sexta-feira, 17 de abril de 2020

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: IV As secas

OS SERTÕES 

Euclides da Cunha

Volume 1



A TERRA




IV



continuando...




As secas


O sertão de Canudos é um índice sumariando a fisiografia dos sertões do Norte. Resume-os, enfeixa os seus aspectos predominantes numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum.

De fato, a inflexão peninsular, extremada pelo cabo de S. Roque, faz que para ele convirjam as lindes interiores de seis estados — Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí — que o tocam ou demoram distantes poucas léguas.

Desse modo é natural que as vicissitudes climáticas daqueles nele se exercitem com a mesma intensidade, nomeadamente em sua manifestação mais incisiva, definida numa palavra que é o terror máximo dos rudes patrícios que por ali se agitam — a seca.

Escusamo-nos de longamente a estudar, averbando o desbarate dos mais robustos espíritos no aprofundar-lhe a gênese, tateantes ao través de sem-número de agentes complexos e fugitivos. Indiquemos, porém, inscrita num traçado de números inflexíveis, esta fatalidade inexorável.

De fato, os seus ciclos — porque o são no rigorismo técnico do termo — abrem-se e encerram-se com um ritmo tão notável, que recordam o desdobramento de uma lei natural, ainda ignorada.

Revelou-o, pela primeira vez, o senador Tomás Pompeu, traçando um quadro por si mesmo bastante eloquente, em que os aparecimentos das secas, no século passado e atual, se defrontam em paralelismo singular, sendo de presumir que ligeiras discrepâncias indiquem apenas defeitos de observação ou desvios na tradição oral que as registrou.

De qualquer modo ressalta à simples contemplação uma coincidência repetida bastante para que se remova a intrusão do acaso.

Assim, para citarmos apenas as maiores, as secas de 1710-1711, 1723-1727, 1736-1737, 1744-1745, 1777-1778, do século XVIII, se justapõem às de 1808-1809, 1824-1825, 1835-1837, 1844-1845, 1877-1879, do atual.

Esta coincidência, espelhando-se quase invariável, como se surgisse do decalque de uma quadra sobre outra, acentua-se ainda na identidade das quadras remansadas e longas, que, em ambas, atreguaram a progressão dos estragos.

De fato, sendo, no século passado, o maior interregno de 32 anos (1745-1777), houve no nosso outro absolutamente igual e, o que é sobremaneira notável, com a correspondência exatíssima das datas (1845-1877). Continuando num exame mais íntimo do quadro, destacam-se novos dados fixos e positivos, aparecendo com um rigorismo de incógnitas que se desvendam. Observa-se, então, uma cadência rara perturbada na marcha do flagelo, intercortado de intervalos pouco díspares entre 9 e 12 anos, e sucedendo-se de maneira a permitirem previsões seguras sobre a sua irrupção.

Entretanto, apesar desta simplicidade extrema nos resultados imediatos, o problema, que se pode traduzir na fórmula aritmética mais simples, permanece insolúvel.




Hipótese sobre a gênese das secas


Impressionado pela razão desta progressão raro alterada, e fixando-a um tanto forçadamente em onze anos, um naturalista, o barão de Capanema, teve o pensamento de rastrear nos fatos extraterrestres, tão característicos pelos períodos invioláveis em que se sucedem, a sua origem remota. E encontrou na regularidade com que repontam e se extinguem, intermitentemente, as manchas da fotosfera solar, um símile completo.

De fato, aqueles núcleos obscuros, alguns mais vastos que a Terra, negrejando dentro da cercadura fulgurante das fáculas, lentamente derivando à feição da rotação do Sol, têm, entre o máximo e o mínimo da intensidade, um período que pode variar de nove a doze anos. E como desde muito a intuição genial de Herschel lhes descobrira o influxo apreciável na dosagem de calor emitido para a Terra, a correlação surgia inabalável, neste estear-se em dados geométricos e físicos acolchetando-se num efeito único.

Restava equiparar o mínimo das manchas, anteparo à irradiação do grande astro, ao fastígio das secas no planeta torturado — de modo a patentear, cômpares, os períodos de uma e outras.

Falhou neste ponto, em que pese à sua forma atraentíssima, a teoria planeada: raramente coincidem as datas do paroxismo estival, no Norte, com as daquele.

O malogro desta tentativa, entretanto, denuncia menos a desvalia de uma aproximação imposta rigorosamente por circunstâncias tão notáveis, do que o exclusivismo de atentar-se para uma causa única. Porque a questão, com a complexidade imanente aos fatos concretos, se atém, de preferência, a razões secundárias, mais próximas e enérgicas, e estas, em modalidades progredindo, contínuas, da natureza do solo à disposição geográfica, só serão definitivamente sistematizadas quando extensa série de observações permitir a definição dos agentes preponderantes do clima sertanejo.

Como quer que seja, o penoso regime dos estados do Norte está em função de agentes desordenados e fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeitas às perturbações locais, derivadas da natureza da terra, e a reações mais amplas, promanadas das disposições geográficas. Daí as correntes aéreas que o desequilibram e variam.

Determina-o em grande parte, e talvez de modo preponderante, a monção de nordeste, oriunda da forte aspiração dos planaltos interiores que, em vasta superfície alargada até ao Mato Grosso, são, como se sabe, sede de grandes depressões barométricas, no estio. Atraído por estas, o nordeste vivo, ao entrar, de dezembro a março, pelas costas setentrionais, é singularmente favorecido pela própria conformação da terra, na passagem célere por sobre os chapadões desnudos que irradiando intensamente lhe alteiam o ponto de saturação diminuindo as probabilidades das chuvas, e repelindo-o, de modo a lhe permitir acarretar para os recessos do continente, intacta, sobre os mananciais dos grandes rios, toda a umidade absorvida na travessia dos mares.

De fato, a disposição orográfica dos sertões, à parte ligeiras variantes — cordas de serras que se alinham para nordeste paralelamente à monção reinante — facilita a travessia desta. Canaliza-a. Não a contrabate num antagonismo de encostas, abarreirando-a, alteando-a, provocando-lhe o resfriamento, e a condensação em chuvas.

Um dos motivos das secas repousa, assim, na disposição topográfica.

Falta às terras flageladas do Norte uma alta serrania que, correndo em direção perpendicular àquele vento, determine a dynamic colding, consoante um dizer expressivo.

Um fato natural de ordem mais elevada esclarece esta hipótese.

Assim é que as secas aparecem sempre entre duas datas fixadas há muito pela prática dos sertanejos, de 12 de dezembro a 19 de março. Fora de tais limites não há um exemplo único de extinção de secas. Se os atravessam, prolongam-se fatalmente por todo o decorrer do ano, até que se reabra outra vez aquela quadra. Sendo assim e lembrando-nos que é precisamente dentro deste intervalo que a longa faixa das calmas equatoriais, no seu lento oscilar em torno do equador, paira no zênite daqueles estados, levando a borda até aos extremos da Bahia, não poderemos considerá-la, para o caso, com a função de uma montanha ideal que, correndo de leste a oeste e corrigindo momentaneamente lastimável disposição orográfica, se anteponha à monção e lhe provoque a parada, a ascensão das correntes, o resfriamento subseqüente e a condensação imediata nos aguaceiros diluvianos que tombam então, de súbito, sobre os sertões?

Este desfiar de conjecturas tem o valor único de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão que duplamente nos interessa, pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu significado mais íntimo no envolver o destino de extenso trato do nosso país. Remove, por isto, a segundo plano o influxo até hoje inutilmente agitado dos alísios, e é de alguma sorte fortalecido pela intuição do próprio sertanejo para quem a persistência do nordeste, — o vento da seca, como o batiza expressivamente — equivale à permanência de uma situação irremediável e crudelíssima.

As quadras benéficas chegam de improviso.

Depois de dous ou três anos, como de 1877-1879, em que a insolação rescalda intensamente as chapadas desnudas, a sua própria intensidade origina um reagente inevitável. Decai afinal, por toda a parte, de modo considerável, a pressão atmosférica. Apruma-se, maior e mais bem definida, a barreira das correntes ascensionais dos ares aquecidos, antepostas às que entram pelo litoral. E entrechocadas umas e outras, num desencadear de tufões violentos, alteiam-se, retalhadas de raios, nublando em minutos o firmamento todo, desfazendo-se logo depois em aguaceiros fortes sobre os desertos recrestados.

Então parece tornar-se visível o anteparo das colunas ascendentes, que determinam o fenômeno, na colisão formidável com o nordeste.

Segundo numerosas testemunhas — as primeiras bátegas despenhadas da altura não atingem a terra. A meio caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para, outra vez condensando-se, precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a princípio não umedecem, tornando ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase como se houvessem caído sobre chapas incandescentes; para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e contínua, até que se formem, afinal, os primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas, afluindo em regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando-se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando-se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente os esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e escuras...

Se ao assalto subitâneo se sucedem as chuvas regulares, transmudam-se os sertões, revivescendo. Passam, porém, não raro, num giro célebre, de ciclone. A drenagem rápida do terreno e a evaporação, que se estabelece logo mais viva, tornam-nos, outra vez, desolados e áridos. E penetrando-lhes a atmosfera ardente, os ventos duplicam a capacidade higrométrica, e vão, dia a dia, absorvendo a umidade exígua da terra — reabrindo o ciclo inflexível das secas...





continua 017...



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Leia também:

OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Preliminares
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I A entrada do sertão
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: I Primeiras impressões
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: II Do alto de Monte Santo
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: III O clima
OS SERTÕES, Euclides da Cunha - A Terra: IV As caatingas


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Os Sertões, de Euclides da Cunha

Fonte: CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984 (Biblioteca do Estudante). 

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.





Literatura Fundamental - Os Sertões 
- Leopoldo Bernucci






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