terça-feira, 7 de abril de 2020

Edgar Allan Poe - Contos: Aventuras de Arthur Gordon Pym: 13 (1) — Enfim Salvos!

Edgar Allan Poe - Contos




Aventuras de Arthur Gordon Pym 
Título original: Narrative of A. G. Pym 
Publicado em 1837





13 — Enfim Salvos! (1)





24 de julho. — A manhã do dia 24 veio encontrar-nos extraordinariamente restabelecidos de força e de coragem, apesar da situação perigosa em que estávamos, ignorando a nossa posição, mas de certeza longe de terra, com alimentos apenas para uma quinzena, se fossem cuidadosamente racionados, completamente privados de água, à mercê das ondas e dos ventos; mas as angústias e os perigos muito mais terríveis a que há tão pouco tempo tínhamos estado sujeitos, e aos quais providencialmente tínhamos escapado, faziam-nos encarar os nossos sofrimentos atuais como coisa bastante vulgar, já que, na realidade, os conceitos de felicidade e infelicidade são bastante relativos. 

Ao nascer do Sol, preparávamo-nos para recomeçar as nossas tentativas para retirar mais qualquer coisa da despensa, quando começou a chover com certa intensidade e nós tentamos recolher a água com o pano que já nos tinha servido para este fim. A única maneira que tínhamos de recolher a água era manter o pano esticado e colocarmos no meio uma das correntes das mesas de enxárcia do traquete, e a água, assim concentrada no centro, gotejava para dentro do cântaro. Por este processo, tínhamo-lo quase enchido, quando uma forte nortada nos obrigou a abandonar a empresa, porque o navio começava a balançar tão violentamente que não nos conseguíamos manter de pé. Corremos para a proa e amarramo-nos solidamente ao molinete, como já tínhamos feito, e esperamos pelos acontecimentos com muito mais calma do que seria de prever em semelhantes circunstâncias. Ao meio-dia o vento refrescou; era já uma brisa de meter dois rizes e, à noite, era forte, acompanhada de ondas altas. No entanto, como a experiência nos tinha ensinado o melhor método para dispor as nossas amarras, suportamos aquela triste noite sem demasiada inquietação, embora estivéssemos sempre inundados e em perigo constante de sermos arrastados para o mar. Felizmente, a temperatura extremamente quente, fazia com que a água quase fosse agradável. 

25 de julho. — De manhã a tempestade não passava de dez nós e o mar estava tão calmo que podíamos andar a seco na coberta. Mas, para nossa grande tristeza, vimos que dois dos nossos potes de azeitonas, assim como todo o presunto, tinham sido arrastados pelo mar, apesar de todo o nosso cuidado em os prender muito bem. Resolvemos não matar ainda a tartaruga, contentando-nos em comer algumas azeitonas e em beber uma pequena ração de água misturada com vinho em partes iguais; esta mistura servia para nos aliviar e reanimar, evitando assim a dolorosa embriaguez que resultara do vinho do Porto. O mar ainda estava um pouco agitado para recomeçarmos as nossas tentativas na despensa. Durante o dia, vieram à superfície, através da abertura, vários objetos sem interesse para a nossa situação presente, os quais deixamos serem levados pelo mar. Verificamos também que o casco se inclinava cada vez mais, de forma que já não conseguíamos manter-nos de pé, sem nos agarrarmos. Assim passamos um dia melancólico e dos mais penosos. Ao meio-dia, o Sol estava quase a pino sobre as nossas cabeças e não duvidamos de que aquela longa sucessão de ventos de Norte e de Nordeste nos tinha arrastado para as proximidades do equador. Ao anoitecer, vimos alguns tubarões e ficamos fortemente alarmados com um deles, que era enorme c que se aproximou de nós com a maior audácia. A certa altura, uma guinada fez submergir profundamente a coberta; o monstro nadava por cima de nós e, debatendo-se durante alguns minutos mesmo por cima da escotilha, acabou por atingir seriamente Peters com a cauda. Felizmente, uma onde forte afastou-o de bordo. Com tempo calmo, ternos- ia sido relativamente fácil capturar um deles.

26 de julho. — De manhã, o vento tinha acalmado bastante e, como o mar também amainara, resolvemos recomeçar a nossa pesca às provisões na despensa. Depois de um árduo trabalho todo o dia, concluímos que nada mais tínhamos a esperar dali, porque os tabiques tinham sido arrancados durante a noite e as provisões tinham deslizado para o porão. Como devem imaginar, este facto encheu-nos de desespero.

27 de julho. — Mar quase calmo com uma ligeira brisa sempre Norte e de Oeste. Como a temperatura era muito elevada, aproveitamos para secar as nossas roupas. Sentimos muito alívio contra a sede, e bem-estar, tomando banho no mar, mas sempre com a maior prudência, porque tínhamos medo dos tubarões, que durante o dia tínhamos visto a nadar à volta do navio.

28 de julho. — Continuação de bom tempo. O brigue começava a inclinar-se de uma maneira tão alarmante que receamos que se voltasse definitivamente, de quilha para cima. Preparamo-nos o melhor possível para esta contingência. Amarramos a nossa tartaruga, o cântaro de água e os dois últimos potes de azeitonas a barlavento, tão longe quanto possível do casco, debaixo das grandes mesas da enxárcia. O mar manteve-se calmo todo o dia, com pouco ou nenhum vento.

29 de julho. — Continuação de bom tempo. O braço ferido de Augusto começava a apresentar sintomas de gangrena. O meu amigo queixava-se de um entorpecimento e de uma sede excessiva, mas não sentia dores agudas. Nada podíamos fazer para o aliviar, a não ser esfregar-lhe os ferimentos com um pouco de vinagre das azeitonas, o que parecia não dar qualquer resultado. Fizemos por ele o que podíamos e triplicamos-lhe a ração de água.

30 de julho. — Dia excessivamente quente, sem vento. Um enorme tubarão manteve-se ao lado do casco durante toda a tarde. Fizemos algumas tentativas infrutíferas para o apanhar com um nó corredio. Augusto estava cada vez pior e enfraquecia a olhos vistos, não só devido à falta de uma alimentação conveniente como também aos ferimentos. Suplicava incessantemente que o abandonássemos aos seus sofrimentos, dizendo que nada mais desejava do que a morte. Naquela noite, comemos as nossas últimas azeitonas e encontramos a água do cântaro demasiado pútrida para a conseguirmos beber sem lhe misturar um pouco de vinho. Decidimos que na manhã seguinte mataríamos a tartaruga.

31 de julho. — Depois de uma noite de enorme inquietação e fadiga, em consequência da posição do navio, dispusemo-nos a matar e a esquartejar a tartaruga, verificando que tinha muito menos carne do que, a princípio julgáramos, embora de boa qualidade (toda a carne que conseguimos tirar dela não ultrapassava as dez libras). Com o objetivo de conservar um bocado o mais tempo possível, cortamos a carne em fatias muito finas, enchemos os três potes e a garrafa de vinho da Madeira, que felizmente tínhamos guardado, e regamo-la com o vinagre das azeitonas. Assim, pusemos de parte cerca de três libras de carne de tartaruga, prometendo não lhe tocar antes de consumirmos o resto. Resolvemos contentar-nos com uma ração de cerca de quatro onças de carne por dia e, assim, ela devia chegar para treze dias. Ao escurecer, começou a cair uma chuva intensa acompanhada de relâmpagos e violentos trovões, mas durou tão pouco tempo que apenas conseguimos recolher meio-pinto de água. De comum acordo, demos toda a água a Augusto, que parecia aproximar-se do fim. Bebia a água diretamente do pano, à medida que a recolhíamos; ele estava deitado na coberta e nós segurávamos no pano de forma a deixar a água escorregar-lhe para a boca, porque não possuíamos nada que pudesse servir para conter a água, a não ser que esvaziássemos a garrafa empalhada que tinha o vinho, ou o cântaro com a água estragada. No entanto, teríamos recorrido a um destes expedientes se a chuvada continuasse.  

O doente parecia obter um alívio mínimo com a bebida. Tinha o braço completamente negro desde o punho até ao ombro e os pés pareciam gelo. Esperávamos vê-lo expirar a qualquer momento. Estava terrivelmente magro, pois agora pesava cerca de quarenta ou cinquenta libras no máximo, quando ao deixar Nantucket pesava cento e vinte e sete libras. Os olhos estavam profundamente encovados, mal se vendo, e a pele das faces pendia-lhe flácida e sem vigor, a ponto de o impedir de mastigar qualquer alimento ou engolir qualquer líquido a não ser com um enorme esforço.

1 de agosto. — Sempre o mesmo tempo: mar calmo, com temperatura sufocante. Sofremos horrivelmente com sede, pois a água do cântaro estava completamente fétida e cheia de bichos. No entanto, conseguimos ingerir uma parte, misturando-a com vinho, o que apaziguou muito pouco a nossa sede. Sentíamos maior alívio com um banho de mar, mas só raramente podíamos recorrer a este expediente, por causa da presença contínua dos tubarões. Tomou-se então evidente que Augusto estava perdido e que morria. Nada podíamos fazer para lhe diminuir os sofrimentos, que pareciam horríveis. Por volta do meio-dia, expirou no meio de violentas convulsões e sem ter proferido uma única palavra há várias horas. A sua morte provocou-nos os mais melancólicos pressentimentos e teve, sobre os nossos espíritos, um efeito tão poderoso, que ficamos deitados junto do corpo todo o dia, sem trocarmos uma palavra, a não ser em voz baixa. Só ao cair da noite, tivemos coragem para nos levantarmos e lançar o cadáver borda fora. Tinha um aspeto hediondo, impossível de descrever, e estava num tal estado de decomposição que Peters, ao tentar levantá-lo, ficou com uma perna na mão. Quando aquela massa em putrefação deslizou para o mar por cima da amurada, vimos, à luz fosforescente que nos rodeava, sete ou oito tubarões, cujos dentes horríveis faziam, enquanto retalhavam a presa, um barulho sinistro que se podia ouvir a uma milha de distância. Este ruído fúnebre causou-nos um profundo terror que nos invadiu até à medula dos ossos.

2 de agosto. — O mesmo tempo, calmaria terrível, calor insuportável. A alvorada surpreendeu-nos num estado de abatimento deplorável e de completo esgotamento físico. A água do cântaro era impossível de beber, pois já não passava de uma espessa massa gelatinosa, numa mistura horrível de vermes e de lodo. Deitamo-la fora e, depois de termos lavado o cântaro cuidadosamente com água do mar, despejamos-lhe um pouco de vinagre das garrafas onde conservávamos os restos da tartaruga. A nossa sede era quase intolerável e nós tentamos, em vão, acalmá-la com vinho, que era como deitar lenha no lume e que nos mergulhou numa violenta embriaguez. Depois, tentamos aliviar o nosso sofrimento com uma mistura de vinho e de água salgada, mas o resultado imediato foram náuseas violentas e não voltamos a recorrer a tal processo. Espreitamos com ansiedade, durante todo o dia, uma oportunidade de tomar banho, mas em vão, porque o nosso pontão estava completamente cercado por tubarões, sem dúvida, os mesmos monstros que tinham devorado o nosso pobre camarada na noite anterior e que esperavam a cada momento um novo regalo da mesma natureza. Esta circunstância causou-nos o mais profundo desgosto e encheu-nos dos mais melancólicos e deprimentes pressentimentos. O banho já nos tinha proporcionado um grande alívio e não podíamos suportar a ideia de não podermos recorrer ao mesmo procedimento. Aliás, não estávamos completamente livres de medos ou ao abrigo de um perigo imediato, porque à mínima escorregadela ou falso movimento podia pôr-nos ao alcance daqueles peixes vorazes, que vinham de sotavento e que, muitas vezes nadavam direitos a nós. Nem os nossos gritos nem os nossos gestos pareciam assustá-los. Um dos maiores, mesmo depois de ferido por Peters que lhe desferiu uma machadada, não desistia de avançar contra nós. Formou-se uma nuvem, ao anoitecer, mas, para nosso extremo desapontamento, passou sem que chovesse. É completamente impossível imaginarem o que sofríamos com sede. Devido às torturas da sede e ao receio dos tubarões passamos a noite sem dormir.



Continua...


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Edgar Allan Poe (nascido Edgar Poe; Boston, Massachusetts, Estados Unidos, 19 de Janeiro de 1809 — Baltimore, Maryland, Estados Unidos, 7 de Outubro de 1849) foi um autor, poeta, editor e crítico literário estadunidense, integrante do movimento romântico estadunidense. Conhecido por suas histórias que envolvem o mistério e o macabro, Poe foi um dos primeiros escritores americanos de contos e é geralmente considerado o inventor do gênero ficção policial, também recebendo crédito por sua contribuição ao emergente gênero de ficção científica. Ele foi o primeiro escritor americano conhecido por tentar ganhar a vida através da escrita por si só, resultando em uma vida e carreira financeiramente difíceis.

Ele nasceu como Edgar Poe, em Boston, Massachusetts; quando jovem, ficou órfão de mãe, que morreu pouco depois de seu pai abandonar a família. Poe foi acolhido por Francis Allan e o seu marido John Allan, de Richmond, Virginia, mas nunca foi formalmente adotado. Ele frequentou a Universidade da Virgínia por um semestre, passando a maior parte do tempo entre bebidas e mulheres. Nesse período, teve uma séria discussão com seu pai adotivo e fugiu de casa para se alistar nas forças armadas, onde serviu durante dois anos antes de ser dispensado. Depois de falhar como cadete em West Point, deixou a sua família adotiva. Sua carreira começou humildemente com a publicação de uma coleção anônima de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827).

Poe mudou seu foco para a prosa e passou os próximos anos trabalhando para revistas e jornais, tornando-se conhecido por seu próprio estilo de crítica literária. Seu trabalho o obrigou a se mudar para diversas cidades, incluindo Baltimore, Filadélfia e Nova Iorque. Em Baltimore, casou-se com Virginia Clemm, sua prima de 13 anos de idade. Em 1845, Poe publicou seu poema The Raven, foi um sucesso instantâneo. Sua esposa morreu de tuberculose dois anos após a publicação. Ele começou a planejar a criação de seu próprio jornal, The Penn (posteriormente renomeado para The Stylus), porém, em 7 de outubro de 1849, aos 40 anos, morreu antes que pudesse ser produzido. A causa de sua morte é desconhecida e foi por diversas vezes atribuída ao álcool, congestão cerebral, cólera, drogas, doenças cardiovasculares, raiva, suicídio, tuberculose entre outros agentes.

Poe e suas obras influenciaram a literatura nos Estados Unidos e ao redor do mundo, bem como em campos especializados, tais como a cosmologia e a criptografia. Poe e seu trabalho aparecem ao longo da cultura popular na literatura, música, filmes e televisão. Várias de suas casas são dedicadas como museus atualmente.


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Edgar Allan Poe

CONTOS

Originalmente publicados entre 1831 e 1849 



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