sábado, 10 de outubro de 2020

Gabriel G Márquez - Cem Anos de Solidão (1.7) - O tempo aplacou o seu propósito

Cem Anos de Solidão


Gabriel Garcia Márquez


(1.7)



para jomí garcía ascot 

e maría luisa elío


continuando...


O tempo aplacou o seu propósito deslumbrado, mas agravou o seu sentimento de frustração. Refugiou-se no trabalho. Resignou-se a ser um homem sem mulher a vida inteira, para esconder a vergonha da sua inutilidade. Enquanto isso, Melquíades acabou de plasmar nas suas placas tudo o que era plasmável em Macondo e abandonou o laboratório de daguerreotipia aos delírios de José Arcadio Buendía, que tinha resolvido utilizá-lo para obter a prova científica da existência de Deus. Mediante um complicado processo de exposições superpostas, tomadas em lugares diferentes da casa, estava certo de fazer mais cedo ou mais tarde o daguerreótipo de Deus, se existisse, ou acabar de uma vez por todas com a suposição da sua existência. Melquíades aprofundou-se nas interpretações de Nostradamus. Ficava até muito tarde, sufocando-se dentro do seu desbotado casaco de veludo, traçando garranchos em papéis, com as suas minúsculas mãos de pardal, cujos anéis tinham perdido o brilho de outra época. Certa noite, acreditou encontrar uma predição sobre o futuro de Macondo. Seria uma cidade luminosa, com grandes casas de vidro, onde não restava nem rastro da estirpe dos Buendía. “É engano”, trovejou José Arcadio Buendía. “Não serão casas de vidro, mas de gelo, como eu sempre sonhei, e sempre haverá um Buendía, pelos séculos dos séculos.” Naquela casa extravagante, Úrsula lutava para preservar o bom senso, tendo ampliado o negócio de animaizinhos de caramelo com um forno que produzia, durante toda a noite, cestos e cestos de pão e uma prodigiosa variedade de pudins, suspiros e biscoitinhos, que se esfumavam em poucas horas pelas veredas do pantanal. Havia atingido a idade em que tinha direito a descansar, mas era cada vez mais ativa. Tão ocupada andava com as suas prósperas empresas que uma tarde olhou por distração para o quintal enquanto a índia a ajudava a adoçar a massa, e viu duas adolescentes desconhecidas e formosas bordando no bastidor à luz do crepúsculo. Eram Rebeca e Amaranta. Mal haviam tirado o luto da avó, que guardaram com inflexível rigor durante três anos, e a roupa de cor parecia haver dado a elas um novo lugar no mundo. Rebeca, ao contrário do que se pôde esperar, era a mais bela. Tinha uma pele diáfana, olhos grandes e repousados, e umas mãos mágicas que pareciam elaborar com fios invisíveis a trama do bordado. Amaranta, a menor era um pouco sem graça, mas tinha a distinção natural, a altivez interior da avó morta. Junto delas, embora já se revelasse o impulso físico de seu pai, Arcadio parecia um menino.Tinha-se dedicado a aprender a arte da ourivesaria com Aureliano, que além disso lhe ensinara a ler e escrever. Úrsula percebeu de repente que a casa se havia enchido de gente, seus filhos estavam quase para casar e ter filhos, e que veriam obrigados a se dispersar por falta de espaço. Então tirou o dinheiro juntado em longos anos de trabalho duro, assumiu compromissos com os seus clientes, e empreendeu a ampliação da casa. Ordenou que se construíssem uma sala formal para as visitas, outra mais cômoda e fresca para o uso diário, um refeitório com uma mesa de doze lugares, onde se sentasse a família com todos os seus convidados; nove quartos com janelas para o quintal e uma longa varanda protegida do esplendor do meio-dia por um jardim de rosas, com uma amurada para colocar vasos de fetos e de begônias. Mandou alargar a cozinha para construir dois fornos, destruir a velha despensa onde Pilar Ternera tinha lido o futuro de José Arcadio , e construir outra duas vezes maior, para que nunca faltasse alimentos em casa. Mandou construir no quintal, à sombra do castanheiro, um banheiro para as mulheres e outro para os homens, e ao fundo uma cavalariça grande, um galinheiro um estábulo de ordenha e uni viveiro aberto aos quatro ventos para que se instalassem a seu gosto os pássaros sem rumo. Seguida por dúzias de pedreiros e carpinteiros, como se tivesse contraído a febre alucinante do marido, Úrsula ordenava a posição da luz e a conduta do calor, e dividia o espaço sem a menor noção dos seus limites. A primitiva construção dos fundadores se encheu de ferramentas e materiais, de operários agoniados pelo suor, que pediam a todo mundo o favor de não atrapalhar, sem pensar que eram eles que atrapalhavam, exasperados pelo saco de ossos humanos que os perseguia por todas as partes com o seu surdo chocalhar. Naquele ambiente incômodo, todos respirando cal viva e melados de alcatrão, ninguém entendeu muito bem como foi surgindo das entranhas da terra não só a maior casa que jamais haveria no povoado, como também a mais hospitaleira e fresca que jamais houvera no âmbito do pantanal. José Arcadio Buendía, tentando surpreender a Divina Providência no meio do cataclismo, foi quem menos entendeu. A nova casa estava quase terminada quando Úrsula o tirou do seu mundo quimérico para informá-lo de que havia uma ordem para pintar a fachada de azul e não de branco, como eles queriam. Mostrou-lhe a disposição oficial escrita num papel. José Arcadio Buendía, sem compreender o que dizia a sua esposa, decifrou a assinatura. 

— Quem é esse sujeito? — perguntou.

— O delegado — disse Úrsula desconsolada. — Dizem que é uma autoridade que o governo mandou.

O Sr. Apolinar Moscote, o delegado, tinha chegado a Macondo na surdina. Baixou no Hotel do Jacob — instalado por um dos primeiros árabes que chegaram mascateando bugigangas por papagaios — e no dia seguinte alugou um quartinho com porta para a rua, a duas quadras da casa dos Buendía. Pôs uma mesa e uma cadeira que comprou de Jacob, pregou na parede um escudo da República que tinha trazido consigo, e pintou na porta o letreiro: Delegacia. Sua primeira atitude foi ordenar que todas as casas se pintassem de azul para celebrar o aniversário da independência nacional. José Arcadio Buendía, com a cópia da ordem na mão, encontrou-o dormindo a sesta na rede que tinha pendurado no estreito escritório. “Foi o senhor que escreveu este papel?”, perguntou. O Sr. Apolinar Mascote, um homem maduro, tímido de compleição sanguínea, respondeu que sim. “Com que direito?”, voltou a perguntar José Arcadio Buendía. O Sr. Apolinar procurou um papel na gaveta da mesa e mostrou; “Fui nomeado delegado deste povoado.” José Arcadio Buendía nem sequer olhou para a nomeação.

— Neste povoado não mandamos com papéis — disse sem perder a calma. — E para que fique sabendo de uma vez, não precisamos de nenhum delegado, porque aqui não há nada para delegar.

Diante da impavidez do Sr. Apolinar Moscote, sempre sem levantar a voz, fez um pormenorizado relato de como haviam fundado a aldeia, de como tinham repartido a terra, aberto caminhos e introduzido as melhoras que lhes fora exigindo a necessidade, sem ter incomodado governo nenhum e ninguém os incomodasse. “Somos tão pacíficos que sequer morremos de morte natural”, disse. “Veja que não temos cemitério.” Não estava magoado pelo governo não os haver ajudado. Pelo contrário, alegrava-se de até então os tivesse deixado crescer em paz, e esperava continuasse deixando, porque eles não tinham fundado povoado para que o primeiro que chegasse lhes fosse dizer o que deviam fazer. O Sr. Apolinar Moscote havia posto um paletó de linho, branco como as suas calças, sem perder um só momento a pureza dos seus gestos.

— De modo que se o senhor quiser ficar aqui, como outro cidadão comum e corrente, seja bem-vindo — concluiu José Buendía. — Mas se vem implantar a desordem, obrigando o povo a pintar as casas de azul, pode juntar os trapos para o lugar de onde veio. Porque a minha casa vai ser branca como uma pomba.

O Sr. Apolinar Moscote ficou pálido. Deu um passo atrás e apertou os maxilares para dizer com certa aflição:

— Quero adverti-lo de que estou armado.

José Arcadio Buendía não pôde precisar em que momento subiu às mãos a força juvenil com que derrubava um cavalo. Agarrou o Sr. Apolinar Moscote pelo colarinho e levantou-o à altura dos olhos.

— Faço isto — disse ele porque prefiro carregá-lo vivo e não ter de continuar a carregá-lo morto pelo resto de minha vida.

Assim o levou, pelo meio da rua, suspenso pelo colarinho, até que o pôs sobre os seus dois pés no caminho do pântano. Uma semana depois, estava de volta com seis soldados descalços e esfarrapados, armados de espingardas, e um carro de boi onde viajavam sua mulher e suas sete filhas. Mais tarde chegaram mais duas carroças com os móveis, os baús e os utensílios domésticos. Instalou a família no Hotel do Jacob, enquanto arranjava uma casa, e voltou a abrir o escritório protegido pelos soldados. Os fundadores de Macondo, resolvidos a expulsar os invasores, foram com os seus filhos mais velhos colocar-se à disposição de José Arcadio Buendía. Mas ele se opôs, conforme explicou, porque o Sr. Apolinar Moscote tinha voltado com a mulher e as filhas, e não era coisa de homem envergonhar outro diante da família. De modo que decidiu resolver a situação por bem.

Aureliano o acompanhou. Já então tinha começado a cultivar o bigode negro de pontas engomadas, e tinha a voz um pouco retumbante que haveria de caracterizá-lo na guerra. Desarmados, sem dar importância à guarda, entraram no escritório do delegado. O Sr. Apolinar Moscote não perdeu a serenidade. Apresentou-os a duas de suas filhas que se encontravam ali por acaso: Amparo, de 16 anos, morena como a mãe, e Remedios, de apenas nove anos, um cromo de menina com pele de lírio e olhos verdes. Eram graciosas e bem-educadas. Logo que eles entraram, antes de serem apresentadas, trouxeram-lhes cadeiras para que se sentassem. Mas ambos permaneceram de pé.

— Muito bem, amigo — disse José Arcadio Buendía -o senhor fica aqui, mas não porque tem na porta esses bandoleiros de trabuco, e sim por consideração à senhora sua esposa e às suas filhas.

O Sr. Apolinar Moscote se desconcertou, mas José Arcadio Buendía não lhe deu tempo para responder. “Só lhe impomos duas condições”, acrescentou. “A primeira: que cada um pinte a sua casa da cor que quiser. A segunda: que os soldados vão embora imediatamente. Nós garantimos a ordem.”

O delegado levantou a mão direita com todos os dedos.

— Palavra de honra?

— Palavra de inimigo — disse José Arcadio Buendía. E num tom amargo: — Porque uma coisa eu quero lhe dizer: o senhor e eu continuamos sendo inimigos.

Nessa mesma tarde os soldados foram embora. Poucos dias depois José Arcadio Buendía arranjou uma casa para a família do delegado. Todo mundo ficou em paz, menos Aureliano. A imagem de Remedios, a filha mais nova do delegado, que pela idade poderia ser sua filha, ficou doendo em alguma parte de seu corpo. Era uma sensação física que quase o incomodava para andar, como uma pedrinha no sapato.




continua página 41...

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