sábado, 25 de abril de 2020

Victor Hugo - Os Miseráveis: Fantine, Livro Terceiro - Em 1817, V — Em casa de Bombarda

Victor Hugo - Os Miseráveis


Primeira Parte - Fantine

Livro Terceiro — Em 1817




V — Em casa de Bombarda




Terminado o divertimento das montanhas russas, trataram de ir jantar. Assim, o alegre grupo, já um tanto fatigado, fundeara na casa de pasto de Bombarda, sucursal estabelecida nos Campos Elíseos pelo célebre restaurante de Bombarda, cuja tabuleta se ostentava então na rua de Rivolli, próximo à travessa Delorme. 

Uma sala grande, mas feia, com uma cama ao fundo (em vista da grande afluência na casa de pasto aos domingos, os jovens tiveram de contentar-se com este aposento); duas janelas, de onde se podia contemplar por entre os olmos o cais e o rio; duas mesas: numa, uma triunfante pilha de ramos misturados com chapéus de homem e de mulher; na outra, os quatro pares sentados em volta de um risonho amontoamento de pratos, travessas, copos, garrafas de vinho e de canjirões de cerveja à mistura; pouca ordem sobre a mesa, alguma desordem por baixo dela:


Faziam sob a mesa
Um tal motim c’os pés que ensurdeciam.

diz Molière.

Eis aqui onde acabava, às quatro horas da tarde, a peregrinação pastoril principiada às cinco da manhã. O sol declinava e o apetite extinguia-se.

Os Campos Elíseos, cheios de sol e de gente, cobriam-se de luz e de poeira, duas coisas de que se compõem a glória Os cavalos de Marly, mármores relinchantes, empinavam-se no meio de uma nuvem dourada. Os carros iam e vinham. Pela avenida de Neuilly descia um esquadrão de magníficos guardas de corpo, de clarim na frente; a bandeira branca, ligeiramente rosada pelos últimos raios de sol, flutuava na cúpula das Tulherias. A Praça da Concórdia, então praça de Luís XV, regurgitava de passeantes satisfeitos Muitos traziam a flor de lis de prata pendente da fita branca, que em 1817 ainda não tinha inteiramente desaparecido das casacas. Aqui e além, no meio dos passeantes que as cercavam e aplaudiam, viam-se grupos de raparigas dançando e lançando ao vento uma cantiga bourboniana, então célebre,destinada a fulminar os Cem Dias, cujo estribilho era o seguinte:



Venha o nosso pai de Gand.
Venha, venha o nosso pai.

Grupos de habitantes dos arrabaldes em trajos domingueiros e alguns até com as suas flores de lis como os burgueses, espalhavam-se pelo grande jardim e pelo jardim de Marigny, jogavam as argolas e giravam nos cavalos de madeira; uns bebiam, outros, aprendizes de impressor, traziam barretes de papel; era uma multidão compacta, cujas risadas se ouviam ao longe.

Todos se mostravam satisfeitos. Era um tempo de incontestável paz e de profunda tranquilidade realista; era a época em que um relatório confidencial e especial do prefeito da polícia Anglès ao rei, a respeito dos arrabaldes de Paris, terminava por estas linhas: «Considerando bem, senhor, não há nada a recear da parte desta gente. São criaturas descuidosas e indolentes como gatos. O povo miúdo das províncias é desinquieto, o de Paris não. Compõem-se de homens pequenos. Seriam necessários dois para fazer um granadeiro de Vossa Majestade. Da parte do povo miúdo de Paris não há que recear. É notável como a estatura desta gente tem diminuído há cinquenta anos a esta parte; o povo dos arrabaldes está mais pequeno do que antes da Revolução: Não é gente perigosa. Enfim, é canalha inofensiva».

Os prefeitos da polícia não julgam possível que um gato se transforme em leão; todavia, é este o milagre do povo de Paris. Além disso, o gato, tão desprezado pelo conde de Anglès, tinha a estima das repúblicas antigas; incarnava a seus olhos a liberdade, e, como para servir de confronto com a Minerva sem braços do Pireu, havia na praça pública de Corinto o colosso de bronze de um gato.

A ingênua polícia da Restauração encarava o povo de Paris por um lado muito favorável. Não é tão inofensiva canalha como parece. O parisiense é para o francês o que o ateniense é para o grego; ninguém dorme melhor; ninguém é mais francamente frívolo e preguiçoso; ninguém melhor do que ele dá mostras de ser esquecido; porém, não se fiem nas aparências. É propenso a toda a espécie de indolência, mas quando daí pode resultar glória, é incrível como ele se entrega a toda a qualidade de furor. Dai-lhe um chuço e vereis o 10 de Agosto; dai-lhe uma espingarda, tereis Austerlitz. O povo de Paris é o ponto de apoio de Napoleão e o recurso de Danton. Tratando-se da pátria, alista-se; tratando-se da liberdade, levanta barricadas. Cuidado! Os seus cabelos irados tornam-se épicos; a sua blusa transforma-se em clâmide. Acautelai-vos. Da primeira rua Grenetat que vir, fará forcas caudinas. Em soando a hora, o habitante dos arrabaldes cresce, o homem pequeno levanta-se e o seu olhar será terrível, o seu hálito torna-se tempestade, e daquele débil peito saem rajadas capazes de derrubar as eminências dos Alpes. É ajudada por esses habitantes dos arrabaldes de Paris que a revolução conquista a Europa. Esses homens cantam; é a sua alegria. Proporcionai-lhe a canção à sua natureza e vereis! Quando só têm por estribilho a Carmagnole, derrubam Luís XVI; fazei-o cantar a Marselhesa e libertarão o mundo!

Escrita esta nota à margem do relatório de Anglès, voltemos aos nossos quatro pares, que acabavam de jantar.





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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.


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Victor Hugo

OS MISERÁVEIS

Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira (1851-1888)




Literatura Fundamental - Victor Hugo
- Maria Lúcia Dias Mendes





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