quinta-feira, 16 de abril de 2020

parábolas de uma professora: o sorriso cínico da desesperança maliciosa

parábolas de uma professora


o sorriso cínico da desesperança maliciosa
Ensaio 013B – 3ª.ed



baitasar e paulus e marko e kamilá




Então, minha gente... vamos iniciar a nossa reunião?

essa é rachel, diretora da escola, a altíssima, entrou no abrigo para chamar-nos à reunião semanal dos professores e professoras, talvez, a última reunião ou última diretora eleita pela comunidade, o futuro nos responderá

Desculpe, Rachel...

Sim, Marko.

gosto do mundo com gentilezas e cuidados com a vida, a delicadeza e a civilidade com todas às vidas, mesmo as palavras duras e decisões para resistir e subsistir não precisam ser cruéis, meu sonho pequeno burguês

O professor Paulo estava descrevendo a esperança. Acredito que todos e todas deveríamos ouvi-lo. Essa discussão já vem da reunião passada.

E a reunião desta semana faremos aqui no abrigo...?

a rachel está toda de branco, veste-se com elegância, confidenciou – numa dessas saídas que fazemos em pubs, quatro ou cinco viciadas em trabalho e festa – que às reuniões antecipadamente marcadas, pensa nas roupas e no efeito nas pessoas, Vestir calça jeans, tênis e blusinha básica nas reuniões? Nem pensar, de jeito nenhum. A roupa faz parte da reunião. A imagem mostra o que as palavras não podem alcançar. Antes de ouvirem qualquer argumento ou falação as pessoas precisam parar para ouvirem, escutar e entender é outra questão, mas precisam parar, seja por medo, respeito ou curiosidade, Ou cobiça e ciúme, E as reuniões não agendadas, aquelas que surgem devido as surpresas do cotidiano, Essas, por si só, já provocam atenção, É claro, o cotidiano já foi alterado por alguma razão mais importante que repetir o habitual, Então, esse conjuntinho elegante todo branco também é para nossas reuniões, a resposta que recebo é um sorriso imenso e um abraço maior, uma mulher forte e indestrutível, uma avó cada dia mais linda

Acho que podemos fazer aqui, né? O que vocês acham?

Pode ser... eu acho...

Eu acho que sim...

Nenhuma objeção? Então, tá... professor Paulo, por favor, continue...

Obrigado, Rachel. Bom dia, novamente, a todos e todas. Esse chamamento do Marko convoca em mim a responsabilidade solene de falar com uma breve tensão da memória. O que eu disse que provocou tal reação no Marko? Não sei se sei. Esse é o mistério que enfrentamos em nosso cotidiano nas salas de aula: o que dizer, como dizer, para quem dizer, por que, quando, essa mágica é interminável. Para os desesperançados e desesperançadas pode se tornar um pesadelo respondê-las, e talvez, por isso, esquecemos essas perguntas que precisamos nos fazer todos os dias. E desanimamos de nos esperançar no outro e na outra – seja esse outro criança, jovem ou adulto –, desesperançamos da educação, e nos agarramos, por último, e no fim de tudo, para não desesperançar em nós mesmos, na salvação de ensinar e virar às costas, fugir para longe, pelo menos, até amanhã, quando teremos que estar de volta, pouco a pouco, cada dia, mais desesperançados. Até que precisamos estar cínicos de desesperança. E o cinismo é a forma mais rápida de morrer para o outro.

será tarde demais para recuar, me pergunto, escuto o paulo em meu socorro, Anita, recuar para avançar com esperança, enfrentar o cinismo que mata o espetáculo da vida, Eu sei, me respondo, a merda toda é que estabelecemos que o cinismo da desesperança seria um lugar firme o bastante para nos salvar. Acho que estamos afundando num pântano de indiferença e descrença em nós mesmas.

Se me permitirem gostaria de continuar, esperou pelo quietude das vozes, grato, caro Marko, a esperança no homem e na mulher, independentemente da maneira como se manifesta e se diz pertencente, querendo a humanidade que nos habita, é permanentemente mobilizada para recriar as condições humanas de ser mais...

eis o nosso ofício de ser professora, não podemos nos entregar ao deserto da desesperança, fugindo do sofrimento do nosso povo – que também somos, lutando pelo reconhecimento do nosso trabalho –, caminhantes que caminham e fazem o caminho com as sombras que abrigam os esfomeados e as sobras que refrescam nossas vidas

... esperar o que se deseja é o natural, a necessidade que transcende a biologia e vem se assentar em nossa condição humana, no desejo que existe na palavra e na reflexão que impregna nossa ação. E é essa palavra carregada com nossos desejos que aviva a práxis – não esqueçamos que a palavra provoca reflexão e a reflexão encoraja a palavra, ação e reflexão, pensar e agir – voltada para o humano que se quer sendo mais humana, recriadora das possibilidades e oportunidades que nos aproximam...

olho pela janela, outro prédio repartido em salas de aula, precisamos levantar e mirar a montanha, sair do curso do rio para fecundar suas margens, alargar a vida – dialogar com as pessoas que buscam estreitar a vida à sua imagem e semelhança –, levantar e mirar indignadas com as injustiças, lutemos pela justiça unidas pela esperança dialógica que não se nega ao diálogo esperançoso, um só coração com sabor de vida que já experimentou a morte

... da esperança que sonha a vida como um chá refrescante de hortelã. A xícara em nossas mãos, quentinha e aconchegante, um chá tomado delicada e decididamente sem esperar que amorne ou esfrie. A esperança do chá está na sua delicadeza e na sua maneira diferente de observar e influir na vida, na saúde da existência, na ausência da violência e resultados inflamados por fármacos pedagógicos tirânicos e decorativos.

temos tantos irmãos e irmãs que não podemos contar, dizem que se passou o tempo das cartas, a história se acabou e o presente já chega com gosto de passado, vivemos o tempo das frases curtas e palavras abreviadas, a necessidade decorativa das relações íntimas tornadas públicas e curtidas, uma vida veloz que mata as cartas que nos contam histórias marginais e clandestinas, viria daí essa preguiça de escrever? esse desânimo para ler? não sei, mas sei que isso corrói as esperanças da maioria cansada de conviver, cotidianamente, com  a frustração, o drama, a dor e a banalização da violência na civilização do espetáculo

Obrigada, professor. O Paulo é um obstinado no crédito que dá ao ser humano educador. Vamos começar?

essa é a altíssima sendo pragmática, sabe que a reunião não irá se alongar além do horário estipulado, e o paulo não estava incluído na pauta nem na arrumação do tempo – precisamos aliviar essa corrida contra o tempo, antes que esse tempo veloz nos engula e nos impeça para todo sempre de estarmos juntas, o amor não é paz, mas a contradição do outro e da outra em mim mesma, assim a diversidade pode nos ajudar a mudar o mundo, desmascarando a pedagogia antibiótica que se revela eficaz para acabar com o analfabetismo porque acaba com o analfabeto –, o que nos recusamos reconhecer é que antes dos conteúdos precisamos das águas transparentes do amor, dar graças à vida e ao convívio das ideias, gratidão

Querida Rachel, só mais um instante, fico pensando naqueles e naquelas desesperançadas por pura teimosia, se negam existindo e fazendo o seu teatro pedagógico. Têm medo de narrar com esperança, se negam registrar a sua biografia, não acreditam que podem cantar a esperança na sua própria fábula, se fogem da amorosidade...

continuo olhando à montanha, erguida pelo sonho da maioria, quem sabe se voltarmos aos dezessete anos, memórias frágeis e determinadas dos nossos passos, reconhecendo os sentimentos, aceitando o amor brotando como musgos nas pedras

... não se acreditam e impedem aos seus alunos e alunas esperançadas de se acreditarem, se jogam de cabeça no abismo da fatalidade e do destino, se proíbem de acreditar em si, e nos outros e outras, se julgam menores para a tarefa da esperança – se medem conforme o tamanho do outro ou da outra –, estão jogados nas águas oceânicas da vida e se deixam embalar até o naufrágio, na primeira tempestade, que cedo ou tarde virá...

sofrimento inútil não serve para consertar nada porque nunca está no lugar certo e na hora marcada, nada é seguro quando estamos desorientadas na desesperança, Nossa desconfiança aumenta em relação a todas e a tudo, Gurias, eu concordo com o Paulo. Acredito que a desesperança é um importante fator anti-revolucionário, E vocês sabem por que, né? A culpa estando na outra, nos alunos, nas alunas, nos pais e nas mães, E na diretora, É... também, se a culpa está fora de mim mesma, não preciso mudar, Mas Rachel, às vezes, você dá um empurrãozinho, Anita! Não acredito, e todas sorrimos nosso melhor riso, Quem vai pedir mais um chopinho? Afinal, sextou, gurias!

tudo está tão ruim por fora que precisamos consertar por dentro

... os desesperançados navegam na aposta moral que os ventos não mudam, não circulam, não aumentam, os vagalhões não existem, são frutos da imaginação, e por isso, também, se impedem de imaginar e sonhar além do que conhecem e reconhecem. Os desesperançados têm medo de encontrar a verdade nos pesadelos das fantasias e ilusões opressoras. Teimam que a esperança não existe como um ato de mudança, como um fato do cotidiano, como uma xícara com chá de hortelã.

o destino pode sim ser torcido e retorcido até a dor intensa da consciência ou ficar dominado moralmente pelos desatinos do medo, Anita, Estou escutando, Rachel, Quem não acredita no que fazemos é porque acredita que a escola que fazemos não vai mudar nada do que sempre foi, Eu me pergunto se a escola que fazemos é suficiente, É uma escola que acredita na mudança, E essa mudança nos leva para onde, Para mais perguntas, Anita, Um tintin à escola que acredita na mudança, Quero fazer um brinde, também, É só fazer, Anita, Na verdade, tenho vários brindes, Uau, sextou... sextou, Estamos esperando, Anita, Um brinde à beleza da escola que educa com esperança porque acredita na palavra do outro e da outra, Um brinde a isso, Um brinde aos alunos que nos educam, E às alunas, também, Perfeito, Rachel, E um brinde à Camila! Adorei essa menina na reunião, sempre cirúrgica e comedida em suas intervenções. Mas ontem, você foi sanguínea, Sei lá, achei que alguém precisava contrapor a Cabayba mais preocupada com o horário do que com a reunião.

Paulo...

Sim, Cabayba.

Não me considero uma desesperançada, até porque venho todos os dias, não chego atrasada, cumpro meus deveres, mas não existe esse outro que nos educa. Eu educo a mim mesma quando não desisto, mas essa conversinha poderíamos ter em outro momento. Quem sabe em uma formação aos sábados, por exemplo?

Paulo, por favor, gostaria de dizer alguma coisa...

Como você quiser, Camila. Eu já falei demais...

Cabayba, existimos nos educando juntas, nas histórias vividas – ora com uma, ora com outra –, nada é igual o tempo todo, mas quem quer entender? Quem quer desimpedir-se do preconceito contra a escola que educa porque aprende? A escola modeladora não consegue – ou não quer – ser a escola que liberta. E quanto a sugestão para o sábado de formação eu concordo, mas você virá? Não esteve em nenhuma das formações ainda...

Com assim, eu vim em dois dos três sábados!

Isso mesmo, você veio. Eu lembro, sim. No primeiro, você ficou duas horas conversando com a Ofélia, depois do intervalo a conversa continuou. E no segundo, você usou toda a manhã daquele sábado para corrigir as provas de outra escola, outros alunos, lembra? Está difícil para todas as colegas do ensino privado, né? Aqui, também.

a camila não se calou para o sorriso cínico que grita com desesperança maliciosa e ordeira





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