quinta-feira, 22 de agosto de 2019

O Brasil Nação - v2: § 66 – Abolição e República - Manoel Bomfim

Manoel Bomfim


O Brasil Nação volume 2




SEGUNDA PARTE 
TRADIÇÕES



À glória de
CASTRO ALVES
Potente e comovida voz de revolução


capítulo 8
A Revolução Republicana



§ 66 – Abolição e República 




Em face da vitória abolicionista a 13 de maio, exclamou Cotegipe: Agora, a República... O conceito valeu por uma previsão, quando, no entanto, não o ditou nenhuma perspicácia. O velho conservador continuava insensível à realidade, principalmente naquele momento, em que se lhe movia a língua pelo valetudinário despeito. Cotegipe quis dizer que, abandonando os interessados na manutenção da escravidão, o trono perdia o seu sustentáculo, e tinha de cair ao primeiro embate dos republicanos, E, desenvolvendo o conceito, os sorrateiros monárquicos, depois, virão repetir que, por ser abolicionista, o trono se sacrificou... que a República brasileira resultou do despeito dos escravocratas contra o trono que os desamparou... Sob uma tênue sombra de verdade, tais juízos consagram os mais afrontosos ultrajes ao bom senso e à exatidão. De fato, o trono acreditava dever sustentar os interesses dos senhores de escravos, como interesses conservadores e de ordem, e sacrificou-se, tentando ampará-los, mantendo a nefanda instituição, quando, além de crime, já era estupidez uma tal política. Não há quem contemple a nossa história desapaixonadamente, e não chegue a esta conclusão: o Brasil foi o último país a extinguir a escravidão por causa do Estado bragantino que se incluiu nos seus destinos. Não há dúvida de que a República se liga diretamente à Abolição; mas toda a dependência entre os dois sucessos está em que a República aproveitou a ruína do regime monárquico, abatido e desarticulado pela vitória da revolução abolicionista, e que – todos os republicanos da propaganda eram abolicionistas. A torva politicagem do Império só teve sinceridade para ser escravocrata. A única luta séria em que se empenhou foi contra os abolicionistas, luta que era, finalmente, a do próprio regime a defender-se. Nessa luta, o regime esgotou as suas poucas energias morais, ao mesmo tempo que se mostrou a nu, na miséria dos seus processos e princípios. E, vencido, ficou à mercê dos vencedores imediatos, esse Exército que fez a Abolição e fez a República. Para inteira demonstração, basta rever o memorável desfecho: estimulados e conduzidos pelos abolicionistas, desiludidos dos recursos legais, os milhares de escravos levantam-se e embrenham-se nas selvas da serrania; quase inconsciente, quando já tinha às costas a questão – as questões militares, o governo imperial insiste em não ceder, e ordena às forças militares que vão capturar os escravos levantados. O Exército, levado pela ambiência, que é a própria alma da nação, nega-se... Atônitos, os estadistas do regime e da escravidão correm a atamancar um projeto de lei em que se acobertem, na esperança de evitar que a vitória da revolução os incompatibilize com o gozo do poder, e para que este não fique nas mãos dos triunfadores... Foi uma questão de meses: transigindo com a derrota, o regime imperial aluiu em todas as juntas, e, palanque desmantelado, aí ficou, arrastado pelo tempo, até o primeiro pretexto – para que os vencedores de ontem viessem cobrar o disputado triunfo. 

Nem outra significação se pode dar àqueles sucessos. Depois da legislação iníqua e falha de 1871, em seguida a resistência cega de 1879-87, aceitar, de tal modo, a abolição completa da escravidão, equivaleu, para o Império, o reconhecer a sua política anterior como injusta, impatriótica, cruel, criminosa, e, sobretudo, incapaz de atender às legítimas necessidades do país... Ora, um regime que se assim se confessa, não pode prevalecer em face dos que o obrigaram à confissão. Aceitando o papel vergonhoso de subscreverem a reforma a que obstinadamente se opuseram, os políticos do Império patentearam uma tal insuficiência de fé nos princípios que defendiam, e tanta falta de lealdade aos tempos de onde vinham, que mataram todas as poucas convicções monárquicas ainda subsistentes, dissolvendo os já frouxos laços do regime em que viviam. Nas suas mãos, quando impatrioticamente resistiam a palpitantes anelos nacionais, quando torpemente aceitaram ser, imediatamente depois, os trôpegos e insinceros realizadores da Abolição, nas suas mãos, se esboroou o trono, que, sem tais desarcetadas misérias, teria ainda vivido decênios, talvez. Liquidada a revolução abolicionista, cuja vitória foi levada pelo governo ao Exército, nada mais restava como prestígio do Império: a mesma voz dos soldados que se negaram a apanhar os escravos em Cubatão intimou de despejo a Monarquia. Não há dúvida de que, sem a vitória dos revolucionários abolicionistas, os republicanos, todos – antigos abolicionistas, não teriam tentado a jornada de 15 de novembro. E, em face de todos esses fatos, vêm, os que não tiveram brio para defender as instituições a que se deram, e afirmam: que a República foi efeito da reação escravocrata, contra o trono liberal, e que, liberal, preferiu sacrificar-se!... 

A Abolição foi de ontem; vivem ainda alguns de seus promotores, e muitos dos que a viram realizar-se, e todos sabem: ela resultou de uma desinteressada e impávida campanha, levada pela imprensa, realizada em comícios, e logo comprovada em atos – as multiplicadas liberações de escravos, conferências, defesas diretas de vítimas... Estrofes, artigos de fundo, discursos, meetings... foram as armas na luta reiterada e indefectível, para a imposição revolucionária da redenção absoluta dos cativos. E o trono permanecia à parte de tudo isto, diretor supremo da futricagem parlamentar, em que se sacrificaria o projeto Dantas, antes hostil à Abolição, até que, nas vésperas da vitória, os imperiais poetetes lhe trouxeram as suas versalhadas. Que tem, pois, de comum, a realeza com essa campanha revolucionária?... Imaginemos que o trono se opõe à Abolição, nos dias de 1888: o Exército que, em 1889, o deu por terra, teria feito ali mesmo a Abolição e a República. E, agora, se os fatos não bastam para demonstração, temos os nomes. Toda a imprensa que concorreu para a vitória da Abolição, d’O Globo à Gazeta da Tarde, passando pela Gazeta de Notícias, foi, ao mesmo tempo, demolidora da monarquia. Se destacamos as pessoas, ainda é mais expressiva a concordância – abolicionista-republicano. Saldanha Marinho, republicano desde 1869, redator do célebre manifesto, comparece como personalidade de destaque às festas onde se consagra o poeta dos escravos, e é o presidente de honra da primeira sociedade brasileira contra a escravidão. Não que se deixe ficar – a esperar pelo emancipacionismo de Nabuco, em torno de quem se organiza a mesma sociedade. Bem antes, quando ele ataca os célebres liberais do Império, é para mostrar-lhes a sua insuficiência, por nada terem feito pela Abolição. Depois, quando pela agitação em prol do projeto Dantas, ele, Saldanha, é um dos abolicionistas a achar escasso o mesmo projeto, e escreve um opúsculo para defender a extinção imediata da escravidão. Usou os próprios termos usados na lei de 13 de maio: “Declare-se extinta a escravidão; é o único caminho... Nenhum brasileiro que ame a sua pátria pode deixar de ser pela abolição absoluta... Só a inépcia e a improbidade administrativa podem sustentá-la...” Nos outros chefes, a mesma coerência de doutrina – liberdade política – liberdade civil. Em 1878, por iniciativa dos republicanos, é apresentado e votado um projeto de lei, proibindo a entrada de escravos na província de São Paulo, ao mesmo tempo que criava uma taxa de conto de réis, por inscrição em matrícula de escravos adquiridos. O presidente da província nega sanção, e o projeto se repete sucessivamente. Pouco depois, vêm à Câmara os republicanos eleitos deputados; vota-se o projeto Dantas e só Antero Botelho, de Minas, por doente, não comparece; os outros, Campos Sales à frente, votam pela Abolição, com a declaração de que – assim se incluíam com os liberais ministerialistas porque a bandeira da República não podia cobrir o reduto da escravidão. Antes, já o intrépido propagandista da República, João Cordeiro, com igual atividade pratica o abolicionismo, para ser um dos libertadores da sua província. Quintino, como é republicano, é obreiro da Abolição (campanha do País). E, assim: Ubaldino do Amaral, Júlio de Castilho, Aníbal Falcão, Martins Junior, Luiz Murat, Cassal... foram outros tantos lutadores do abolicionismo. A Escola Militar, donde vieram Benjamim Constant, Lauro Muller, Barbosa Lima, Zerzedelo Corrêa... era irmã gêmea daquela Escola de Tiro, onde, sob a direção de Sena Madureira, foi festivamente recebido o jangadeiro Nascimento, herói da libertação do Ceará. Pode-se mesmo dizer que ali nasceu a questão militar, que fez ruir o Império. Assim entrelaçadas, Abolição e República, chega a ser inépcia na inexatidão pretender que 15 de novembro foi obra de escravocratas contra o trono. Aponta-se um deputado que por despeito se declarou republicano. Apagado o caso do subsecundário deputado Penido, escravocrata antes, desprezado ali mesmo, esquecido depois, o que vale uma exceção destas contra toda a sequência dos fatos?... Quando o grande Luiz Delfino, republicano e abolicionista, veio consagrar com o seu poema a tardia redenção dos cativos, ele, que o podia fazer, irmanou numa só liberdade, as duas redenções:


........................ rompa em breve um grito
Da nossa rude voz, dura como o granito,
Retemperada aos sóis, na calma dos sertões...
................................
Que arranque o servo à gleba, ao sono às multidões,
Então, como hoje, em louca efervescência
Far-se-á de uma vez só a nossa independência,
Teremos liberdade inteira, de uma vez;
E em todo o continente americano, um bravo
Como o que hoje soou, libertado do escravo
Soará amanhã libertado dos reis!
................................




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"Morreu no Rio aos 64 anos, em 1932, deixando-nos como legado frases, que infelizmente, ainda ecoam como válidas: 'Somos uma nação ineducada, conduzida por um Estado pervertido. Ineducada, a nação se anula; representada por um Estado pervertido, a nação se degrada'. As lições que nos são ministradas em O Brasil nação ainda se fazem eternas. Torcemos para que um dia caduquem. E que o novo Brasil sonhado por Bomfim se torne realidade."


Cecília Costa Junqueira



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Bomfim, Manoel, 1868-1932  
                O Brasil nação: vol. II / Manoel Bomfim. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 392 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 31).


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