sábado, 20 de março de 2021

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: Memórias de duas jovens esposas (27)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1



1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada




Memórias de duas jovens esposas





PRIMEIRA PARTE



XXVII – DA MESMA PARA A MESMA 


Outubro de 1825 

Nada mais te escrevi, querida, desde o casamento na mairie, e já lá se vão oito meses. Quanto a ti, nem uma palavra! Senhora, isso é horrível.

Bem, fomos em carruagem de posta para o castelo de Chantepleurs, a propriedade comprada por Macumer no Nivernais, nas margens do Loire, a sessenta léguas de Paris. Nossa criadagem, menos a camareira, já lá estava, esperando-nos, e chegamos com extrema rapidez, no dia seguinte à tarde. Dormi desde Paris até além de Montargis. A única liberdade que meu senhor e dono se permitiu foi a de me amparar pela cintura e de manter minha cabeça no seu ombro, onde ele estendera vários lenços. Essa atenção quase maternal, que lhe fazia vencer o sono, causou-me não sei que emoção profunda. Adormecida sob o fogo de seus olhos negros, despertei sob sua chama: o mesmo ardor, o mesmo amor; mas milhares de pensamentos por ali haviam cruzado! Por duas vezes beijou minha fronte.

Almoçamos no carro, em Briare. No dia seguinte, às sete horas e meia, depois de ter conversado como eu conversava contigo em Blois, admirando esse Loire que nós duas admirávamos, entramos na bela e comprida avenida de tílias, de acácias, de sicômoros e de larícios que conduz a Chantepleurs. Aí às oito horas jantamos; às dez horas estávamos num formoso quarto gótico, embelezado com todas as invenções do luxo moderno. Meu Felipe, que todos acham feio, pareceu-me bastante belo, belo de bondade, de graça, de ternura, de requintada delicadeza. Não via nem vestígios dos desejos de amor. Durante a viagem ele se portara como um amigo a quem eu conhecesse há quinze anos. Descreveu-me, como ele sabe descrever (é sempre o homem da primeira carta), as pavorosas tormentas que conteve e que vinham morrer na superfície de seu rosto.

— Até agora nada há de assustador no casamento — disse eu, dirigindo-me à janela e vendo, sob um soberbo luar, um delicioso parque de onde emanavam penetrantes perfumes.

Ele veio para junto de mim, enlaçou-me a cintura e disse:

— E por que assustar-se? Desmenti eu, acaso, por um gesto, por um olhar, as minhas promessas? Desmenti-las-ei algum dia?

Jamais uma voz, um olhar terão tal poder; a voz fazia-me vibrar todas as fibras do corpo e despertava todos os sentimentos; o olhar tinha uma força solar.

— Oh! — disse-lhe eu. — Quanta perfídia mourisca há na sua perpétua escravidão!

Querida, ele me compreendeu.

Por isso, bela corça, se passei tantos meses sem te escrever, podes agora adivinhar o porquê. Sou forçada a recordar o estranho passado da donzela para explicar-te a mulher. Hoje, Renata, eu te compreendo. Não é nem a uma amiga íntima, nem à própria mãe, nem a si mesma talvez, que uma jovem recém-casada pode falar de seu feliz casamento. Devemos deixar essa recordação em nossa alma como mais um sentimento que nos pertence exclusivamente, e para o qual não há nome. Como! Denominou-se um dever às graciosas loucuras do coração e à irresistível atração do desejo. E por quê? Que horrível potência se lembrou de nos obrigar a calcar aos pés as delicadezas do gosto, os mil pudores da mulher, convertendo essas voluptuosidades em deveres? Como se poderia dever essas flores da alma, essas rosas da vida, esses poemas da sensibilidade exaltada a um ser a quem não se amasse? Direitos em tais sensações! Mas, se elas nascem e se expandem ao sol do amor, ou seus germes se destroem sob o frio da repugnância e da aversão, ao amor incumbe sustentar tais prestígios! Ó minha sublime Renata, acho-te agora muito grande! Dobro os joelhos diante de ti, admiro tua profundeza e tua perspicácia. Sim, a mulher que não faz como eu um secreto casamento de amor, oculto sob as bodas legais e públicas, deve atirar-se na maternidade como uma alma, a que falta a terra, se projeta para o céu! De quanto me escreveste sobressai um princípio cruel: somente os homens superiores sabem amar. Hoje sei por quê. O homem obedece a dois princípios. Há nele a necessidade e o sentimento. Os seres inferiores ou fracos tomam a necessidade por sentimento, ao passo que os seres superiores disfarçam a necessidade sob os admiráveis ouropéis do sentimento: este por sua violência lhes comunica uma excessiva reserva e lhes inspira a adoração da mulher. Evidentemente a sensibilidade está na razão direta da potência das organizações interiores, sendo pois que o homem de gênio é então o único que se aproxima das nossas delicadezas: ele ouve, adivinha, compreende a mulher; ele a ergue nas asas de seu desejo, contido pela timidez dos sentimentos. Por isso, quando a inteligência, o coração e os sentidos, todos eles inebriados, nos arrastam, não se cai sobre a terra; elevamo-nos às esferas celestes e, desgraçadamente, ali não permanecemos muito tempo. Tal é, alma querida, a filosofia dos três primeiros meses de meu casamento. Felipe é um anjo. Posso pensar em voz alta com ele. Sem figura de retórica, ele é um outro eu. Sua grandeza é inexplicável: a posse prende-o cada vez mais e descobre na felicidade novos motivos para amar. Para ele sou a mais bela parte de seu ser. Vejo-o: anos de casamento, longe de alterarem o objeto das suas delícias, aumentarão a sua confiança, desenvolverão novas sensibilidades e fortificarão a nossa união. Que feliz delírio! É de tal natureza a minha alma que os prazeres deixam em mim fortes clarões, aquecem-me, impregnam-se no meu ser interior: o intervalo que os separa é como a noite fugaz dos grandes dias. O sol que dourou os cimos, quando no ocaso, encontra-os quase quentes ao erguer-se. Por que feliz acaso foi assim para mim desde o começo? Minha mãe despertara em mim mil temores; suas previsões, que me pareceram cheias de ciúme, embora sem a menor mesquinhez burguesa, foram desmentidas pelos acontecimentos, pois os teus receios, os dela e os meus, tudo se dissipou! Permanecemos sete meses e meio em Chantepleurs, como dois amantes, um dos quais raptou o outro e que tivessem fugido dos pais zangados. As rosas do prazer coroaram nosso amor, elas enfloram nossa vida a dois. Numa súbita volta sobre mim mesma, numa manhã em que me sentia plenamente feliz, pensei na minha Renata e no seu casamento de conveniência e adivinhei a tua vida, penetrei-a! Ó meu anjo, por que teremos de falar uma linguagem diferente? Teu casamento puramente social e o meu, que é um amor feliz, são dois mundos que não se podem compreender, tanto quanto o finito não pode compreender o infinito. Tu ficas na Terra, eu estou no céu! Tu estás na esfera humana, e eu, na esfera divina. Eu reino pelo amor, tu reinas pelo cálculo e pelo dever. Eu subi tão alto que, se houvesse uma queda, ficaria partida em mil fragmentos. Enfim, devo calar-me, pois envergonho-me de te pintar o brilho, a riqueza, as deslumbrantes alegrias desta primavera de amor.

Faz dez dias que estamos em Paris, num encantador palacete, na rue du Bac, preparado pelo arquiteto a quem Felipe encarregara de reformar Chantepleurs. Acabo de ouvir, com a alma largamente aberta pelos prazeres permitidos de um casamento feliz, a música celeste de Rossini, que eu ouvira com a alma inquieta, atormentada, malgrado meu, pelas curiosidades do amor. De um modo geral, acharam-me mais bonita, e fico que nem uma meninazinha quando ouço chamarem-me de senhora.




Sexta-feira pela manhã


Renata, minha bela santa, minha felicidade faz-me constantemente voltar para ti. Sinto-me melhor para ti do que jamais o fui; sou-te tão dedicada! Estudei tão profundamente tua vida conjugal pelo começo da minha, e vejo-te tão grande, tão nobre, tão magnificamente virtuosa, que me constituo aqui tua inferior, tua sincera admiradora ao mesmo tempo que tua amiga. Ao ver o que é meu casamento, sinto que teria morrido se ele tivesse sido diferente. E tu vives? Por que sentimento, dizemo? Também não me permitirei mais nenhum gracejo contigo. Ai de mim! O gracejo, meu anjo, é filho da ignorância: zombamos daquilo que não conhecemos. “Nas situações em que os recrutas riem, os veteranos ficam sisudos”, disse-me o conde de Chaulieu, pobre capitão de cavalaria que até agora só tem ido de Paris a Fontainebleau e vindo de Fontainebleau a Paris. Por isso, querida amada, palpita-me que não me contaste tudo. Sim, encobriste-me algumas feridas. Sofres, sinto-o. A teu respeito fantasiei romances de ideias, querendo, à distância e pelo pouco que me referiste, achar os motivos de teu procedimento. Uma tarde, pensei: ela fez apenas um ensaio de casamento e o que para mim é uma felicidade para ela foi somente sofrimento. Foram inúteis os seus sacrifícios e quer limitar-lhes o número. Mascara seus pesares sob os pomposos axiomas da moral social. Ah! Renata, o que é admirável é que o prazer não tem necessidade de religião, de pompas, nem de palavras altissonantes, é tudo por si mesmo; ao passo que, para justificar as atrozes combinações de nossa escravidão e de nossa vassalagem, os homens acumularam teorias e máximas. Se tuas imolações são belas e sublimes, a minha felicidade, abrigada sob o pálio branco e ouro da igreja e rubricado pelo mais enfadonho dos maires,[1] seria então uma monstruosidade? Para honra das leis, por ti, mas sobretudo para que meus prazeres fossem completos, eu te quisera ver feliz, minha Renata. Oh! Dize-me que sentes invadir-te o coração um pouco de amor por esse Luís que te adora! Dize-me que o facho simbólico e solene do himeneu não te serviu somente para dissipar trevas! Pois o amor, meu anjo, é bem exatamente para a natureza moral o que o Sol é para a Terra. Volto sempre a falar-te dessa luz que me ilumina e que, temo-o, me consumirá. Querida Renata, tu que me dizias nos teus êxtases de amizade, sob a sombra das vinhas no fundo do convento: “Quero-te tanto, Luísa, que se Deus se mostrasse, eu lhe pediria para mim todas as dores e para ti todas as alegrias da vida. Sim, tenho a paixão do sofrimento!”. Pois bem, querida, hoje retribuo teu almejo e peço em altos brados a Deus que divida entre nós duas os meus prazeres.

Ouve: adivinhei que te tornaste ambiciosa sob o nome de Luís de l’Estorade; pois bem, nas próximas eleições, faze com que ele seja eleito deputado, porque ele terá cerca de quarenta anos e, como a Câmara não se reunirá senão dentro de seis meses depois das eleições, ele estará então precisamente com a idade requerida para ser um homem político. Virás a Paris, não te digo mais nada. Meu pai e os amigos que vou granjear vos apreciarão e se teu velho sogro quiser constituir um morgadio [1]
, obteremos para Luís o título de conde. Já será alguma coisa! Enfim! Estaremos juntas.



continua pág 304...

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[1] Se teu velho sogro quiser constituir um morgadio, obteremos para Luís o título de conde: o sistema dos morgadios, abolido pela Revolução Francesa, foi restabelecido em 1806 por Napoleão I, o qual, para aumentar o brilho do Império, instituiu uma nova nobreza. O morgadio (em francês, majorat) era uma propriedade imobiliária cujas rendas eram especialmente destinadas, em virtude de uma autorização do soberano, a sustentar um título nobiliárquico e a serem transmitidas perpetuamente na linha masculina por ordem de primogenitura. Havia duas espécies de morgadio: uma, chamada morgadio “de movimento próprio”, constituída por uma dotação do próprio chefe do Estado; outra, “a pedido”, que um chefe de família estava autorizado a constituir à custa de seus próprios bens, vinculando parte de suas propriedades como “dotação” de um título hereditário. Os títulos — duque, conde, visconde, barão — da nova aristocracia, criada pelo imperador, não se tornavam hereditariamente transmissíveis senão por meio da constituição de um morgadio. A renda obrigatória dos morgadios foi fixada por decreto: era tanto maior quanto mais elevado o título. A Restauração manteve este sistema e até obrigou os membros da Câmara dos Pares a instituírem morgadios. >

A partir da revolução de julho de 1830 o sistema dos morgadios foi progressivamente abolido. É indispensável lembrarmos esses traços essenciais de uma instituição à qual encontramos constantes alusões em A comédia humana. No caso de Luís de l’Estorade, como facilmente se compreende depois dessas explicações, era preciso, para ele poder ser nomeado conde, que seu velho pai, dono das propriedades da família, vinculasse uma parte destas e pedisse ao rei autorização para constituí-las em morgadio.


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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.

Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844.[1] Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).

Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava.[1] De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.


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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850. 
          A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac;                            orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São                  Paulo: Globo, 2012. 

          (A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1                    0.000 kb; ePUB 

1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série. 

12-13086                                                                               cdd-843 

Índices para catálogo sistemático: 
1. Romances: Literatura francesa 843

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