheias de espectros, fantasmagorias cheias de realidade, tinham, por último, criado nele certo estado interior quase inexplicável. 

Às vezes, no meio da sua tarefa de forçado, parava e punha-se a meditar. E então, a sua razão, conjuntamente mais aperfeiçoada e mais desorientada do que noutro tempo, revoltava-se contra o destino. Parecia-lhe absurdo quanto lhe tinha acontecido, afigurava-se-lhe impossível quanto o rodeava. Dizia no recôndito do seu pensamento: «Isto é um sonho». E olhava para o guarda-chusma que estacionava de pé a pequena distância dele; o guarda-chusma afigurava-se-lhe um fantasma; e, de repente, o fantasma descarregava-lhe uma chicotada. 

Para ele mal existia a natureza visível. Não se ficaria muito longe da verdade, dizendo-se que para Jean Valjean não havia sol, nem amenos dias de Estio, nem céu límpido, nem frescas madrugadas de Abril. A única luz que, de ordinário, lhe iluminava a alma era um como clarão baço coado por ferros. 

Resumindo, finalmente, o que pode ser resumido e traduzido por resultados positivos quanto acabamos de expor, limitar-nos-emos a dizer, que em dezanove anos, Jean Valjean, o inofensivo podador de Taverolles, o temível forçado de Toulon, tornara-se capaz, graças ao modo como as galés o tinham amoldado, de duas espécies de más ações: primeiro de uma má ação, rápida, irrefletida, filha do primeiro movimento, inteiramente instintiva, espécie de represálias pelo mal sofrido; segundo, de uma má ação, grave, considerada pesada em consciência e meditada com as falsas ideias que pode dar tão grande infortúnio. As suas premeditações passavam pelas três fases sucessivas, que só as naturezas de certa têmpera são capazes de percorrer: raciocínio, vontade, obstinação Tinha por instigadores a habitual indignação, a amargura da alma, o profundo conhecimento das iniquidades sofridas, a reação mesmo contra os bons, contra os inocentes e os justos, se é que os havia.

A origem e o alvo de todos os seus pensamentos era o ódio contra a lei humana, ódio que, não sendo sustado no seu desenvolvimento por algum acaso providencial, se transforma, chegado certo tempo, em ódio contra a sociedade, depois em ódio contra a humanidade, em seguida em ódio contra a criação, e se traduz por um vago, incessante e brutal desejo de fazer mal, seja a quem for, a um ser animado qualquer. 

A vista disto, não era, pois, sem razão, que o passaporte classificava Jean Valjean de «homem perigosíssimo». De ano para ano, aquela alma fora-se dissecando cada vez mais, lenta mas fatalmente. Para corações insensíveis, olhos enxutos Quando saiu das galés, havia dezanove anos que Jean Valjean não vertera uma lágrima.



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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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