quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Lima Barreto - 19. Lourenço, o Magnífico (2)

Lima Barreto

O Homem que sabia Javanês e outros contos





Lourenço, o Magnífico



2



Quando Lourenço Caruru, o corretor nouveau-riche, deu balanço dos seus lucros, em 1919, e viu que tinha ganho mais de mil contos, procurou gastar o mais que pudesse, com repercussão, porém, nos jornais e nas altas rodas. Vimos como ele gastou duzentos contos em mármores suecos, a que ele, pitorescamente, denominou – “calungas”. Embora fizesse outros gastos tão avultados, a sua fortuna em nada se ressentiu deles, pois os ganhos em especulações da “praça” de navios, de compra e venda de cereais, de carnes e, até, na declaração de guerra do Brasil à Alemanha, foram tais que cobriram todas as suas dissipações e as de “madama”, a princesa de brasserie, para quem montara uma luxuosa moradia. 

Verificando tão extraordinários lucros, Caruru pôs-se a pensar em que devia gastar dinheiro.

Ele estava na situação daquele sujeito a quem o diabo dera uma carteira, contendo certa avultada quantia que ele devia gastar totalmente até à meia-noite. Toda a manhã, ela amanhecia cheia.

O sujeito supôs a coisa fácil e, durante os primeiros meses, cumpriu o pacto. Jogava, bebia, viajava, galanteava, etc., etc.; mas vieram o enfado e o cansaço dessas coisas todas, e, numa bela noite, chega-lhe a hora fatal das doze e ele não tinha gasto todo o dinheiro da carteira.

O diabo surge-lhe e pergunta-lhe:

– Então? A tua alma é minha... Não soubeste gastar o dinheiro...

– É que ... estou doente.

– Qual, doente! Qual nada! objeta o demônio. Se o soubesses gastar, terias escapado do inferno por toda a eternidade.

– Como?

– Fazendo o bem.

Naqueles começos do ano de 1919, Lourenço, o Magnífico, estava em situação semelhante. Ele não sabia como gastar a cobreira que ganhara... Deu em mudar o estilo do mobiliário da casa; e fazia as maiores extravagâncias.

“Madama” não tinha também grande força de fantasia. No fundo, ela era uma pequena burguesa, de gostos simples, que fazia, com aqueles fingimentos de aventureira de alto coturno, de Lady Hamilton de um “rasta” brasileiro, numa cidade mais ou menos cheia de selvagens, que fazia, explicava, o seu pecúlio com que, na sua segunda velhice, pois estava na primeira, ficasse a coberto de necessidades, auxiliasse os parentes e fizesse obras pias e de caridade que a levassem direitinho ao céu dos justos, apesar de tudo.

Ambos sem fantasia, não atinavam como gastar a melgueira, cujo ganho na algibeira de Caruru representava a morte, a dor, o penoso trabalho de centenas de miseráveis.

A história de mudança do mobiliário já estava cacete. Eram andorinhas pra cá; eram andorinhas pra lá. A vizinhança, no contar dos criados, já troçava. “Madama” gostava, porque sempre “refundia” o preço de venda da que se ia; mas, apesar de tal, teve medo do ridículo e parou com a coisa.

Lourenço, o Magnífico, muito menos fértil de imaginação fantasista, estava atarantado, mesmo porque, como o tal sujeito da lenda, não sabia fazer bem.

Os seus princípios de economia e subordinação a um ganho restrito junto ao seu natural visceralmente seco, tinham-no feito viver à parte da caridade. Sempre embirrara com os mendigos:

– É uma vergonha, dizia ele, que, numa cidade como esta, um homem não possa andar, sem que não encontre dez pobres, para lhe estender a mão. Que faz a polícia? O governo não cria asilos?

Há pessoas que têm medo de defuntos; Lourenço, o Magnífico, sempre tivera ojeriza aos pobres e miseráveis. Eram-lhe como espectros...

Não sabia, portanto, como aplicar os seus desmedidos lucros; e tão enleado estava nessa atroz cogitação que até pensou em arranjar outra “madama”. Era como ele sabia gastar... Mas... teve medo. “Madama” nº 1 era uma fera de ciúmes (ela é quem sabia de quem os tinha); e bem podia fazer uma das suas. Lourenço, o Magnífico, não quis levar o propósito avante; mas... precisava gastar dinheiro, fosse como fosse.

Uma tarde, em que ele chegara ao seu appartement, antes de “madama”, esta veio encontrá-lo, ao chegar ela da rua, sentado a ler os jornais vespertinos. Falou-lhe “madama” com o seu português bordelengo em que ela queria, na ocasião, pôr muita meiguice:

– Sabes, Lourenço, de uma coisa?

– Que é?

– Acabo de vir de uma exposição de tapeçarias. Que coisas lindas! Dizem que foi de uma grande casa russa, cujos membros conseguiram salvar do saque dos sanguinários socialistas que tomaram conta da Rússia. Há até um autêntico gobelino; mas não foi deste que eu gostei. O que gostei mais, foi de um “Hércules e Onfale”. Queres comprá-lo?

– Quanto custa?

– Vinte contos.

– Estás doida, filha! Ainda se fosse em outra coisa; mas dar tanto dinheiro, para se pôr os pés... Nessa não vou eu!...

“Madama” pôs-se de pé e disse com todo desprezo:

– Burro! Selvagem! Sale singe! Pois você pensa que é um tapete qualquer? Ora, bolas! É um verdadeiro quadro que se estende na parede. Aprenda, macaquito!

– Não sabia, acudiu o corretor humildemente, mas, se é assim, amanhã terá você o tapete.

Não só comprou esse, como mais outros; e a “madama” ganhou dezoito contos de comissão.






continua página 35...
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Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881, sete anos antes da assinatura da Lei Áurea. Trabalhando como jornalista, valeu-se de uma linguagem objetiva e informal, mais tarde valorizada por seus contemporâneos e pelos modernistas, para relatar o cotidiano dos bairros pobres do Rio de Janeiro como poucos…

Definida pelo próprio autor como “militante”, sua produção literária está quase inteiramente voltada para a investigação das desigualdades sociais. Em muitas obras, como no seu célebre romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e no conto O Homem que Sabia Javanês, o método escolhido por Lima Barreto para tratar desse tema é o da sátira, cheia de ironia, humor e sarcasmo.

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O homem que sabia Javanês e outros contos, de Lima Barreto 

Fonte: 
BARRETO, Lima. O homem que sabia javanês e outros contos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997.
Texto proveniente de: 
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por: 
Rodrigo Souza, Curitiba - PR 

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Lima Barreto - 19. Lourenço, o Magnífico (3)

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