sábado, 25 de abril de 2020

Pedagogia do Oprimido - 3. A dialogicidade... O diálogo começa na busca do conteúdo programático

Paulo Freire






“educação como prática da liberdade”:

alfabetizar é conscientizar 



AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO 
E AOS QUE NELES SE 
DESCOBREM E, ASSIM 
DESCOBRINDO-SE, COM ELES 
SOFREM, MAS, SOBRETUDO, 
COM ELES LUTAM. 



3. A dialogicidade – essência da educação 
como prática da liberdade




O DIÁLOGO COMEÇA NA BUSCA DO
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO




Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade comece, não quando o educador-educando se encontra com os educandos- educadores em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes. Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação. 

Para o “educador- bancário”, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do conteúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus alunos. E a esta pergunta responderá ele mesmo, organizando seu programa.

Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos, mas a revolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada. [1]


[1] Em uma longa conversação com Malraux, declarou Mao: “Vous savez que je proclame depuis longtemps: Nous devons enseigner aux masses avec précision ce que nous avons reçu d’elles avec confusion”. André Malraux, – Antimemoires. Paris, Gallimard, 1967. p. 531. Nesta afirmação de Mao está toda uma teoria dialógica de constituição do conteúdo programático da educação, que não pode ser elaborado a partir das finalidades do educador, do que lhe pareça ser o melhor para seus educandos.


A educação autêntica, repitamos, não se faz de “A” para “B” ou de “A” sobre “B”, mas de “A” com “B”, mediatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e desafia a uns e a outros, originando visões ou pontos de vista sobre ele. Visões impregnadas de anseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que implicitam temas significativos, à base dos quais se constituirá o conteúdo programático da educação. Um dos equívocos de uma concepção ingênua do humanismo, está em que, na ânsia de corporificar um modelo ideal de “bom homem”, se esquece da situação concreta, existencial, presente, dos homens mesmos. “O humanismo consiste, (diz Furter) em permitir a tomada de consciência de nossa plena humanidade, como condição e obrigação: como situação e projeto.” [2]


[ 2] Pierre Furter, op. cit., p. 165.


Simplesmente, não podemos chegar aos operários, urbanos ou camponeses, estes, de modo geral, imersos num contexto colonial, quase umbilicalmente ligados ao mundo da natureza de que se sentem mais partes que transformadores, para, à maneira da concepção “bancária”, entregar-lhes “conhecimento” ou impor-lhes um modelo de bom homem, contido no programa cujo conteúdo nós mesmos organizamos.

Não seriam poucos os exemplos, que poderiam ser citados, de planos, de natureza política ou simplesmente docente, que falharam porque os seus realizadores partiram de sua visão pessoal da realidade. Porque não levaram em conta, num mínimo instante, os homens em situação a quem se dirigia seu programa, a não ser como puras incidências de sua ação.

Para o educador humanista ou o revolucionário autêntico a incidência da ação é a realidade a ser transformada por eles com os outros homens e não estes.

Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores.

Lamentavelmente, porém, neste “conto” da verticalidade da programação, “conto” da concepção “bancária”, caem muitas vezes lideranças revolucionárias, no seu empenho de obter a adesão do povo à ação revolucionária.

Acercam-se das massas camponesas ou urbanas com projetos que podem corresponder à sua visão do mundo, mas não necessariamente à do povo. [3]


[3] “Pour établir une liaison avec les masses, nous devotns nous conformer a leurs désirs. Dans tout travail pour les masses, nous devons partir de leurs besoins, et non de nos propres désirs, si louables soient -ils. Il arrive souvent que les masses aient objetivement besoin de telles ou telles transformations, mais que subjetivement elles ne soient conscientes de ce besoin, que'elles n’aient ni la valonté ni le désir de les réaliser; dans ce cas, nous devons attendre avec patience; c'est seulement lorsque, à la suite de notre travail, les masses seront, dans leurs majorité conscientes de la nécessité de ces transformations, lorsqu’elles auront la volonté et le desir de les faire aboutir ou’on pourra les realiser; sinon, l'on risque de se couper des masses. (...) Deux principes doivent nous guider: premièrement, les besoins réels des masses et non les besoins nés de notre imagination; deuxiement, le désir librement exprimé par les masses, les resolutions qu'elles ont prises elles memes et non celles que nous prenons à leur place”. Mao Tsé-Tung, Le Front Uni dans le Travail Culturel, 1944.


Esquecem- se de que o seu objetivo fundamental é lutar com o povo pela recuperação da humanidade roubada e não conquistar o povo. Este verbo não deve caber na sua linguagem, mas na do dominador. Ao revolucionário cabe libertar e libertar-se com o povo, não conquistá-lo.

As elites dominadoras, na sua atuação política, são eficientes no uso da concepção “bancária” (em que a conquista é um dos instrumentos) porque, na medida em que esta desenvolve uma ação apassivadora, coincide com o estado de “imersão” da consciência oprimida. Aproveitando esta “imersão” da consciência oprimida, estas elites vão transformando-a naquela “vasilha” de que falamos, e pondo nela slogans que a fazem mais temerosa ainda da liberdade.

Um trabalho verdadeiramente libertador é incompatível com esta prática. Através dele, o que se há de fazer é propor aos oprimidos os slogans dos opressores, como problema, proporcionando-se, assim, a sua expulsão de “dentro” dos oprimidos. 

Afinal, o empenho dos humanistas não pode ser o da luta de seus slogans dos opressores, tendo como intermediários os oprimidos, como se fossem “hospedeiros” dos slogans de uns e de outros. O empenho dos humanistas, pelo contrário, está em que os oprimidos tornem consciência de que, pelo fato mesmo de que estão sendo “hospedeiros” aos opressores, como seres duais, não estão podendo Ser. 

Esta prática implica, por isto mesmo, em que o acercamento às massas populares se faça, não para levar-lhes uma mensagem “salvadora”, em forma de conteúdo a ser depositado, mas, para, em diálogo com elas, conhecer, não só a objetividade em que estão, mas a consciência que tenham desta objetividade; os vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo em que e com que estão. 

Por isto é que não podemos, a não ser ingenuamente, esperar resultados positivos de um programa, seja educativo num sentido mais técnico ou de ação política, se, desrespeitando a particular visão do mundo que tenha ou esteja tendo o povo, se constitui numa espécie de “invasão cultural”, ainda que feita com a melhor das intenções. Mas “invasão cultural” sempre. [4]


[4] No capítulo seguinte, analisaremos detidamente esta questão,



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PAULO FREIRE

PEDAGOGIA DO OPRIMIDO

23ª Reimpressão

PAZ E TERRA


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© Paulo Freire, 1970
Capa
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(Preparação pelo Centro de Catalogação -na-fonte do
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Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
(O mundo, hoje, v.21)


1. Alfabetizaço – Métodos 2. Alfabetizaço – Teoria I. Título II. Série
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Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido




"Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os dominadores." 




Serginho Groisman entrevista Paulo Freire





"Ele (Paulo Freire) dizia que era pequeno, para poder crescer. Gente grande de verdade sabe que é pequeno e, por isso, cresce. Gente muito pequena acha que já é grande e o único modo dela crescer é rebaixando os outros."  Mario Sergio Cortella


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