quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Mundo, Ou o Que Falta ao Rico (XXVI)

Livro I 

A verdade, a áspera verdade. 
Danton 


Capítulo XXVI

O MUNDO, OU O QUE FALTA AO RICO




Estou só na terra, ninguém se digna pensar em mim. Todos os que vejo fazer fortuna têm uma impudência e uma dureza de coração que não sinto em mim. Eles me odeiam por causa de minha bondade fácil. Ah! Em breve morrerei, seja de fome, seja da infelicidade de ver homens tão duros. 

YOUNG




APRESSOU-SE A ESCOVAR seu hábito e a descer, estava atrasado. Um subdiretor repreendeu-o severamente; em vez de procurar justificar-se, Julien cruzou os braços sobre o peito: 

Peccavi, pater optime (pequei, confesso minha falta, ó meu pai), disse com um ar contrito. 

Esse começo teve um grande sucesso. Os mais espertos dentre os seminaristas viram que ali estava um homem que não fazia parte dos elementos comuns do ofício. Quando chegou a hora do recreio, Julien foi o objeto da curiosidade geral. Mas encontraram nele apenas reserva e silêncio. Segundo as máximas que se fizera, ele considerou seus trezentos e vinte e um colegas como inimigos, dos quais o mais perigoso era o abade Pirard. 

Poucos dias depois, Julien precisou escolher um confessor, apresentaram-lhe uma lista. 

Ora! Santo Deus! Por quem me tomam?, disse a si mesmo; creem que não compreendo o que falar quer dizer? E escolheu o abade Pirard. 

Sem que suspeitasse, esse procedimento era decisivo. Um seminarista muito jovem, natural de Verrières, que desde o primeiro dia havia se declarado seu amigo, disse-lhe que, se tivesse escolhido o sr. Castanède, o subdiretor do seminário, teria agido talvez com mais prudência. 

– O padre Castanède é inimigo do sr. Pirard, que suspeitam de jansenismo, acrescentou o jovem seminarista inclinando-se para seu ouvido. 

Todas as primeiras atitudes de nosso herói, que se julgava tão prudente, foram, como a escolha do confessor, desatinos. Presumindo-se um homem de imaginação, ele tomava suas intenções por fatos, e acreditava-se um hipócrita consumado. Sua loucura chegava ao ponto de censurar seus sucessos nessa arte da fraqueza. 

Infelizmente, é minha única arma!, dizia a si mesmo. Numa outra época, é por ações eloquentes diante do inimigo que eu teria ganho meu pão. 

Satisfeito com sua conduta, Julien observava a seu redor; em toda parte encontrava a aparência da mais pura virtude. 

Oito ou dez seminaristas exalavam santidade e tinham visões como Santa Teresa e São Franscisco quando recebeu os estigmas no monte Averno, nos Apeninos. Mas era um grande segredo, que os amigos deles ocultavam. Esses pobres rapazes visionários estavam quase sempre na enfermaria. Uma centena de outros reuniam a uma fé robusta uma infatigável aplicação. Trabalhavam a ponto de ficarem doentes, mas sem aprenderem muita coisa. Dois ou três distinguiam-se por um talento real, entre os quais um chamado Chazel; mas Julien sentia antipatia por eles, e vice-versa. 

O resto dos trezentos e vinte e um seminaristas compunha-se apenas de indivíduos grosseiros, não muito seguros de compreender as palavras latinas que repetiam ao longo da jornada. Quase todos eram filhos de camponeses e preferiam ganhar seu pão recitando algumas palavras em latim do que cavando a terra. Foi com base nessa observação que, já nos primeiros dias, Julien previu para si rápidos sucessos. Em todo serviço é preciso haver pessoas inteligentes, dizia-se, pois afinal há um trabalho a fazer. Sob Napoleão, eu teria sido sargento; entre esses futuros padres, serei vigário-geral. 

Todos esses pobres-diabos, acrescentava, trabalhadores braçais desde a infância, viveram de coalhada e pão preto até chegarem aqui. Em suas choupanas, só comiam carne cinco ou seis vezes ao ano. Como os soldados romanos que encontravam na guerra um tempo de repouso, esses grosseiros camponeses estão encantados com as delícias do seminário. 

No olhar apagado deles, Julien lia tão somente a necessidade física satisfeita após a refeição, e o prazer físico esperado antes da refeição. Tais eram as pessoas no meio das quais era preciso distinguir-se; mas o que Julien não sabia, o que procuravam não lhe dizer, é que ser o primeiro nos diferentes cursos de dogma, de história eclesiástica etc., seguidos no seminário, era, aos olhos deles, apenas um pecado esplêndido. Desde Voltaire, desde o governo das duas Câmaras, que no fundo não é senão dúvida e exame pessoal, e dá ao espírito dos povos o mau hábito de duvidar, a Igreja da França parece ter compreendido que os livros são seus verdadeiros inimigos. Para ela, é a submissão do coração que é tudo. Ser bem-sucedido nos estudos, mesmo sagrados, é suspeito, e com razão. Pois quem impedirá o homem superior de passar para o outro lado, como Sieyès ou Grégoire? [6] A Igreja, assustada, apega-se ao papa como à única chance de salvação. Somente o papa pode tentar deter o exame pessoal e, pelas piedosas pompas das cerimônias de sua corte, impressionar o espírito entediado e enfermo das pessoas mundanas. 

Julien, penetrando em parte essas diversas verdades, que no entanto todas as palavras pronunciadas num seminário tendem a desmentir, caía numa melancolia profunda. Ele trabalhava muito e conseguia aprender rapidamente coisas muito úteis para um padre, muito falsas para ele, e nas quais não punha interesse algum. Acreditava não ter nenhuma outra coisa a fazer. 

Serei então o esquecido de toda a terra?, pensava. Ele não sabia que o sr. Pirard recebera e lançara ao fogo algumas cartas postadas de Dijon, nas quais, apesar das formas de estilo mais convenientes, transparecia uma forte paixão. Grandes remorsos pareciam combater esse amor. Tanto melhor, pensava o abade Pirard, pelo menos não foi uma mulher ímpia que esse jovem amou. 

Um dia, o abade Pirard abriu uma carta que parecia em parte apagada por lágrimas; era um eterno adeus. Ali era dito a Julien: Enfim o céu deu-me a graça de odiar, não o autor de minha falta, ele será sempre o que mais prezarei no mundo, mas minha falta em si mesma. O sacrifício está feito, meu amigo. Não sem lágrimas, como está vendo. A salvação dos seres aos quais estou ligada, e que você tanto amou, prevalece. Um Deus justo, mas terrível, não poderá mais vingar-se sobre eles pelos crimes de sua mãe. Adeus, Julien, seja justo para com os homens. 

O final de carta era quase absolutamente ilegível. Era dado um endereço em Dijon, no entanto esperava-se que Julien jamais respondesse ou, pelo menos, jamais se serviria de palavras que uma mulher restituída à virtude pudesse ler sem corar. 

A melancolia de Julien, somada à medíocre alimentação que o fornecedor de refeições a 83 centavos enviava ao seminário, começava a influir sobre sua saúde, quando, certa manhã, Fouqué apareceu de repente em seu quarto. 

– Por fim pude entrar. Vim cinco vezes a Besançon para te ver e sempre bateram-me a porta na cara. Pedi que vigiassem a saída do seminário. Por que diabos não sais nunca? 

– É uma provação que me impus. 

– Estás muito mudado. Mas, enfim, te revejo. Dois escudos de cinco francos acabam de ensinar-me que fui um idiota em não tê-los oferecidos já na primeira viagem. 

A conversa entre os dois amigos estendeu-se lon​gamente. Julien mudou de cor quando Fouqué lhe disse: 

– A propósito, estás sabendo? A mãe de teus alunos entregou-se à mais completa devoção. 

E continuou a falar com aquele ar despreocupado que causa uma impressão tão singular na alma apaixonada cujos maiores interesses são assim, inadvertidamente, agitados. 

– Sim, meu amigo, à devoção mais exaltada. Dizem que ela faz peregrinações. Mas, para a vergonha eterna do padre Maslon, que durante tanto tempo espionou o pobre abade Chélan, a sra. de Rênal não quis saber dele. Ela vai confessar-se em Dijon ou em Besançon. 

– Ela vem a Besançon?, perguntou Julien, ruborizando. 

– Muito seguidamente, respondeu Fouqué com um ar interrogativo. 

– Tens contigo alguns Constitutionnels

– Que dizes? replicou Fouqué. 

– Pergunto se tens alguns Constitutionnels, repetiu Julien, com o tom de voz mais tranquilo. Aqui são vendidos a 30 vinténs o exemplar. 

– Quê! Liberais até mesmo no seminário! exclamou Fouqué. Pobre França! Acrescentou, imitando a voz hipócrita e a entonação suave do padre Maslon. 

Essa visita teria causado uma profunda impressão em nosso herói se, no dia seguinte, uma frase dita pelo jovem seminarista de Verrières, que lhe parecia tão criança, não lhe tivesse ocasionado uma importante descoberta. Desde que estava no seminário, a conduta de Julien fora apenas uma série de passos errados. Ele zombou de si mesmo com amargura. 

Em verdade, as ações importantes de sua vida eram sabiamente conduzidas; mas ele não cuidava dos detalhes, e os espertos do seminário observam apenas os detalhes. Assim, já era tido por seus colegas como um espírito forte. Fora traído por uma quantidade de pequenas ações. 

Aos olhos deles, Julien era culpado deste vício enorme, ele pensava, julgava por si mesmo, em vez de seguir cegamente a autoridade e o exemplo. O abade Pirard não lhe servira para nada; não lhe dirigira a palavra uma única vez fora do tribunal da penitência, onde aliás mais escutava do que falava. Teria sido muito diferente se ele tivesse escolhido o padre Castanède. 

A partir do momento em que Julien deu-se conta de sua estupidez, ele não se entediou mais. Quis conhecer toda a extensão do mal e, para tanto, saiu um pouco daquele silêncio altivo e obstinado com o qual repelia os colegas. Foi então que se vingaram dele. Suas iniciativas foram acolhidas com um desprezo que chegou à derrisão. Ele reconheceu que, desde sua entrada no seminário, não houvera uma hora, sobretudo durante os recreios, que não tivesse consequências a favor ou contra ele, que não lhe houvesse aumentado o número de inimigos, ou que não lhe houvesse granjeado a benevolência de algum seminarista sinceramente virtuoso ou um pouco menos grosseiro que os demais. O mal a reparar era imenso, a tarefa mui​to difícil. Daí por diante, a atenção de Julien esteve sempre prevenida; tratava-se de desenhar um caráter completamente novo. 

Os movimentos de seus olhos, por exemplo, deram-lhe muito trabalho. Não é sem razão que nesses lugares as pessoas costumam baixar os olhos. Que presunçoso fui em Verrières!, dizia-se Julien; eu acreditava viver e estava apenas preparando-me para a vida; eis-me aqui, finalmente, no mundo, tal como o encontrarei até o fim de minhas funções, cercado de verdadeiros inimigos. Que imensa dificuldade essa hipocrisia de cada minuto!, acrescentava; comparado a ela, como são fáceis os trabalhos de Hércules. O Hércules dos tempos modernos é Sisto V , enganando com sua modéstia, por quinze anos seguidos, quarenta cardeais que o viram impetuoso e arrogante durante a juventude.

A ciência não vale nada aqui!, ele dizia-se com despeito; os progressos no dogma, na história sagrada etc. contam apenas na aparência. Tudo o que se diz a esse respeito está destinado a fazer cair na armadilha tolos como eu. Ai! Meu único mérito consistia em meus progressos rápidos, em meu modo de apoderar-me dessas futilidades. Será que no fundo eles as estimam em seu verdadeiro valor? Será que as julgam como eu? E cometi a tolice de orgulhar-me delas! Esses primeiros lugares que venho obtendo serviram-me apenas para criar-me inimigos encarniçados. Chazel, que sabe mais do que eu, põe sempre em suas redações algum disparate que o faz ser relegado ao quinquagésimo lugar; se obtém o primeiro, é por distração. Ah! Como uma palavra, uma única palavra do sr. Pirard me teria sido útil! 

A partir do momento em que Julien percebeu seu engano, os longos exercícios de piedade ascética, como rezar o terço cinco vezes por semana, os cânticos ao Sagrado Coração etc. etc., que lhe pareciam mortalmente tediosos, tornaram-se seus momentos de ação mais interessantes. Refletindo severamente sobre si mesmo, e procurando sobretudo não exagerar suas capacidades, Julien não quis inicialmente, como os seminaristas que serviam de modelo aos outros, fazer a cada instante ações significativas, isto é, que demostram um tipo de perfeição cristã. No seminário, há um modo de comer um ovo quente que anuncia os progressos feitos na vida devota.

O leitor, que talvez sorri, por certo recorda-se de todas as faltas que cometeu, ao comer um ovo, o abade Delille, convidado a jantar na casa de uma grande dama da corte de Luís XVI.

Julien procurou primeiro chegar ao non culpa, o estado do jovem seminarista cujo andar, cuja maneira de mover os braços, os olhos etc., nada indicam de mundano, mas que não mostram ainda que ele está absorvido pela ideia da outra vida e seu puro nada.

A todo momento Julien encontrava escritas a carvão, nas paredes dos corredores, frases como esta: o que são sessenta anos de provações, comparados a uma eternidade de delícias ou a uma eternidade de óleo fervente no inferno? Não as desprezou mais; compreendeu que era preciso tê-las sempre diante dos olhos. Que farei em toda a minha vida?, ele se perguntava. Venderei aos fiéis um lugar no céu. Como tornar-lhes visível esse lugar? Pela diferença entre meu exterior e o de um leigo. 

Após vários meses de aplicação contínua, Julien tinha ainda o ar de pensar. Sua maneira de mover os olhos e usar a boca não anunciava a fé implícita e pronta a tudo crer e a tudo sustentar, mesmo pelo martírio. Era com raiva que Julien via-se superado, nesse gênero, pelos camponeses mais grosseiros. Havia boas razões para que eles não tivessem um ar pensativo. 

Quanto esforço ele não fazia para chegar àquela fisionomia de fé fervorosa e cega, disposta a tudo crer e a tudo sofrer, tão comum nos conventos da Itália, e da qual Guerchin nos deixou, a nós, leigos, modelos tão perfeitos em seus quadros de igreja. [7]

Nos dias de grande festa, serviam aos seminaristas salsichas com chucrute. Os vizinhos de mesa de Julien observaram que ele era insensível a essa felicidade; foi um de seus primeiros crimes. Seus colegas viram nisso um traço odioso da mais tola hipocrisia; nada lhe atraiu tantos inimigos. Vejam esse burguês, esse desdenhoso, diziam, que finge desprezar a melhor comida, salsichas com chucrute! Fora, vilão! Orgulhoso! Danado! 

Ai! A ignorância desses jovens camponeses, meus colegas, é para eles uma vantagem imensa, exclamava Julien nos momentos de desânimo. Ao chegarem ao seminário, o professor não precisa livrá-los da quantidade terrível de ideias mundanas que trago comigo, e que eles leem em meu rosto, não importa o que eu faça. 

Com uma atenção que beirava a inveja, Julien estudava os mais grosseiros dos camponesinhos que chegavam ao seminário. No momento em que eram despojados das roupas de brim para vestirem o hábito preto, sua educação limitava-se a um respeito imenso e sem limites pelo dinheiro seco e líquido, como dizem no Franco-Condado.

É a maneira sacramental e heroica de exprimir a ideia sublime de dinheiro à vista.

A felicidade, para esses seminaristas, como para os heróis dos romances de Voltaire, consiste sobretudo em comer bem. Julien descobria em quase todos um respeito inato pelo homem que veste um traje de pano fino. Esse sentimento aprecia a justiça distributiva, tal como a oferecem nossos tribunais, em seu valor e mesmo abaixo de seu valor. Que se pode ganhar, eles repetiam com frequência entre si, movendo uma causa contra um graúdo

É a expressão dos vales do Jura para indicar um homem rico. Que se julgue pelo respeito que eles têm diante do mais rico de todos: o governo! 

Para os camponeses do Franco-Condado, não sorrir com respeito à simples menção do sr. prefeito é tido como uma imprudência. E a imprudência, no pobre, é rapidamente punida pela falta de pão. 

Depois de sentir-se como que sufocado, nos primeiros tempos, pelo sentimento de desprezo, Julien acabou por ter piedade. Aos pais da maioria de seus colegas, sucedera com frequência voltar à noite para casa, no inverno, e não encontrar nem pão, nem castanhas, nem batatas. Que há então de surpreendente, pensava Julien, se o homem feliz, aos olhos deles, é em primeiro lugar aquele que come bem, e a seguir aquele que possui uma boa roupa? Meus colegas têm uma vocação firme, isto é, eles veem no estado eclesiástico uma longa continuação desta felicidade: comer bem e ter uma roupa quente no inverno. 

Aconteceu a Julien ouvir um jovem seminarista, dotado de imaginação, dizer a seu companheiro: 

– Por que não posso ser papa como Sisto V , que guardava os porcos? 

– Só italianos são escolhidos papas, respondeu o amigo; mas com certeza sortearão entre nós para os cargos de vigário-geral, cônego e talvez bispo. O sr. P..., bispo de Châlons, é filho de um tanoeiro, profissão de meu pai.

Um dia, no meio de uma lição de dogma, o abade Pirard mandou chamar Julien. O pobre moço ficou encantado de sair da atmosfera física e moral na qual mergulhara. 

Julien encontrou no diretor a mesma acolhida que tanto o assustara no dia de sua chegada ao seminário. 

– Explique-me o que está escrito nesta carta de baralho, ele falou, olhando-o de modo a fazê-lo sumir no chão. 

Julien leu: “Amanda Binet, no café de La Girafe, antes das oito. Dizer que é de Genlis, e primo de minha mãe.” 

Julien percebeu a gravidade do perigo; a polícia do padre Castanède havia-lhe roubado esse endereço. 

– No dia em que entrei aqui, ele respondeu mirando a fronte do abade Pirard, pois não podia suportar seu olhar terrível, eu estava assustado: o sr. Chélan dissera-me que era um lugar cheio de delações e maldades de todo tipo; a espionagem e a denúncia entre colegas são estimuladas. O céu quer assim, para mostrar aos jovens padres a vida tal como ela é, e inspirar-lhes a aversão pelo mundo e suas pompas.

– E é a mim que vem dizer essas frases, seu tratante?, interrompeu o abade Pirard, furioso. 

– Em Verrières, prosseguiu friamente Julien, meus irmãos me batiam quando tinham inveja de mim... 

– Aos fatos! Aos fatos!, exclamou o sr. Pirard, quase fora de si. 

Sem sentir-se nem um pouco intimidado, Julien continuou sua narração: 

– No dia de minha chegada em Besançon, por volta do meio-dia, tive fome, entrei num café. Meu coração estava cheio de repugnância por um lugar tão profano; mas pensei que lá meu almoço sairia mais barato do que num albergue. Uma senhora, que parecia a dona do lugar, compadeceu-se de meu aspecto de noviço. Besançon está repleta de maus sujeitos, ela me disse, receio pelo senhor. Se tiver algum problema, recorra a mim, mande-me procurar antes das oito horas. Se os porteiros do seminário se recusarem a levar seu recado, diga que é meu primo e natural de Genlis... 

– Toda essa conversa vai ser verificada, exclamou o abade Pirard que, não podendo ficar parado, caminhava pela peça. Recolha-se à sua cela! 

O abade seguiu Julien e encerrou-o à chave. Este logo pôs-se a inspecionar sua valise, no fundo da qual a carta fatal fora preciosamente escondida. Nada faltava, embora várias coisas estivessem fora do lugar; no entanto, ele nunca abandonava a chave. Ainda bem, pensou Julien, que, durante o tempo de minha cegueira, jamais aceitei a permissão de sair, que o sr. Castanède me ofereceu tantas vezes com uma bondade que só agora com​preen​do. Talvez eu tivesse tido a fraqueza de mudar de roupa para visitar a bela Amanda, e então estaria perdido. Como desesperaram de tirar proveito da informação dessa maneira, fizeram uma denúncia, para não perdê-la. 

Duas horas depois, o diretor mandou chamá-lo. 

– Você não mentiu, disse ele com um olhar menos severo; mas conservar tal endereço é uma imprudência cuja gravidade não imagina. Pobre criança! Dentro de dez anos, talvez, isso poderá prejudicá-lo.




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6 Henri Grégoire, bispo que participou da Revolução Francesa, contribuindo para a união do baixo clero. (N.T.) 
7 Ver no museu do Louvre, François, duque de Aquitânia, depositando sua couraça para vestir o hábito de monge.
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ADVERTÊNCIA DO EDITOR

Esta obra estava prestes a ser publicada quando os grandes acontecimentos de julho [de 1830] vieram dar a todos os espíritos uma direção pouco favorável aos jogos da imaginação. Temos motivos para acreditar que as páginas seguintes foram escritas em 1827.


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Henri-Marie Beyle, mais conhecido como Stendhal (Grenoble, 23 de janeiro de 1783 — Paris, 23 de março de 1842) foi um escritor francês reputado pela fineza na análise dos sentimentos de seus personagens e por seu estilo deliberadamente seco.


Órfão de mãe desde 1789, criou-se entre seu pai e sua tia. Rejeitou as virtudes monárquicas e religiosas que lhe inculcaram e expressou cedo a vontade de fugir de sua cidade natal. Abertamente republicano, acolheu com entusiasmo a execução do rei e celebrou inclusive a breve detenção de seu pai. A partir de 1796 foi aluno da Escola central de Grenoble e em 1799 conseguiu o primeiro prêmio de matemática. Viajou a Paris para ingressar na Escola Politécnica, mas adoeceu e não pôde se apresentar à prova de acesso. Graças a Pierre Daru, um parente longínquo que se converteria em seu protetor, começou a trabalhar no ministério de Guerra.

Enviado pelo exército como ajudante do general Michaud, em 1800 descobriu a Itália, país que tomou como sua pátria de escolha. Desenganado da vida militar, abandonou o exército em 1801. Entre os salões e teatros parisienses, sempre apaixonado de uma mulher diferente, começou (sem sucesso) a cultivar ambições literárias. Em precária situação econômica, Daru lhe conseguiu um novo posto como intendente militar em Brunswick, destino em que permaneceu entre 1806 e 1808. Admirador incondicional de Napoleão, exerceu diversos cargos oficiais e participou nas campanhas imperiais. Em 1814, após queda do corso, se exilou na Itália, fixou sua residência em Milão e efetuou várias viagens pela península italiana. Publicou seus primeiros livros de crítica de arte sob o pseudônimo de L. A. C. Bombet, e em 1817 apareceu Roma, Nápoles e Florença, um ensaio mais original, onde mistura a crítica com recordações pessoais, no que utilizou por primeira vez o pseudônimo de Stendhal. O governo austríaco lhe acusou de apoiar o movimento independentista italiano, pelo que abandonou Milão em 1821, passou por Londres e se instalou de novo em Paris, quando terminou a perseguição aos aliados de Napoleão.

"Dandy" afamado, frequentava os salões de maneira assídua, enquanto sobrevivia com os rendimentos obtidos com as suas colaborações em algumas revistas literárias inglesas. Em 1822 publicou Sobre o amor, ensaio baseado em boa parte nas suas próprias experiências e no qual exprimia ideias bastante avançadas; destaca a sua teoria da cristalização, processo pelo que o espírito, adaptando a realidade aos seus desejos, cobre de perfeições o objeto do desejo.

Estabeleceu o seu renome de escritor graças à Vida de Rossini e às duas partes de seu Racine e Shakespeare, autêntico manifesto do romantismo. Depois de uma relação sentimental com a atriz Clémentine Curial, que durou até 1826, empreendeu novas viagens ao Reino Unido e Itália e redigiu a sua primeira novela, Armance. Em 1828, sem dinheiro nem sucesso literário, solicitou um posto na Biblioteca Real, que não lhe foi concedido; afundado numa péssima situação económica, a morte do conde de Daru, no ano seguinte, afetou-o particularmente. Superou este período difícil graças aos cargos de cônsul que obteve primeiro em Trieste e mais tarde em Civitavecchia, enquanto se entregava sem reservas à literatura.

Em 1830 aparece sua primeira obra-prima: O Vermelho e o Negro, uma crónica analítica da sociedade francesa na época da Restauração, na qual Stendhal representou as ambições da sua época e as contradições da emergente sociedade de classes, destacando sobretudo a análise psicológica das personagens e o estilo direto e objetivo da narração. Em 1839 publicou A Cartuxa de Parma, muito mais novelesca do que a sua obra anterior, que escreveu em apenas dois meses e que por sua espontaneidade constitui uma confissão poética extraordinariamente sincera, ainda que só tivesse recebido o elogio de Honoré de Balzac.

Ambas são novelas de aprendizagem e partilham rasgos românticos e realistas; nelas aparece um novo tipo de herói, tipicamente moderno, caracterizado pelo seu isolamento da sociedade e o seu confronto com as suas convenções e ideais, no que muito possivelmente se reflete em parte a personalidade do próprio Stendhal.

Outra importante obra de Stendhal é Napoleão, na qual o escritor narra momentos importantes da vida do grande general Bonaparte. Como o próprio Stendhal descreve no início deste livro, havia na época (1837) uma carência de registos referentes ao período da carreira militar de Napoleão, sobretudo a sua atuação nas várias batalhas na Itália. Dessa forma, e também porque Stendhal era um admirador incondicional do corso, a obra prioriza a emergência de Bonaparte no cenário militar, entre os anos de 1796 e 1797 nas batalhas italianas. Declarou, certa vez, que não considerava morrer na rua algo indigno e, curiosamente, faleceu de um ataque de apoplexia, na rua, sem concluir a sua última obra, Lamiel, que foi publicada muito depois da sua morte.

O reconhecimento da obra de Stendhal, como ele mesmo previu, só se iniciou cerca de cinquenta anos após sua morte, ocorrida em 1842, na cidade de Paris.



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Leia também:

Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Primeiro Adjunto (XVII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Um Rei em Verrières (XVIII)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Pensar faz sofrer (XIX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: As Cartas Anônimas (XX)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Diálogo com um Mestre (XXI - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Maneiras de Agir em 1830 (XXII - 2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -1)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Desgostos de um funcionário (XXIII -2)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Uma Capital (XXIV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Seminário (XXV)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: O Mundo, Ou o Que Falta ao Rico (XXVI)
Stendhal - O Vermelho e o Negro: Primeira Experiência da Vida (XXVII)



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