sexta-feira, 3 de abril de 2020

O Segundo Sexo - 02. A Experiência Vivida: Capítulo I - Infância (3)

Simone de Beauvoir



02. A Experiência Vivida




O SEGUNDO SEXO
SlMONE DE BEAUVOIR



continuando...


É certo que a ausência do pênis desempenhará um papel importante no destino da menina, ainda que ela não inveje seriamente a posse dele. O grande privilégio que o menino aufere disso é o fato de que, dotado de um órgão que se mostra e pode ser pegado, tem a possibilidade de alienar-se nele ao menos parcialmente. Os mistérios de seu corpo, suas ameaças, ele os projeta fora de si, o que lhe permite mantê-los a distância: sem dúvida, sente-se em perigo em seu pênis, teme a castração, mas é um medo mais fácil de dominar do que o temor difuso da menina em relação a seus "interiores", temor que amiúde se perpetua através de toda a sua vida de mulher. Ela tem uma preocupação extremada por tudo o que ocorre dentro dela; é desde o início muito mais opaca a seus próprios olhos, mais profundamente assaltada pelo mistério perturbador da vida do que o homem. Possuindo um alter ego em que se reconhece, pode o menino ousadamente assumir sua subjetividade; o próprio objeto em que se aliena torna-se um símbolo de autonomia, de transcendência, de poder: o menino mede o comprimento de seu pênis, compara com os colegas a força do jato urinário; mais tarde, a ereção e a ejaculação são fontes de satisfação e desafio. A menina, entretanto, não pode encarnar-se em nenhuma parte de si mesma. Em compensação, põem-lhe nas mãos, a fim de que desempenhe junto dela o papel de alter ego, um objeto estranho: uma boneca. Cumpre notar que chamam igualmente poupée (boneca) à atadura em que se envolve um dedo ferido: um dedo vestido, separado, é olhado com alegria e uma espécie de orgulho, a criança esboça com ele o processo de alienação. Mas é um boneco com cara humana — ou sabugo de milho ou um simples pedaço de pau — que substitui de maneira mais satisfatória esse duplo, esse brinquedo natural que é o pênis.

A grande diferença está em que, de um lado, a boneca representa um corpo na sua totalidade e, de outro, é uma coisa passiva. Por isso, a menina será encorajada a alienar-se em sua pessoa por inteiro e a considerá-la um dado inerte. Ao passo que o menino procura a si próprio no pênis enquanto sujeite autônomo, a menina embala sua boneca e enfeita-a como aspira a ser enfeitada e embalada; inversamente, ela pensa a si mesma como uma maravilhosa boneca [1]. Através de cumprimentos e censuras, de imagens e de palavras, ela descobre o sentido das palavras "bonita" e "feia"; sabe, desde logo, que para agradar é preciso ser "bonita como uma imagem"; ela procura assemelhar-se a uma imagem, fantasia-se, olha-se no espelho, compara-se às princesas e às fadas dos contos. Um exemplo impressionante desse coquetismo infantil é-nos fornecido por Maria Bashkirtseff. Não é por certo um acaso se, tardiamente desmamada — tinha três anos e meio — experimentou tão fortemente, por volta de 4 a 5 anos, a necessidade de ser admirada, de existir para outrem: o choque deve ter sido violento numa criança mais madura e ela deve ter procurado com mais paixão vencer a separação infligida: "Com cinco anos, escreve ela em seu diário, eu me vestia com rendas da mamãe, flores nos cabelos e ia dançar no salão. Era a grande dançarina Patipa e toda a casa ali estava para me olhar. . ."


(1) A analogia entre a mulher e a boneca mantém-se na idade adulta; em francês diz-se geralmente de uma mulher que é uma boneca; em inglês que é dolled up.


Esse narcisismo aparece tão precocemente na menina, desempenha em sua vida de mulher um papel tão primordial, que se pode considerá-lo como emanação de um misterioso instinto feminino. Mas acabamos de ver que, na verdade não é um destino anatômico, que lhe dita sua atitude. A diferença que a distingue dos meninos é um fato que ela poderia assumir de muitas maneiras. O pênis constitui certamente um privilégio, mas cujo preço naturalmente diminui quando a criança se desinteressa de suas funções excretórias e se socializa; se ainda o conserva a seus olhos, depois da idade de 8 a 9 anos, é porque se tornou o símbolo de uma virilidade que é socialmente valorizada. Em verdade, a influência da educação e do ambiente é aqui imensa. Todas as crianças tentam compensar a separação da desmama através de condutas de sedução e de parada; ao menino obrigam a ultrapassar essa fase, libertam-no de seu narcisismo fixando-o no pênis; ao passo que a menina é confirmada na tendência de se fazer objeto, que é comum a todas as crianças. A boneca ajuda-a, mas não desempenha tampouco um papel determinante; o menino pode também querer bem a um urso, um polichinelo, nos quais se projeta; é na forma global de suas vidas que cada elemento — pênis, boneca — assume sua importância.

Assim, a passividade que caracterizará essencialmente a mulher "feminina" é um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos. Mas é um erro pretender que se trata de um dado biológico: na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade. A imensa possibilidade do menino está em que sua maneira de existir para outrem encoraja-o a por-se para si. Ele faz o aprendizado de sua existência como livre movimento para o mundo; rivaliza-se em rudeza e em independência com os outros meninos, despreza as meninas. Subindo nas árvores, brigando com colegas, enfrentando-os em jogos violentos, ele apreende seu corpo com um meio de dominar a natureza e um instrumento de luta; orgulha-se de seus músculos como de seu sexo; através de jogos, esportes, lutas, desafios, provas, encontra um emprego equilibrado para suas forças; ao mesmo tempo conhece as lições severas da violência; aprende a receber pancada, a desdenhar a dor, a recusar as lágrimas da primeira infância. Empreende, inventa, ousa. Sem dúvida, experimenta- se também como "para outrem", põe em questão sua virilidade, do que decorrem, em relação aos adultos e a outros colegas, muitos problemas. Porém, o mais importante é que não há oposição fundamental entre a preocupação dessa figura objetiva, que é sua, e sua vontade de se afirmar em projetos concretos. É fazendo que ele se faz ser, num só movimento. Ao contrário, na mulher há, no início, um conflito entre sua existência autônoma e seu "ser-outro"; ensinam-lhe que para agradar é preciso procurar agradar, fazer-se objeto; ela deve, portanto, renunciar à sua autonomia. Tratam-na como uma boneca viva e recusam-lhe a liberdade; fecha-se assim um círculo vicioso, pois quanto menos exercer sua liberdade para compreender, apreender e descobrir o mundo que a cerca, menos encontrará nele recursos, menos ousará afirmar-se como sujeito; se a encorajassem a isso, ela poderia manifestar a mesma exuberância viva, a mesma curiosidade, o mesmo espírito de iniciativa, a mesma ousadia que um menino. É o que acontece, por vezes, quando lhe dão uma formação viril; muitos problemas então lhe são poupados [2]. É interessante observar que é um gênero de educação que o pai de bom grado dá à filha; as mulheres educadas por um homem escapam, em grande parte, às taras, da feminilidade. Mas os costumes opõem-se a que as meninas sejam tratadas exatamente como meninos. Conheci numa aldeia meninas de 3 a 4 anos que o pai obrigava a usar calças; todas as crianças perseguiam-nas: "São meninas ou meninos?" e procuravam verificá-lo; a tal ponto que elas suplicavam que as vestissem como meninas. A não ser que levem uma vida muito solitária, mesmo quando os pais autorizam maneiras masculinas, os que cercam a menina, suas amigas, seus professores sentem-se chocados. Haverá sempre tias, avós, primas para contrabalançar a influência do pai. Normalmente, o papel deste em relação às filhas é secundário. Uma das maldições que pesam sobre a mulher — Michelet assinalou-a justamente — está em que, em sua infância, ela é abandonada às mãos das mulheres. O menino também é, a princípio, educado pela mãe; mas ela respeita a virilidade dele e ele lhe escapa desde logo [3]; ao passo que ela almeja integrar a filha no mundo feminino.


(2) Pelo menos em sua primeira infância. No estado atual da sociedade, os conflitos da adolescência poderão, ao contrário, exagerar-se com isso.


(3 ) Há naturalmente bom número de exceções: mas o papel da mãe na educação do filho homem não pode ser estudado aqui.


Ver-se-á adiante quanto são complexas as relações entre mãe e filha; a filha é para a mãe ao mesmo tempo um duplo e uma outra, ao mesmo tempo a mãe adora-a imperiosamente e lhe é hostil; impõe à criança seu próprio destino: é uma maneira de reivindicar orgulhosamente sua própria feminilidade e também uma maneira de se vingar desta. Encontra-se o mesmo processo entre os pederastas, os jogadores, os viciados em entorpecentes, entre todos os que jactam de pertencer a uma determinada confraria e com isso se sentem humilhados: tentam conquistar adeptos com ardente proselitismo. Do mesmo modo, as mulheres, quando se lhes confia uma menina, buscam, com um zelo em que a arrogância se mistura ao rancor, transformá-la em uma mulher semelhante a si próprias. E até uma mãe generosa que deseja sinceramente o bem da criança pensará em geral que é mais prudente fazer dela uma "mulher de verdade", porquanto assim é que a sociedade a acolherá mais facilmente. Dão-lhe por amigas outras meninas, entregam-na a professoras, ela vive entre matronas como no tempo do gineceu, escolhem para ela livros e jogos que a iniciem em seu destino, insuflam-lhe tesouros de sabedoria feminina, propõem-lhe virtudes femininas, ensinam-lhe a cozinhar, a costurar, a cuidar da casa ao mesmo tempo que da toilette, da arte de seduzir, do pudor; vestem-na com roupas incômodas e preciosas de que precisa tratar, penteiam-na de maneira complicada, impõem-lhe regras de comportamento: "Endireita o corpo, não andes como uma pata". Para ser graciosa, ela deverá reprimir seus movimentos espontâneos; pedem-lhe que não tome atitudes de menino, proíbem-lhe exercícios violentos, brigas: em suma, incitam-na a tornar-se, como as mais velhas, uma serva e um ídolo. Hoje, graças às conquistas do feminismo, torna-se dia a dia mais normal encorajá-la a estudar, a praticar esporte; mas perdoam-lhe mais do que ao menino o fato de malograr; tornam-lhe mais difícil o êxito, exigindo dela outro tipo de realização: querem, pelo menos, que ela seja também uma mulher, que não perca sua feminilidade.

Nos primeiros anos, ela se resigna sem grande dificuldade à esta sorte. A criança move-se no plano do jogo e do sonho: brinca de ser, de fazer; fazer e ser não se distinguem nitidamente quando se trata de realizações imaginárias. A menina pode compensar a superioridade atual do menino mediante as promessas contidas em seu destino de mulher e que, já nesse momento, realiza em seus jogos. Em conhecendo ainda tão-somente seu universo infantil, a mãe parece-lhe, a princípio, dotada de maior autoridade do que o pai; ela imagina o mundo como uma espécie de matriarcado; imita a mãe, identifica-se com ela; muitas vezes até inverte os papéis: "Quando eu for grande e você pequena", diz-lhe de bom grado. A boneca não é somente seu duplo: é também seu filho, funções que se excluem tanto menos quanto a criança verdadeira é também para a mãe um alter ego; quando ralha, pune e depois consola a boneca, ela se defende contra a mãe e ao mesmo tempo assume a dignidade de mãe: resume os dois elementos do par; confia-se à boneca, educa-a, afirma sobre ela sua autoridade soberana, por vezes mesmo arranca-lhe os braços, bate-a, tortura-a: isso significa que realiza através dela a experiência da afirmação subjetiva e da alienação. Muitas vezes, a mãe associa-se a essa vida imaginária: a criança brinca de pai com a boneca e de mãe com a mãe, é um casal de que se exclui o homem. Nisso tampouco existe algum "instinto materno" inato e misterioso. A menina constata que o cuidado das crianças cabe à mãe, é o que lhe ensinam; relatos ouvidos, livros lidos, toda a sua pequena experiência o conforma; encorajam-na a encantar-se com essas riquezas futuras, dão-lhe bonecas para que tais riquezas assumam desde logo um aspecto tangível. Sua "vocação" é-lhe imperiosamente ditada. Pelo fato de a criança se lhe apresentar como seu quinhão, pelo fato também de se interessar mais do que o menino pelos seus "interiores", a menina mostra-se mais particularmente curiosa do mistério da procriação; ela deixa rapidamente de acreditar que os bebês nascem nos repolhos ou são trazidos por cegonhas; principalmente nos casos em que a mãe lhe dá irmãos ou irmãs, logo aprende que os filhos se formam no ventre materno. Aliás, os pais de hoje cercam a coisa de menos mistério do que os pais de outrora; com essa revelação a menina se maravilha mais do que se atemoriza porque o fenômeno tem para ela algo mágico; não lhe apreende ainda todas as implicações fisiológicas. Ignora primeiramente o papel do pai e supõe que é absorvendo certos alimentos que a mulher fica grávida, o que é tema lendário (vêem-se rainhas de contos dar à luz uma menina ou um belo menino depois de terem comido certo fruto ou certo peixe) e que leva mais tarde algumas mulheres à ideia de uma ligação entre a gestação e o sistema digestivo. O conjunto desses problemas e dessas descobertas absorve grande parte dos interesses da menina e alimenta-lhe a imaginação. Citarei como típico o exemplo escolhido por Jung (Os Conflitos da Alma Infantil) e que apresenta notáveis analogias com o do pequeno Hans que Freud analisou mais ou menos na mesma época:

         Foi por volta dos 3 anos que Ana começou a interrogar seus pais acerca da origem dos recém-nascidos; tendo ouvido dizer que eram "anjinhos", pareceu primeiramente imaginar que, quando as pessoas morrem vão para o céu e se reencarnam sob a forma de bebês. Aos 4 anos, teve um irmãozinho; não parecera ter observado a gravidez da mãe, mas quando a viu deitada no dia seguinte ao parto, olhou-a com embaraço e desconfiança e acabou perguntando: "Você não vai morrer?" Mandaram-na passar algum tempo em casa da avó; na volta uma nurse achava-se instalada junto ao leito; ela detestou-a de início, depois divertiu-se com brincar de enfermeira; teve ciúmes do irmão: escarnecia, contava histórias para si mesma, desobedecia e ameaçava voltar para a casa da avó; acusava muitas vezes a mãe de não dizer a verdade porque a suspeitava de ter mentido acerca do nascimento da criança; sentido obscuramente que havia uma diferença entre "ter" um filho como nurse e como mãe, perguntava a esta: "Ficarei um dia uma mulher como você?" Adquiriu o hábito de chamar os pais aos berros durante a noite; e como falavam muito, perto dela, do tremor de terra de Messina, transformou isso num pretexto para suas angústias, fazendo continuamente perguntas a respeito. Um dia, pôs-se a indagar à queima- -roupa: "Por que Sofia é menor do que eu? Onde se encontrava Fritz antes de nascer? Estava no céu? Que é que fazia lá? Por que é que só agora desceu?" A mãe acabou explicando que o irmãozinho lhe crescera na barriga como as plantas na terra. Ana pareceu encantada com a ideia. Depois perguntou: "Saiu sozinho? — Saiu. — Mas como, se ele não anda? — Saiu rastejando. — Então tem um buraco aqui? (mostrou o peito) ou saiu pela boca?" Sem aguardar a resposta, declarou que sabia muito bem que fora a cegonha que o trouxera; mas à noite disse repentinamente: "Meu irmão [4] está na Itália; ele tem uma casa de pano e vidro que não pode desmoronar"; e deixou de se interessar pelo terremoto e de pedir para ver fotografias da erupção. Falava ainda muito das cegonhas com suas bonecas, mas sem convicção. Muito breve, entretanto, teve novas curiosidades. Tendo visto o pai na cama, disse; "Por que você está de cama? Você tem também uma planta na barriga?" Contou um sonho; sonhara com sua arca de Noé: "E embaixo tinha uma tampa que se abria e todos os animais caíam pela abertura"; na realidade, sua arca de Noé abria-se pelo teto. Nessa época, novamente pesadelos: podia-se adivinhar que se interrogava acerca do papel do pai. Uma senhora grávida veio visitar sua mãe, e esta no dia seguinte viu Ana colocar uma boneca sob as saias, retirá-la devagar, de cabeça para baixo, dizendo: "Está vendo, o menininho que sai já esta quase todo para fora". Tempos depois, comendo uma laranja, disse:"Quero engoli-la e fazê-la descer até bem embaixo de minha barriga, então terei um filho". Certa manhã, estando o pai no banheiro, ela pulou na cama, estendeu-se de bruços e agitou as pernas dizendo: "Não é assim que papai faz?" Durante cinco meses pareceu abandonar suas preocupações; depois pôs-se a manifestar certa desconfiança contra o pai: pensou que ele quisera afogá-la etc. Um dia em que se divertia enfiando sementes na terra sob o olhar do jardineiro perguntou ao pai: "Os olhos foram plantados na cabeça? E os cabelos?" O pai explicou que já existiam em germe no corpo da criança antes de se desenvolver. Então ela perguntou: "Mas como foi que o pequeno Fritz entrou em mamãe? Quem o plantou no corpo dela? E você quem foi que plantou você em sua mamãe? E por onde foi que o Fritz saiu?" O pai disse então, sorrindo: "Que é que você acha?" Então ela designou os órgãos sexuais: "Saiu por aqui? — Isso mesmo. — Mas como foi que entrou em mamãe? Quem plantou a semente?" Então o pai explicou que era o pai quem dava a semente. Ela pareceu inteiramente satisfeita e no dia seguinte buliu com a mãe: "Papai me contou que o Fritz era um anjinho e que foi a cegonha que o trouxe". Mostrou-se desde então muito mais calma do que antes; teve, entretanto, um sonho em que via jardineiros urinando e entre eles o pai; sonhou também, depois de ver o jardineiro passar a plaina numa gaveta, que ele aplainava os órgãos genitais; estava evidentemente preocupada em conhecer o papel exato do pai. Parece que, mais ou menos instruída de tudo por volta dos 5 anos, não sentiu posteriormente nenhuma perturbação.


(4 ) Tratava-se de um irmão grande, fictício, que desempenhava papel importante em seus jogos.


A história é característica, embora amiúde a menina se interrogue menos precisamente acerca do papel do pai e, a esse respeito, os pais se mostrem muito evasivos. Muitas meninas escondem travesseiros sob o avental para brincar de mulher grávida, ou passeiam a boneca nas pregas do saiote e a deixam cair no berço, dão-lhe o seio. Os meninos, como as meninas, admiram o mistério da maternidade; todas as crianças têm uma imaginação "em profundidade" que as faz pressentir riquezas secretas no interior das coisas; todas são sensíveis ao milagre dos "encaixes", bonecas que encerram outras menores, caixas contendo outras caixas, ornatos que se reproduzem sob formas reduzidas; todas se encantam quando a seus olhos se desfolha um botão, quando se mostra o pintinho na casca do ovo, ou quando se desdobra, numa bacia com água, a surpresa das "flores japonesas". Assim, o menininho que abrindo um ovo de Páscoa cheio de ovinhos de açúcar exclama extasiado; "Oh! uma mamãe!" Fazer sair uma criança do ventre é bonito como um truque de prestidigitação. A mãe surge como que dotada da força mirífica das fadas. Muitos meninos desolam-se com o fato de um tal privilégio lhes ser recusado; mais tarde, se tiram ovos dos ninhos, se espezinham plantas, se destroem em torno de si a vida com uma espécie de raiva é porque se vingam de não ser capazes de fazê-la desabrochar, ao passo que a menina se encanta com poder criá-la um dia.




continua página 27...



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As mulheres de nossos dias estão prestes a destruir o mito do "eterno feminino": a donzela ingênua, a virgem profissional, a mulher que valoriza o preço do coquetismo, a caçadora de maridos, a mãe absorvente, a fragilidade erguida como escudo contra a agressão masculina. Elas começam a afirmar sua independência ante o homem; não sem dificuldades e angústias porque, educadas por mulheres num gineceu socialmente admitido, seu destino normal seria o casamento que as transformaria em objeto da supremacia masculina.
Neste volume complementar de O SEGUNDO SEXO, Simone de Beauvoir, constatando a realidade ainda imediata do prestígio viril, estuda cuidadosamente o destino tradicional da mulher, as circunstâncias do aprendizado de sua condição feminina, o estreito universo em que está encerrada e as evasões que, dentro dele, lhe são permitidas. Somente depois de feito o balanço dessa pesada herança do passado, poderá a mulher forjar um outro futuro, uma outra sociedade em que o ganha--pão, a segurança econômica, o prestígio ou desprestígio social nada tenham a ver com o comércio sexual. É a proposta de uma libertação necessária não só para a mulher como para o homem. Porque este, por uma verdadeira dialética de senhor e servo, é corroído pela preocupação de se mostrar macho, importante, superior, desperdiça tempo e forcas para temer e seduzir as mulheres, obstinando-se nas mistificações destinadas a manter a mulher acorrentada.
Os dois sexos são vítimas ao mesmo tempo do outro e de si. Perpetuar-se-á o inglório duelo em que se empenham enquanto homens e mulheres não se reconhecerem como semelhantes, enquanto persistir o mito do "eterno feminino". Libertada a mulher, libertar-se-á também o homem da opressão que para ela forjou; e entre dois adversários enfrentando-se em sua pura liberdade, fácil será encontrar um acordo.
O SEGUNDO SEXO, de Simone de Beauvoir, é obra indispensável a todo o ser humano que, dentro da condição feminina ou masculina, queira afirmar-se autêntico nesta época de transição de costumes e sentimentos.




Simone de Beauvoir 
por DJAMILA RIBEIRO






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